RuyGoiaba

Autobiografia não autorizada

22.07.22

Pouco menos de cinco anos atrás, comecei a me encontrar frequentemente com colegas da época do colégio, gente que eu não via fazia 30 anos ou até mais. Pode parecer enredo de filme de terror do tipo Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado, mas foram reencontros felizes: eles permitiram que eu me reconectasse com amigos queridos, numa fase da vida em que essa conexão era especialmente bem-vinda. Mas, como esta não é uma coluna fofinha, all you need is love etc. e tal, vou contar um caso curioso de uma dessas reuniões.

Estava eu conversando com uma dessas ex-colegas que passei mais de 30 anos sem ver quando ela me disse: “Nossa, lembro tanto da gente no jardim [de infância], você e eu na aula da professora Fulana”. Respondi que certamente não era eu: não fiz maternal nem jardim, entrei na escola direto no pré-primário (já era alfabetizado) e a escola era outra — não a dos participantes da reunião, que só cursei a partir do 1º ano do ensino fundamental. A ex-colega me contestou com total veemência: “De jeito nenhum! Era você, sim, eu lembro muito bem!”.

Naquele momento, a fala assertiva da minha “biógrafa” me surpreendeu a ponto de nem conseguir responder que, veja bem, eu havia sido testemunha ocular (auditiva, tátil etc.) da minha própria história e estava lá — em mim — quando as coisas aconteceram comigo. Tampouco apresento, pelo menos por enquanto, sinais de Alzheimer: ao contrário, alguns amigos já me chamaram de Funes, o Memorioso, por causa do protagonista daquele conto de Jorge Luis Borges que se lembra de absolutamente tudo (não deve ser um elogio, mas vou fingir que sim). Mas, pelo visto, se um dia eu escrever uma autobiografia, ela será não autorizada, já que fui completamente desacreditado como fonte primária de mim mesmo: lembrei na hora de um texto em que Philip Roth contou que a Wikipedia não o considerava uma fonte digna de crédito sobre o assunto Philip Roth.

Num certo sentido, como qualquer psicanalista sabe, de fato não somos fontes confiáveis sobre nós mesmos. A memória é uma ilha de edição cujo funcionamento não dominamos — se dominássemos, eu já teria deletado do meu HD a bendita escalação do Guarani em 1978. Não raro, lembranças são um misto do acontecido com o imaginado e podem ficar bem distantes das coisas como aconteceram. A tarefa número um do jornalismo, claro, é relatar essas “coisas como aconteceram” ou, no mínimo, chegar o mais perto possível delas: em um dos manuais da redação da Folha, a primeiríssima frase do verbete “objetividade” é “não existe objetividade em jornalismo”, o que não exime o jornalista de ser o mais objetivo possível. A gente acredita em fatos — crença antiquada — e faz o que pode, do jeito que dá, para dar a real: de preferência, sem confiar 100% na memória, que às vezes prega peças (“não chute, cheque”).

Não vou repetir aqui que as pessoas curtem uma historinha, que preferem narrativas divertidas à sem-gracice da realidade, que não querem informação e sim se sentir bem, que todos nós temos um inner Tiozão do Zap propenso a acreditar naquilo que queremos muito que seja verdade etc. Já escrevi tantas vezes sobre esse tema que, para mim, ele se transformou numa mistura de chatice com truísmo (“coisa tão óbvia que não precisa ser mencionada”, segundo o dicionário Uai’s). A única coisa que peço a Deus é um pouco do espírito zen de David Bowie, que teria dito algo como “existem por aí várias histórias sobre o que fiz com meu pênis na década de 70; escolham qualquer uma, tanto faz”. Acho que não há muita saída senão me conformar e deixar minha ex-colega brincando com meu não-eu de 4 anos na classe da professora Fulana no jardim da infância.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Quase dediquei a seção, mais uma vez, ao brilhantismo de Jair Bolsonaro, desta vez reunindo embaixadores para dizer basicamente que somos uma república de bananas, “um país ridículo com instituições ridículas”, como escreveu Carlos Graieb nesta Crusoé — nunca fomos tão bananeiros. Mas, nesta quarta (20), houve uma operação policial na casa abandonada de Higienópolis (CQD da minha coluna da semana passada sobre o datenismo) — com o bônus da aparição de Luísa Mell, que não pode ver um animal supostamente abandonado e um holofote sem se materializar. Não sei se é verdade a história de que a ativista ouviu falar em “gato” de energia elétrica na casa e achou que era o gato bicho; não deve ser, mas pelo menos rendeu memes ótimos. “Luísa Mell invade o Vaticano para impedir a Missa do Galo, invade um terreiro de umbanda para resgatar a pomba-gira, invade uma oficina para libertar o macaco hidráulico.”

Luísa Mell, que também foi chamada nas redes sociais de “Datena do PETA”

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