MarioSabino

O diabo venceu

22.07.22

Uma frase passou a ser dita com certa frequência no Brasil: “Entre Jair Bolsonaro e o diabo, voto no diabo”. Diante do comportamento do atual presidente da República, ela é compreensível. O encontro com os embaixadores estrangeiros, por exemplo, no qual Jair Bolsonaro simplesmente tentou jogar no lixo a democracia brasileira, é um daqueles momentos que entrarão para a vasta história da ignomínia nacional.

Causa-me incômodo, porém, que brasileiros usem o diabo como alternativa retórica (ou nem tanto). Sim, eles foram empurrados nessa direção por forças demoníacas que atuam em Brasília, mas tudo poderia ter sido diferente se parte daquela grande massa de eleitores que desceu às ruas em 2016 houvesse esboçado resistência, deixando de lado a resignação e a sua consequência mais funesta, o fatalismo. Talvez lhes tenha faltado sopro divino, não sei, e quem sou eu para saber dos desígnios Dele. O resultado é que o diabo entrou na retórica (ou nem tanto) antibolsonarista.

Depois de ouvir falar tanto em diabo como opção a Jair Bolsonaro (a última vez foi no domingo passado, em café com um tio materno de 79 anos, o único que me sobrou), fui reler o que o escritor italiano Giovanni Papini escreveu no seu Il Diavolo, de 1953, um livro que me serviu de referência quando eu ainda escrevia romances e contos (o diabo sempre me foi personagem). Giovanni Papini aborda a figura do diabo não apenas do ponto de vista religioso, mas filosófico e artístico. Num dos capítulos, ele fala da Apologia do Diabo, escrita pelo filósofo alemão Johann Benjamin Erhard, naquele cada vez mais longínquo século XVIII, o das Luzes. O escritor italiano lista as sete regras de vida que derivariam da moral da pura Malignidade, de acordo com o filósofo alemão:

“1) Não seja nunca verdadeiro e pareça sê-lo. Porque, se você é verdadeiro, os outros podem contar com você; você serve a eles e eles não servem a você;

2) Não reconheça qualquer propriedade, mas afirme que a propriedade é sagrada e inviolável e aproprie-se de tudo. Se você pode possuir tudo como seu, sem contestação, tudo depende de você;

3) Sirva-se da moralidade dos outros como fraqueza para os seus fins;

4) Instigue todos ao pecado, enquanto você parece reconhecer a moralidade como necessária;

5) Não ame ninguém;

6) Faça infeliz quem não quiser depender de você;

7) Seja plenamente coerente e não se arrependa nunca de nada. Aquilo que você decidir fazer, faça-o, custe o que custar. Assim, você demonstra a sua total independência e, pela uniformidade da sua ação, você toma a aparência do homem justo, o que lhe dá um modo hábil de fazer dos outros seus escravos antes que eles percebam.”

Giovanni Papini, papa-hóstia com o fervor dos neoconvertidos, também cita no seu livro a Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios, na qual o apóstolo escreve que, por vezes, o diabo se traveste de “anjo de luz”. Uma imagem surpreendente, como nota o escritor italiano, já que na tradição cristã ele aparece como réptil, cão, mulher, sátiro ou monstro. Mas Giovanni Papini, apesar de registrar o dado surpreendente, explica: “No entanto, as palavras de São Paulo não deixam margem de dúvida. Ele, ao contrário, insiste nesse seu conceito, e continua desta maneira: ‘Não é por isso tão espantoso que também os seus ministros se travistam de ministros da Justiça’.”

Nestes tempos de evangelismo celerado — e, ao mesmo tempo, de ateísmo em expansão — tanto Deus quanto o diabo foram barateados, tornaram-se personagens caricatos e, portanto, passíveis de chistes. Talvez por isso tantos brasileiros não se incomodem em usar do Canhoto para dizer que não votarão em Jair Bolsonaro. Eu só gostaria de dizer três coisas a esses meus concidadãos: em primeiro lugar, não existe nada pior do que o diabo. Jair Bolsonaro, no máximo, seria tão terrível quanto ele. Em segundo lugar, como o diabo também mora nas metáforas, muito cuidado com o que desejam. Por último, a julgar pelo pouco que transcrevi do livro de Giovanni Papini, o diabo já venceu as eleições no Brasil.

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