Carolina Antunes/PRDragões da Independência em frente ao Itamaraty: PEC pode enfraquecer controle do Executivo

O perigo que ronda o Itamaraty

Se aprovada, a PEC das Embaixadas pode desmotivar os diplomatas de carreira e permitir que parlamentares partidarizem unidades no exterior, prejudicando a política externa brasileira
29.07.22

Com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 34/2021), o senador Davi Alcolumbre, do União Brasil, recomenda que deputados e senadores possam assumir a chefia de embaixadas e consulados, sem ter de renunciar aos seus mandatos como congressistas. Analisada pela Comissão de Constituição de Justiça, a CCJ, no início de julho, a PEC teve a votação foi adiada para agosto, depois que senadores pediram mais tempo para estudar a questão. Trata-se de uma proposta perigosa, pois causa diferentes prejuízos à carreira diplomática e diminui a capacidade de o Brasil defender seus interesses no exterior.

A primeira consequência seria o enfraquecimento do controle do Poder Executivo sobre os postos no exterior. No modelo atual, é a Presidência da República que comanda a política externa, juntamente com o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty. A proposta da PEC 34/2021 cria a figura dos “legisladores-embaixadores” que teriam um pé no Legislativo e outro no Executivo. Em nível doméstico, a manutenção dos mandatos na Câmara ou no Senado, por quatro ou oito anos, deixaria em aberto o canal de conexão com os seus partidos, eleitores,além da tribuna parlamentar. Enquanto isso, no exterior, eles comandariam uma unidade diplomática do Ministério das Relações Exteriores, pertencente ao poder Executivo. Em seus postos no exterior, eles saberiam que, se descumprirem ordens ou forem demitidos pelo presidente da República, poderiam retomar rapidamente sua imunidade, poderes e afazeres legislativos. Esse poder duplo concederia aos “legisladores-embaixadoresalta margem de manobra, o que poderia gerar conflitos hierárquicos e contrariar os interesses nacionais, representados e coordenados pelo Executivo.

Um segundo fator de risco seria o uso dos consulados e embaixadas para fins particulares ou partidários. Basta imaginar uma situação com múltiplos “legisladores-embaixadores” servindo em distintos postos diplomáticos, longe de Brasília, agendando reuniões com políticos e empresários de mesma coloração partidária no exterior. Ao orientar-se por suas motivações e ambições políticas, surgiriam vários incentivos para que eles adotassem comportamentos desviantes, instrumentalizando os postos diplomáticos para fins específicos. Unidades do serviço exterior brasileiro poderiam ser escolhidas a dedo e tornar-se moedas de troca de campanhas eleitorais, negociações setoriais ou barganhas paroquiais. Eles atuariam para lobbies dos mais variados ou com objetivos de marketing e palanque internacional. Também poderiam escolher os postos com o objetivo de se afastar do Brasil por opção própria, como uma espécie de autoexílio, ou por iniciativa dos demais membros do partido que desejam guardar algum congressista em uma “geladeira” no exterior, enquanto esperam a poeira abaixar na política doméstica.

Há distintas possibilidades, então, de ocorrerem quebras nos ritos do trabalho diplomático que se desenvolve em rotinas próprias e se consolida em um largo período. O timing da política externa, em que se vão costurando paulatinamente os interesses nacionais com parceiros estratégicos, além de instrumentalizado, poderia ser acelerado, ou inclusive dinamitado. Muito da diplomacia ainda é analógico e cerimonial, bastante distinto das curtas e intensas janelas temporais eleitorais. Na hipótese de um desses “legisladores-embaixadores” ter pressa para capitalizar politicamente uma negociação ou um acordo diplomático, isso poderia afetar seriamente os interesses brasileiros.

Outra questão estaria relacionada a uma maior “politização” dos diplomatas. Dado que os congressistas possuirão atalhos de entrada e saída entre o Itamaraty e as Câmaras legislativas, é plausível considerar que diplomatas se aproximem de lideranças partidárias ou de deputados e senadores cotados para chefiar unidades diplomáticas. Nesse cenário, aumentariam os incentivos para os diplomatas fazerem lobby político para serem convocados a determinados postos no exterior pelos parlamentares. De um lado, diplomatas investiriam parte de seu foco e tempo em atividades alheias à diplomacia, tendo que negociar, militar, ou divulgar seu currículo para os atores do Legislativo. De outro lado, os “legisladores-embaixadores” poderiam assumir um crescente papel de intermediários no recrutamento de diplomatas para embaixadas e consulados, diminuindo o poder de ação do Itamaraty em alocar seus membros em suas unidades no exterior.

Um último fator de risco seria a desmotivação profissional no Itamaraty. Aqueles diplomatas sem apetite para se envolver na política partidária provavelmente ficariam desanimados ao ver seus colegas do Itamaraty com mais traquejo no Congresso sendo beneficiados ou recompensados com determinados postos e cargos.

O Ministério de Relações Exteriores é um dos mais longevos serviços públicos federais, cuja carreira profissional consolidada no Poder Executivo filtra seus membros por meio do Concurso de Admissão a Carreira Diplomática, o CACD, um exame de larga data e altamente competitivo. Uma vez aprovado no CACD, as promoções dos burocratas do Itamaraty são condicionadas a uma série de pré-requisitos: cursos e teses no Instituto Rio Branco, cargos-chave no Itamaraty e tempo em postos diplomáticos no exterior. Esses indicadores passam por crivos e avaliações entre pares e a elite do Itamaraty delibera quais membros serão promovidos na hierarquia diplomática. De acordo com dados do Itamaraty de 2010, organizados por mim, desde o ingresso na carreira (os chamados “terceiros secretários”) até o topo da elite diplomática (formalmente “primeiros-ministros” ou mais conhecidos como “embaixadores”), demorava-se em média três décadas. Uma importante motivação diplomática e burocrática, senão a principal, é chegar ao topo da hierarquia da carreira e poder chefiar postos no exterior. Formação e experiência são cruciais e a subida é longa até um diplomata estar apto para tanto. Catapultar deputados e senadores ao topo dos postos diplomáticos, que leva trinta anos de trajetória profissional no Itamaraty, poderia ser considerado como um grave problema à progressão na carreira que os diplomatas escolheram. Além disso, a politização insere um combustível inflamável que pode resultar em uma desestabilização hierárquica . Nesse sentido, o desenvolvimento, a disposição e a dedicação profissional dos diplomatas seriam gravemente comprometidos.

Para que o Brasil possa continuar com um corpo de diplomatas profissional, motivado, e com coordenação do Poder Executivo, sob o guarda-chuva da Presidência da República e com um Ministério de Relações Exteriores que defende os interesses brasileiros, sugiro aos parlamentares que votem contra a PEC 34/2021.

Rodolfo de Camargo Lima é cientista político e professor da Universidade Católica de Temuco, no Chile. Mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, escreveu sua dissertação e tese sobre o Ministério das Relações Exteriores

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