José SarneySarney e Alfonsín na usina de Itaipu: retomada após a redemocratização

O bloco do cambalacho

Os obstáculos ao Mercosul estão principalmente na resistência dos lobbies nacionais a uma verdadeira abertura econômica e à liberalização comercial
20.01.23

Desde os tempos coloniais, o vice-reinado do Rio da Prata, parte do qual viria a se tornar a Argentina atual, ocupa um lugar especial nas relações exteriores do Brasil. Os patacões espanhóis, moedas de prata de 600 réis, eram uma espécie de “moeda comum”, alimentando o contrabando entre os impérios português e espanhol. No século XIX, a influência britânica levaria à adoção da libra, que no século seguinte seria substituída pelo dólar americano.

Esse comércio fronteiriço sempre existiu, ainda que no início as relações entre os dois países não tenham sido das mais amistosas. Com a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, o Brasil tornou-se um inédito experimento monárquico, cercado por várias repúblicas que se separaram do reino espanhol. A fase de conflitos começou com a guerra da Cisplatina, atual Uruguai, e se prolongou até a queda do ditador Juan Manuel Rosas, em 1853. As relações entre brasileiros e argentinos foram reatadas quando os dois países tiveram de reagir, após ambos serem invadidos pelo ditador paraguaio Solano Lopez, em 1864. Após a derrota do Paraguai na guerra, Brasil e Argentina seguiram entre indiferença e aproximação até o alvorecer do século XX. Quem mais perdeu nesse período foi o Brasil. No início do século passado, a Argentina tinha um PIB per capita cinco vezes maior, e era bem mais educada.

A decolagem dos argentinos começou a ser lentamente erodida a partir dos anos 1930. Tem início então a “década infame” – quando Enrique Santos Discépolo escreve o tango Cambalache. A letra da música espelha o momento em que foi criada e marcaria os anos seguintes: “Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei. Em 506 e no ano 2000 também. Que sempre houve ladrões, astutos e enganados, felizes e amargurados, originais e imitações. Mas que o século XX é uma exposição de maldade insolente, já não há quem negue“. Enquanto isso, no Brasil, teve início a industrialização, completada sob o regime militar de 1964. O Brasil então suplantou a Argentina no poderio industrial e diminuiu a distância de sua renda per capita. Esses anos também foram marcados por conflitos latentes, como a construção da Usina de Itaipu, em 1975, cujas águas desembocam no Rio da Prata, e projetos nacionais de capacitação nuclear, frustrados mais tarde.

A convergência de interesses se deu a partir da redemocratização dos dois países, em meados dos anos 1980, com a amizade entusiasta entre os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney. Eles deram a partida a um projeto aberto de integração, com vistas à formação de um espaço econômico comum, unindo também o Paraguai e o Uruguai. Mas o Mercosul, criado quadrilateralmente em 1991, a partir de um tratado bilateral de 1988, ainda não atingiu os objetivos estipulados no seu Artigo 1º, qual seja, uma união aduaneira completa, base indispensável para justificar o seu nome: o Mercado Comum do Sul.

Os obstáculos estão principalmente na resistência dos lobbies nacionais a uma verdadeira abertura econômica e à liberalização comercial. Esse movimento contrário impede que o Mercosul avance com a mesma velocidade da União Europeia. Esse bloco, com sede em Bruxelas, é constantemente criticado por ser lento e burocrático. Mesmo assim, alcançou um sucesso bem maior quando comparado ao de seu congênere do sul. Os seis primeiros países europeus que assinaram os tratados de Roma em 1957, atingiram a meta fixada do mercado comum no espaço de dez anos. Diversas lacunas foram preenchidas ao longo de meio século até chegar, atualmente, a uma união econômica dotada não de uma moeda única, mas de uma moeda comum. O Mercosul, por sua vez, já passou dos trinta anos, mas nem sequer completou sua zona de livre comércio, e está longe de se apresentar como união aduaneira perfeita. Em tese, os países deveriam ter uma Tarifa Externa Comum, TEC, o que significa praticar os mesmos impostos de importação. Mas seus membros incluíram exceções nacionais aos produtos que são cobrados, por temor de que eles concorram com os bens que eles próprios fabricam. Normas relativas a investimentos e serviços não foram implementadas devido às habituais restrições protecionistas, principalmente no Brasil e na Argentina. Depois de uma fase inicial de crescimento do comércio intrarregional, a dinâmica da integração cessou, e o Mercosul se converteu em um palanque retórico dedicado a outras causas que não o comércio.

AIEAAIEACollor e Menem se encontram em 1991
Para que uma união como essa seja exitosa, é preciso que seus integrantes mais poderosos ditem o ritmo. Na União Europeia, esse papel coube à Alemanha e à França, suas duas maiores economias. No caso do Mercosul, o esforço deveria ter sido feito pelos seus dois maiores membros, Brasil e Argentina. Entretanto, os dois países não lograram impedir que seus respectivos lobbies protecionistas introduzissem obstáculos burocráticos e regulatórios a uma plena abertura. Encontros de cúpula entre presidentes, como entre Sarney e Alfonsín, ou entre Fernando Collor e Carlos Menem, não mudaram esse cenário (no governo de Jair Bolsonaro, houve a negação completa dos contatos, também sem efeitos).

O ritual das viagens e dos contatos intensos será retomado a partir de agora com Lula. O petista só não visitou a Argentina antes da posse em função das dificuldades de uma transição atribulada, depois das eleições presidenciais mais divisivas da história política brasileira. Haverá certamente muito mais retórica – ao estilo do velho bordão “tudo nos une, nada nos separa” – do que resultados concretos. Primeiro, porque a Argentina se encontra engolfada numa nova hiperinflação – a maior em três décadas. Segundo, porque o Brasil ainda não encontrou a paz interna para cuidar de sua economia combalida.

Além das travas internas, o Mercosul perde importância por fatores alheios. Seus integrantes expandiram enormemente o comércio com a Ásia, principalmente com a China, o que fez com que o intercâmbio entre os membros do bloco hoje seja uma fração do que foi no passado. Por causa disso, não faz mais sentido falar em uma “Brasil dependência” da Argentina, pois nossos vizinhos também estão muito mais conectados com a China do que conosco. Essa é, aliás, a tendência regional. México, Colômbia, Peru e Chile, que integram a Aliança do Pacífico, estão muito mais focados no Pacífico do que no próprio continente. O pequeno Uruguai também tem insistido em  buscar relações comerciais preferenciais fora do bloco, se possível em um acordo de livre-comércio com a China.

Hoje, Brasil e Argentina também não se entendem sobre vários temas. Não há uma visão unificada a respeito do que fazer com o acordo de 2019 entre o Mercosul e a União Europeia. Não há consenso sobre a adesão das duas nações à OCDE, tampouco sobre a entrada da Argentina no Brics. A referência a uma “moeda comum” no Mercosul não passa de um diversionismo ilusório, sem qualquer chance de prosperar com a economia dos dois países enfrentando dificuldades. Não obstante, a velha retórica da relação especial vem sendo novamente invocada com certo ardor, como acaba de anunciar o novo chanceler Mauro Vieira, em seu discurso de posse. “Nossa ideologia na região será a ideologia da integração“, disse ele.

A verdade é que, apesar das invocações grandiosas deste e de outros momentos, nenhum dos países do Cone Sul encontra a energia necessária para enfrentar os lobbies protecionistas internos. Além do mais, é provável que o resultado das eleições de outubro no país vizinho leve a um novo distanciamento entre os projetos econômicos nacionais, com uma possível vitória da oposição ao peronismo. Seguiremos, portanto, no mesmo tango Cambalache: “Vivemos misturados no mesmo merengue, e tocados pela mesma lama“.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e escritor

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