NetflixElize Matsunaga, que ganhou liberdade em maio, na série da Netflix

O Tremembé é uma febre

Fascínio pelas séries e livros de "true crimes", ou crimes reais, vem das narrativas cativantes, mas também das vontades reprimidas em todos nós
12.08.22

Há quase dez anos, pus os pés pela primeira vez no pátio da penitenciária de Tremembé. Em 2013, fui até lá entrevistar o ex-senador Luiz Estevão, condenado a 26 anos por corrupção ativa. No presídio, ouvi histórias horrorosas de criminosos de todas as categorias. A clientela de Tremembé é fina, toda formada por autores de crimes violentos contra membros da própria família, ex-policiais, estupradores, pedófilos e celebridades em conflito com a lei. Se o indivíduo assassinar um parente com apenas um tiro, vai para o cadeião comum. Se matar, esquartejar e jogar os pedaços do corpo para os cachorros comerem, seu destino é Tremembé, no Vale do Paraíba, interior paulista.

É lá onde estão Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados por jogarem a pequena Isabela Nardoni pela janela do sexto andar. Suzane von Richthofen, a parricida por quem parte dos brasileiros tem verdadeiro fetiche, também está lá. O médico-monstro Roger Abdelmassih, condenado a 172 anos de prisão por estuprar dezenas de pacientes também mora no aconchego de Tremembé, assim como Gil Rugai, condenado a 30 anos de prisão por ter matado o pai e a madrasta. Ele jura inocência de pé junto. Elize Matsunaga, condenada por matar o marido, o empresário Marcos Matsunaga, morou nesse mesmo endereço por dez anos.

Voltei inúmeras vezes ao presídio dos famosos para pesquisas. No entanto, confesso que tenho me assustado muito do lado de cá das muralhas de Tremembé com relatos de pessoas comuns. Desde o lançamento do meu livro Elize Matsunaga – a Mulher que Esquartejou o Marido, em 2021, tenho recebido dezenas de mensagens de mulheres com ficha criminal mais limpa do que água cristalina, revelando em segredo que tentaram ou ainda querem matar os próprios maridos. Elas contam essas intenções assassinas com a naturalidade de quem respira. A primeira mensagem chegou tão logo o livro Elize debutou nas livrarias, há um ano. Uma senhora de Belém do Pará mandou uma mensagem para mim numa madrugada chuvosa, dizendo ter empatia pela mulher cujo crime foi dar um tiro na cabeça de Marcos Matsunaga e cortar o corpo dele em sete pedaços. “Eu só não matei meu marido por causa dos meus filhos, pois coragem não me faltou”, disse a mulher para mim, na mensagem pelo Instagram. Então, mandei aquela pergunta que qualquer jornalista faria no meu lugar. Afinal, por que a senhora quer matar o seu marido? Eis a resposta dela: “Ele bebe todos os dias. Me enche de porrada. Me estupra. E já quebrou todos os dentes. Sorte que tenho dinheiro e mandei reconstituir a minha arcada com dentes de porcelana. Ficaram até mais bonitos. Mas ele quebrou tudo novamente.”

As mensagens não pararam. Outro dia, uma delas me contou que mirou uma pistola carregada para a cabeça do marido enquanto ele dormia, há 15 anos. Mas, na hora de puxar o gatilho, sua bebê de quatro meses chorou no berço com fome. “Foi um sinal. Hoje minha filha tem 15 anos e ama o pai. Como eu explicaria à minha garota que matei o pai dela?”, questiona a quase assassina. Essa pergunta, aliás, é a questão da vida de Elize Matsunaga, colocada em liberdade em maio. Quando matou e esquartejou o marido, ela tinha um bebê de colo dormindo no quarto ao lado. Hoje, sua filha é pré-adolescente e seu maior problema é justamente como explicar à garota seus motivos para um ato tão cruel.

Sei que, ao compilar na Crusoé essas histórias e declarações, muitos leitores devem sentir repulsa. Todos queremos uma vida tranquila, sem sobressaltos, o mais longe possível de pessoas imprevisíveis e violentas. Ao mesmo tempo, esses trechos despertam um fascínio irracional, difícil de explicar. Certamente, é essa atração instintiva que melhor explica a enorme audiência que os documentários sobre crimes reais, os “true crimes“, têm recebido no Brasil e no exterior. Sabendo disso, as principais plataformas de streaming têm investido muito dinheiro na produção de documentários sobre criminosos de verdade. O sucesso tem superado as expectativas. Dos presos violentos do Tremembé que citei no primeiro parágrafo, todos já viraram personagens de séries televisivas. Além deles, também ganharam destaque nas últimas semanas o podcast A Mulher da Casa Abandonada e a série Pacto Brutal: o Assassinato de Daniella Perez, sobre o assassinato da atriz, filha da autora de novelas Gloria Perez.

Esse encanto tem uma explicação simples, inconfessável: ainda que a grande maioria das pessoas deste mundo não tenha cometido crimes, todos já sentimos esse desejo. Qualquer pessoa é capaz de matar. Segundo especialistas, para se tornar um assassino, o indivíduo precisa, inicialmente, ter as motivações. Logo em seguida vem o desejo pela ação criminosa. Ato contínuo, aparece a coragem. Por último, tem-se a janela de oportunidade.

A diferença que vai definir em qual lado cada um ficará da muralha do Tremembé é quem irá às vias de fato. Alguns, às vezes acometidos por uma obliteração da razão, darão vazão aos seus instintos. Suzane, Elize, Roger Abdelmassih, Guilherme de Pádua, o goleiro Bruno e até a mulher da casa abandonada vivem nesse recorte da sociedade. Outros são contidos pelas diversas barreiras e ameaças impostas pela civilização. O que mais impede as ações criminosas são os castigos severos aplicados em autores de homicídio, previstos no Código Penal brasileiro. Essas pessoas são as que se interessam por livros, filmes e seriados de crimes reais. Ainda que não sejam capazes de cometerem delitos, eles se enxergam nos seus protagonistas.

Você, leitor, já foi xingado e humilhado repetidas vezes? Em Tremembé, conheci na unidade feminina uma senhora simpaticíssima chamada Celeste. Por uma década, ela foi chamada pelo marido de hipopótamo, elefante, peixe-boi, baleia e outros animais de aparência robusta. Uma pessoa sensata, em uma situação como essa, pediria o divórcio e se afastaria. Mas Celeste aguentou até explodir. Amarrou o marido na cama, jogou sobre ele um galão de querosene e o matou carbonizado. O fogaréu foi tão violento que a casa onde ela morava com ele e mais dois filhos adolescentes foi toda destruída. Condenada a quase 30 anos de cadeia, ela ainda carrega consigo o apelido de Tia do Fogo. “As pessoas não têm noção do poder das palavras. Elas podem te enaltecer se vierem em forma de elogio. Mas elas ferem, sangram e deixam marcas profundas se forem ditas para humilhar”, justificou a Tia do Fogo, hoje em regime aberto. Daria um bom filme? Sem dúvida. Melhor ainda seria uma série, não? É só uma questão de tempo.

Ullisses Campbell é jornalista e autor dos livros Suzane – assassina e manipuladora e Elize Matsunaga – a mulher que esquartejou o marido (Editora Matrix)

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  1. “A violência é tão fascinante”, qto mais gravoso o crime maior o fascínio q provoca. Curioso q o brasileiro seja tão rígido para com os homicidas (lato sensu) e tão flexível para com os corruptos. Para os primeiros, cadeira elétrica, para os segundos, tornozeleiras “elétricas” e votos nas eleições. A veneração por corruptos é algo espantoso e surpreendente, mas explica o brasil. “Papai, quero um pôster da Jorgina, do Lalau, do Cacciola e do Lula, são meus herois, provaram que o crime compensa”‼️

    1. Não sou en quem quer matar, são os outros que provocam em mim “os instintos mais primitivos”…

    2. O homicida tira vidas, o corrupto só destrói esperanças, oras, esperança é coisa para fracassado, para perdedores; corruptos e ladrões do $$ público merecem toda a empatia, afinal, “se eu tivesse oportunidade roubaria tanto ou mais”. Papai, já sei o que vou ser quando eu crescer: ladrão de colarinho branco‼️ Obs: deixaram de ser mencionados centenas de corruptos por questão de espaço e pq não quero ser preso pelo Xandão. Sim, o crime compensa no brasil, é só uma questão de nº do CPF do criminoso.

  2. É muito triste saber que as pessoas chegam tão baixo como matar ou desejar a morte de alguém. Conheço gente que frequenta igrejas e reza todo domingo e é capaz de arquitetar maldades com uma sabedoria ímpar, movida pela inveja, outro sentimento asqueroso. Afff

  3. Confesso que tenho um certo fascínio por essas histórias, haja visto a minha infância e adolescência conturbada, mas ao mesmo tempo sinto ódio do Código Penal Brasileiro. Aproveito para deixar os meus parabéns ao artigo e a Glória Péres, mulher guerreira que buscou incansavelmente por justiça depois da morte brutal da sua filha.

  4. Eu mesma não cometi esse crime, por não querer destruir minha vida. Foi por mim, não por ele. Se não fosse isso, teria mandado mata-lo.

  5. Muito assustador, mas adorei ler esse artigo; vi todos os filme e séries sobre crimes reais. Ainda não senti vontade de matar nenhum ser vivo.

    1. Não há distinção de gênero, minha cara. É aplicável a todo o Pessoal do Alfabeto também. ... A banalização do mal.

  6. Pensamentos assim tenho às centenas. É uma lista interminável composta de políticos e agentes públicos do Brasil inteiro.

    1. Se eu fosse um sniper?!?!!! Adios certos políticos, certos servidores do judiciário.

  7. “Qualquer pessoa é capaz de matar.” Uma frase muito impactante e verdadeira. Nós, seres humanos, ainda não nos conhecemos.

  8. É uma boa reportagem, porém há aspectos não abordados no texto curto, tais como o simples fato de dar notoriedade a criminosos perversos, discutir os efeitos de políticos que pregam liberação irrestrita de armas de fogo ou a opressão mental dos "gulags" que certas ideologias podem causar na mente. Enfim, melhor reconhecer que a natureza humana não saiu das cavernas e que os sistemas cognitivos responsáveis pela sobrevivência residem no âmago do ser humano e na essência a selvageria sobrevive...

  9. Texto interessante, com muita sensibilidade, porém, permitam-me uma reflexão. As narrativas poderiam ser também mais exploradas sob o viés dos investigadores, de como o caso foi trabalhado pela Polícia, pela imprensa. Mudança de foco na abordagem. Daria pra explorar os dois mundos, com o enredo prestigiando o lado do "bem". Tudo é uma questão de ponto de vista

  10. Excelente matéria. Quem não entendeu o que aconteceu com a "tia do fogo" ou com a leitora "salva pela choro da filha", não se conhece ou não entende nada de ser humano...

    1. Tive a mesma sensação. Se aproximar dessas duas não fez bem a ele.

  11. Excelente o seu artigo, jornalista Campbel. Oportuno e escrito com conhecimento digno deste site. Pondero, entretanto que sou favorável aa difusão de escritos, filmes e livros que versam sobre o assunto porque a noticia da violência e de suas colaterais sempre aguçou a curiosidade do sapiens. Da’ “ibope” porque a população em todos os niveis sociais se encantam. O que faz a populacao? Busca proteção, pessoal ou grupal, pressiona a segurança pública para se organizar e “prender a ameaça”. Ruim é

    1. mentais natos, as psicopatias ( maioria dos crimes intencionais são da autoria destes), na minha opinião são recomendaveis. O mal desta espécie para ser evitado, descartado, contornado ou combatido deve ser muito bem conhecido. É preciso ser lido, falado, ouvido e visto (de preferência virtualmente,claro) em produções especializadas, bem intencionadas e formativos. Há boas série, inclusive documentais, e bons programas especializados e não sensacionalistas, estes perfil de todos os brasileiros.

    2. o “espetáculo da violência” sempre promovido pela mídia jornalística que se torna, na maioria das vezes informante, detetive mal ine, finalmente juiz. Na banalidade que o fato vai se tornando a massa embevecida cresce e junto com a mídia torna-se dona da “verdade”, muitas vezes plantada como, e vira perigosamente “justiceira”. Surgem os xerifes e mocinhos de rádio e tv… Quanto aos filmes, documentários e programas se vistos por mentes não deturpadas (pelo meio de formador ou por desvios

  12. Recentemente vi em algum vídeo de youtube, que Elize Matsunaga era (ou foi) aplaudida pelas mulheres quando saia de Tremembé. Não sei se é real, mas conhecendo sua história, acho que Elize foi bem bacanina com seu marido (espero não ser presa por este comentário).

  13. Ótimo texto! Eu fico me perguntando pq pessoas aguentam viver com alguém q lhe causa asco? Se não me engano, foi Aristoteles quem disse: Afasta-te de que lhe é imediatamente contrário. Que aprendamos a sair de perto de quem nos causa repulsa.

    1. A opção do afastamento, está ao alcance da minoria.

    2. Prezada Carla, essas pessoas (geralmente mulheres) são prisioneiras da violência de psicopatas, egocêntricos, manipuladores com quem vivem, sem saída na maioria das vezes. Chantageadas pela ameaça de serem mortas,incluindo-se filhos e familiares, se separar desse monstro muitas, em opção principalmente aos demais, acaba optando pela vida infernal. As legislações que existem no mundo para protegê-las, muito embora tenham evoluído, ainda são muito frágeis.

  14. O Brasil já é um caos , precisamos de escritores para contar o sucesso de pessoas que fazem a diferença, assassinos não pode ter essa relevância, precisamos de exemplos de pessoas probas e não mau exemplo

    1. Às vezes pode-se tirar belas lições dos maus exemplos… Por exemplo, quase todos os criminosos são confinados em prisões horrorosas e submetidos a maus tratos.

    1. Barry, tive que rir e poderia até imaginar que Brasília pós-assassinatos iria se assemelhar à Casa Abandonada de Higienópolis, incluindo o acúmulo de dejetos.

    2. Não é freio moral. É simplesmente receio de ser preso. Isso é fato. Se não tivesse o risco de ser preso, aposto que a maioria dos politicos de Brasilia, e esses neguinhos do STF, além de muitos empresários pilantras, já estariam mortos nessa altura do campeonato. Na idade media, as coisas eram resolvidos de um jeito mais prático, rápido e com justiça.

    3. Não é freio moral. É receio de ser preso. Se não tivesse leis que punem crimes, acho que todos esses politicos de Brasilia, e esses neguinhos do STF, já tariam mortos. Isso sem contar pessoas que todo mundo encontra e se desentendem na vida. Voltariamos para a idade media, de como as coisas eram resolvidas sem lei. As coisas eram resolvidas de um jeito mais direto e prático no passado.

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