Museu PaulistaGrito da Independência, quadro de Pedro Américo: portugueses veem Brasil como destino turístico

A independência antes do Grito

O Sete de Setembro foi a culminação de um processo que começou com a Revolução Liberal do Porto e unificou paulistas, mineiros, baianos e fluminenses
05.08.22

Quando se pensa na Independência do Brasil, invariavelmente vem à mente da maioria do povo brasileiro o célebre quadro do pintor paraibano Pedro Américo, que coloca D. Pedro como personagem principal e cria a ideia de que tudo se resolveu com ele, naquele local, dando o seu grito às margens do rio Ipiranga, em São Paulo. Mas, na realidade, o Sete de Setembro foi apenas mais um de vários marcos que fizeram parte do nosso processo de independência.

Quando D. Pedro saiu do Rio de Janeiro em direção a São Paulo, em 13 de agosto de 1822, já era praticamente certo o rompimento com Portugal. Dois anos antes, em 24 de agosto de 1820, uma revolução de caráter liberal estourou na cidade do Porto, em Portugal. Os revoltosos queriam o fim do sistema absolutista, com a criação de uma Constituição, e o regresso da sede administrativa do Rio de Janeiro para Lisboa. A capital portuguesa aderiu à revolução no dia 15 de setembro de 1820. O Conselho da Regência foi derrubado e um novo governo foi instituído. Era o fim do absolutismo de D. João VI.

O novo governo de Portugal emitiu um manifesto aos soberanos e povos da Europa, no qual se dizia que uma parte dos males que se abatiam sobre o país era consequência da permanência continuada de D. João e da corte no Brasil. Isso acarretava impostos para a manutenção da sede da administração portuguesa do outro lado do Atlântico. No manifesto, os portugueses reclamavam do “estado de colônia a que, em realidade, Portugal se achava reduzido”.

Ironia histórica: nós, brasileiros, aguentamos por mais de trezentos anos esse sistema colonial. Os portugueses não suportaram doze.

Do início da colonização portuguesa no Brasil até 1808, com a chegada da corte, paulistas, mineiros, baianos, fluminenses e outros moradores do “Estado do Brasil” sofriam várias restrições de ordem econômica e social. Não podíamos ter uma imprensa, os livros e jornais que vinham de Portugal eram censurados, a manufatura era proibida e o comércio exterior era restrito. O Brasil era praticamente uma propriedade privada de Portugal, onde entradas e saídas de pessoas e bens eram controladas. Se os portugueses em 1820 reclamavam dos custos de manutenção da sede da corte no Brasil, os brasileiros pagaram por anos dotes de príncipes e princesas portugueses, a quem conheciam por gravuras ou por meio das festas dadas pelos governantes em honra de uma realeza que só pisaria no Brasil num momento de desespero, com seu futuro ameaçado por Napoleão Bonaparte. Até impostos pela reconstrução de Lisboa após o terremoto que a destruiu em 1º de novembro de 1755, os brasileiros tiveram que pagar.

O “Estado do Brasil”, nome dado ao país até sua elevação a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, não era uma unidade coesa. Foi somente durante o processo de independência que houve tentativas de criar uma identidade nacional, englobando os povos das diversas províncias. O termo “brasileiro” foi confirmado como gentílico durante esse processo. Antes, éramos “paulistas”, “fluminenses”, “mineiros”, “baianos”, identificados com as nossas províncias e pouco pensando no Brasil como um todo. Era assim, com esses gentílicos regionalistas, que recebíamos as troças – o bullying da época– dos estudantes portugueses quando íamos estudar na metrópole. Os chamados “reinóis” não nos viam com bons olhos, e diversos folhetos em circulação no século XVIII em Portugal dão amostras do que eles pensavam em relação aos nativos da colônia. Segundo eles, os habitantes da colônia iam para lá usurpar vagas em universidades, empregos e salários. Qualquer coincidência atual é mera semelhança.

Com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, as coisas mudaram. Instituições de ensino superior foram fundadas, como a Escola de Medicina, em Salvador. Uma imprensa foi criada, mesmo servindo principalmente ao governo e publicando só o que era permitido por ele. Alguns brasileiros chegaram a pensar que estavam no mesmo patamar que o restante dos súditos da coroa portuguesa na Europa.

As ideias liberais propagadas pela Revolução do Porto incendiaram o Brasil, que viu a chance de ter uma Constituição com leis claras e um maior controle da inflação e dos impostos, com justiça, leis e igualdades para os cidadãos e o fim dos privilégios do clero e da nobreza. O Grão-Pará e a Bahia foram as primeiras províncias a se levantarem e a se unirem ao novo governo em Lisboa. Logo, o Rio de Janeiro também se ergueu. D. João de início tentou tergiversar, mas logo foi arrastado pelos acontecimentos e não viu outro caminho além de cumprir a determinação das Cortes e regressar a Portugal. Porém, antes, à revelia da vontade do novo regime, deixou seu filho no Brasil como príncipe regente.

A ilusão dos brasileiros em achar que participariam de igual para igual com seus antigos dominadores durou bem pouco. Antes da chegada da maioria dos deputados brasileiros às Cortes, os portugueses já deliberavam praticamente pela recolonização do Brasil. Exigiam o retorno de D. Pedro à Europa e o esvaziamento do poder centralizado, fazendo com que todas as províncias se reportassem diretamente à Lisboa. Além disso, tribunais e repartições seriam fechados.

A dura realidade de que os brasileiros continuariam a ser cidadãos de segunda categoria provocou uma contrarreação em diversas províncias. As elites do Sul e do Sudeste logo se alinharam ao redor do príncipe regente, pressionando-o a não cumprir as ordens de Portugal e a continuar no Brasil. Isso levou ao Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822 e, dois dias mais tarde, ao levante dos militares portugueses no Rio de Janeiro, que queriam fazer cumprir as ordens de Lisboa. Os portugueses foram desmobilizados e receberam ordens de retornar a Portugal. No entanto, uma parte acabou desembarcando em Salvador e se juntou às forças do general português Madeira de Melo que, em 19 de fevereiro, haviam se levantado contra os brasileiros. Era o início da Guerra da Independência, que na Bahia terminaria mais de um ano depois, em 2 de julho de 1823, com a entrada das tropas brasileiras na capital.

Todo esse processo tornou a independência do Brasil inevitável. A prepotência das Cortes ao ignorar a vontade dos brasileiros causou uma escalada que levou ao Sete de Setembro e à criação de um senso de unidade nacional — um sentimento que anteriormente inexistia. A união dos brasileiros ao redor da causa comum levou a milhares de mortos e à expulsão dos portugueses. Porém “ganhamos, mas não levamos”. Tivemos de pagar por nossa independência indenizando os portugueses: só assim fomos reconhecidos pelas grandes potências como uma nova nação. Dessa maneira, perpetuava-se um ciclo que, 200 anos após a Independência, ainda faz parte do dia a dia do brasileiro.

Paulo Rezzuti, biógrafo e autor do livro Independência, a história não contada. A construção do Brasil: 1500-1825 (Leya Brasil)

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