RuyGoiaba

A segunda morte de Jô Soares

12.08.22

Lá vem o velho de novo? Sim, lá vou eu: tenho idade suficiente para me lembrar bem de quando Jô Soares — morto na semana passada, aos 84 anos — era “só” humorista e precisou sair da Globo para o SBT para concretizar seu projeto de fazer um talk show (na época, achávamos mais surpreendente ele ter trocado a líder de audiência pela emissora do Patrão). Lembro, por exemplo, daquele personagem de Jô no “Viva o Gordo” que buscava alguma colocação e, ao ser rejeitado, dizia revirando os olhos: “Você não está entendendo. Quem me mandou aqui foi o Gandola”. Bastava isso para que ele fosse aceito na hora.

Só bem mais tarde eu vim a saber que “gandola” era “uma espécie de manta usada por militares em substituição ao capote”, segundo a definição do Houaiss. Ou seja: o personagem do quadro era um apadrinhado dos milicos. Era o início dos anos 1980, governo de João Figueiredo, e a ditadura militar no Brasil já começava a entrar nos seus estertores; ainda assim, o esquete era elusivo a ponto de a referência ter passado despercebida por muita gente. Hoje, as gandolas estão de volta, e não só com Jair Bolsonaro e seus ministros: há muitos usuários que circulam por aí disfarçados de hipsters. Este texto é sobre eles.

Nesta semana, Patricia Kogut informou n’O Globo que o canal a cabo GNT vai reexibir edições do Programa do Jô como homenagem ao apresentador, “após seleção cuidadosa”. A colunista de TV explica: “Vai ser uma seleção feita com um cuidado em particular: o de suprimir os comentários que ele eventualmente tenha feito no ar e que hoje sejam passíveis de linchamento virtual. Afinal, ninguém escapa dos riscos de cancelamento” (o parêntese é meu: ao que parece, nem gente morta). O eufemismo da “seleção cuidadosa” é quase bonitinho, mas significa uma coisa só: censura. E censura retroativa, o que é especialmente ridículo: o GNT vai picotar as entrevistas para não ferir as suscetibilidades de 2022 com declarações de… 2016, quando Jô se aposentou do talk show. Parafraseando um amigo, se os Mamonas Assassinas nascessem hoje, seriam processados no ato — ainda antes de gravar “Mundo Animal” e “Robocop Gay”.

É óbvio que os tempos mudam: quem vê hoje os esquetes de “Viva o Gordo” percebe que muito daquele humor ficou datado, especialmente o baseado no binômio sexismo + homofobia (ou seja, “mulher gostosa + bicha escandalosa”, ainda bastante comum em programas do tipo A Praça É Nossa). Acredito que o próprio Jô faria diferente se tivesse um programa de humor nos anos 2010. Mas, hoje, o que sobraria para os entrevistadores que não quisessem desagradar a fascistinhas de direita e de esquerda, aldeões com tochas das redes sociais? Só puxação de saco irrestrita — dos entrevistados e do público, que jamais seria surpreendido ou confrontado. É o mesmo tipo de gente que quer proibir, por exemplo, atores de interpretarem qualquer papel com o qual não compartilhem cor, gênero ou orientação sexual; autores de ficção de criarem personagens fora de seu “lugar de fala” (o que mataria toda literatura não testemunhal); e foliões de se fantasiarem com algo diferente da roupa que eles já vestem todos os dias.

É muito fácil detectar as bestas autoritárias à direita. Mas esse pessoal vestido de hipster/moderno/progressista também não engana ninguém: o traje verdadeiro deles é uma gandola, que vem com a própria ditadura — fofinha, do bem — de brinde dentro do bolso (nem sei se gandola tem bolso; se não tiver, paciência). E pode até demorar, mas eles vão conseguir matar Jô pela segunda vez; agora no humor, que é o que restou para nós depois que sua pessoa física se foi. Aqui me sinto obrigado a adaptar Nelson Rodrigues, outro que está convenientemente estudando a geologia dos campos-santos há décadas: Jô Soares está morto, mas os censores (os do GNT e outros) viverão para sempre. A burrice é eterna.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Pensei em escrever sobre essa história de considerarem “ovelha negra” uma expressão racista, mas só a ideia já me fez tombar a cabeça no teclado e começar a roncar: acho que vou usar esse empolgante debate à noite, no lugar do Stilnox. Prefiro dedicar a goiabice desta semana a Marlene Engelhorn, jovem herdeira da Basf que anunciou a intenção de “abrir mão de 90%” da fortuna de sua família, estimada em 4,2 bilhões de euros. Não vi em nenhum dos veículos que deram a notícia, todos encantados com a história, a observação de que, em tese, a magnânima Marlene ainda ficará com 420 milhões de euros: coisinha pouca, suficiente apenas para suprir as necessidades mais básicas. Força, guerreira!

Foto por Reprodução/YouTubeFoto por Reprodução/YouTubeEngelhorn, que fará o sacrifício de viver com apenas 420 milhões de euros

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  1. A Norminha, cantora pobre e decadente , personagem do Jô, não apareceu nas homenagens. Ela era politicamente incorreta. Lamentável

  2. Sensacional! 👏🏼👏🏼👏🏼 Identificar os fascistas de direita é facílimo… Já os autoritários progressistas, nem tanto… Somos reféns!

  3. Racismo do "bem", censura do "bem", sexismo do "bem", discriminação do "bem", isso tudo não só pode, mas está virando obrigatório. Me tira o tubo!!!

  4. Lembro muito bem do revirar os olhos e o bordão "você não está entendendo...quem me mandou aqui foi o Gandoolaa." Mas lembrei-me também que, passado algum tempo, o Jô mudou o bordão para " quem me mandou aqui foi o Buchecha". Comentava-se que tinha havido censura para nao melindrar os militares. Não se sabe em que nível se deu a censura, se é que houve. Mas, que o Jô mudou o bordão, mudou sim.

  5. Mundo chato !! Políticamente “ Viado “!! Jô seria processado hoje assim com Chico Anísio ; Costunha e tantos outros q nos faziam” rachar “ de rir ! Pena .. e q se f … os lgbtsjuyf24&&$

    1. E Paulo Silvino no quadro em que dizia: “Mas é uma bichona”? Estaria cancelado e processado. Quiçá preso.

  6. A mulher doou e eu não doaria nada. Quem quer ajudar não da dinheiro, investe e ajuda muita gente com os rendimentos dessa fortuna.

  7. Concordo plenamente com relação ao Jo Detesto essa gente do politicamente correto como detesto os anacrônicos retrógrados e hipocritas da extrema direita Não sou binária nunca fui e nunca serei

  8. Concordo plenamente com relação ao Jo Não aguento essa gente imbecil querendo censurar qualquer coisa que não siga a cartilha deles ..e isso vale para os politicamente corretos esquerdistas e para os anacrônicos e retrógrados da extrema-direita Detesto todos Definitivamente não sou binária mas reconheço que isso é para poucos

  9. Essas “homenagens” ao Jô me provocaram sono! Tanta gente falando abobrinha da mais rasteira a pretexto de parecer “olha como sou bacana” ou “você sabia que eu e o Jô éramos amigos íntimos”… é de uma pobreza de espírito total…

  10. Não acompanhei a "época de ouro", mas ao que tudo indica, era uma pessoa admirável por milhões de brasileiros. Parabéns pelo artigo Rui!

  11. Bem fez Diogo Mainardi em ir embora do país! Não suporta mais nada e muito menos a imprensa, pouca ajuda e só ver os seus interesses!

    1. Os interesses inclusive de voltar um corrupto mor… a imprensa durante todo esse tempo não deixou um dia sequer de martirizar esse mentiroso corrupto, mas o dinheiro sempre vai falar mais alto.

  12. A história da jovem herdeira austríaca é bem interessante. Ela pertence a um grupo de millionairesforhumanity.org (v. Google) q querem ajudar a mudar as desigualdades no mundo. Igualzinho aos políticos brasileiros, né mesmo?

  13. Tem gente que soa ridícula de tão falsa. Atores canastrões fazendo o papel de "certinhos" conforme o modelo hipócrita. Te cuida Rita Lee, vão censurar Ovelha Negra.

  14. Pa-ra-béns! Ruy. Paaa-raa-Bénsss! Pensei isto, que escreveu com brilho, quando, quase em lágrimas a moça ou o moço (?) do JN, anunciou essa "homenagem". escalafobética (ou des homenagem"). Na verdade isto nada mais é que oportunismo. Se isto acontecesse com ele vivo, tenho certeza que iria se des acontecida por ele. Vejo como mero oportunismo para audiência e estímulo para compra de assinaturas para o canal de filmes da Globo Play. Hipocrisia e oportunismo, na minha opinião.

  15. Além das censuras "do bem" de praxe, eu imagino eles tesourando o momento em que o Jô elogia o Deltan Dallagnol, dizendo o quanto ele e sua equipe estavam fazendo pelo país. Coisas de GNT, G1 e o povo democrata "do bem" que adoram Lula.

    1. eu tive a oportunidade de rever essa entrevista a DELTAN, recebida de um whats, e adorei!! Em compensação uma bolsonarista raiz enviou também pelo whats o 'tratado" sobre um lado comunista de Jô Soares por ter entrevistado Dilma. Não consegui ler tudo pelo nível de infantilidade e de ofensa que aquele texto qualificou o Jô. Homem culto, inteligente, um multiartista que alegrou os brasileiros, entendendo ou não o quê significava "Gandola". não vou esquecer: "um beijo do Gordo" !!!!!!

  16. A verdadeira morte do Jô, editar e ou censurar o que disse, de forma vil e covarde, pois não está aqui para se defender. Me tira o tubo!

  17. Assisti uma apresentação solo de Jô Soares em teatro em que se referiu aos homossexuais com o termo "viado". Achei destoante numa pessoa tão culta e cosmopolita.

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