AlexandreSoares Silva

f-e-l-i-p-e-n-e-t-o

05.08.22

Existe uma evidente degradação espiritual em digitar algumas sequências de letras, como por exemplo as letras f-e-l-i-p-e-n-e-t-o, mas rezei antes de começar esse texto para que a elevação espiritual pela qual sou conhecido me seja restituída assim que acabar de escrever.

Hesito mesmo assim. É desagradável. Diminui a imagem que temos de nós mesmos. Parece que parei na rua para bater num velhinho um pouco senil que jogava bocha no parque, só porque ele esbarrou em mim sem querer, e meus amigos estão me segurando pelos braços e gritando “Não se rebaixe a isso, Alexandre! Você é melhor que isso! Deixa quieto! Deixa quieto!”. Ou que fui jogar xadrez com uma criança de quatro anos e me irritei porque ela enfiou meus dois bispos no nariz, e desde então estou tentando humilhá-la com “canhões de Alekhine” e “diagonais italianas” e me achando muito hábil por isso.

Mas me consolo, como sempre nesses casos, dizendo a mim mesmo que não estou falando dele especificamente, que Felipe Neto mal é uma pessoa individualizada com alma individual e tal, que ele é um TIPO. Então falemos do TIPO. E eis o que o tipo postou no twitter esta semana:

“Queria perguntar uma coisa para quem entende verdadeiramente de literatura. Vi parágrafos profundamente racistas em ‘Moby Dick’, continuei a leitura do livro de nariz torcido, estou realmente incomodado. O livro é de 1851. O que é recomendado em casos assim? Como vocês avaliam?”

Você pode achar estranho que alguém saído da puberdade faz já algum tempo não tenha nenhuma noção de como era o século XIX, ou que esteja tendo a sua primeira noção só agora, e ao vivo. Acho estranho também. Mas vamos dar uns passos atrás e fazer umas considerações.

Algumas pessoas viajam mas não querem sair muito do próprio país. Querem uma dose mínima de exotismo para estimular os nervos cansados, mas só um pouco, talvez nas roupas e na arquitetura, no máximo; para comer seria um pouco demais, e continuam (na Itália, na Tailândia, na Islândia etc.) procurando onde comer as mesmas coisas que sempre comem. Dos outros países querem só uma mudança temporária de decoração. Os costumes acham bizarros e sem sentido, mas bizarros e sem sentido de um jeito um pouco entediante; quanto às artes, passam rápido pelos museus, e da língua mal aprendem a dizer por favor.

E desse mesmo jeito algumas pessoas — alguns tipos — tratam as outras épocas. Querem só que os nativos das outras épocas usem umas roupas meio diferentes, mas não muito: as atrizes em adaptações de clássicos da literatura podem continuar usando penteados que não sejam muito esquisitos e só as maquiagens que ainda as deixem atraentes para as pessoas de 2022. Todos os personagens têm que se comportar mais ou menos como pessoas de agora, e falar como pessoas de agora, com mudanças abruptas para incluir duelos e coisas assim, quando o enredo pedir.

Uma adaptação de Jane Austen, por exemplo, pode ter as roupas da época, mas a personagem principal deve fazer referências sexuais de garota marota piscando pra câmera, e o tenente da Marinha Britânica deve andar por aí com a barba por fazer como se estivesse naufragado numa ilha e não andando por Bath na companhia de damas e cavalheiros.

Dá pra ver, enfim, que o passado — qualquer época do passado — deixa as pessoas de 2022 bastante incomodadas, como alguém que fosse pro Japão e de repente descobrisse enojado que as pessoas lá comem peixe cru.

A verdade é que, se o passado é outro país, as pessoas de agora não gostam desse país. São patriotas do agora. São imperialistas do momento presente. Querem mandar missionários para as ilhas do passado e converter nossos antepassados à sua própria religião e costumes.

Vejam o Felipe Neto indo para uma ilha do passado e queimando o ídolo dos nativos, cobrindo o seio das nativas, mandando todo mundo se vestir de preto, pintar o cabelo de azul, imitar focas etc. Vejam o Felipe Neto falando de pecado, pecado, pecado! Pregando para os inocentes nativos a respeito do fogo do inferno que queimará para sempre a alma dos racistas e das pessoas que nasceram antes de 1992.

— Caro júri de 2022! — lá vai o Felipe Neto perorando, porque agora mudei abruptamente a metáfora e ele é um advogado de acusação — Estou muito incomodado com as passagens racistas do réu, e acho que todos estamos. Ocupamos certamente uma posição moral mais alta que a deste repugnante e atrasado pagão de Nova York chamado (consulta as notas) Herman Melville. Mas a pergunta é: o que devemos fazer com ele? O que vocês recomendam?

Eu recomendo que você deixe de ser um caipira do momento presente, Felipe Neto, um supremacista do agora que acha que todas as outras épocas são inferiores. Que passeie com frequência no passado, não só nos anos 90, mas em tudo que veio antes, até que pare de se surpreender com os costumes que todo mundo sabe que eles tinham, e até que pare de ficar espavorido e apoplético. Até, quem sabe, se sentir à vontade em outros momentos da humanidade além de agosto de 2022.

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