Ricardo StuckertNão é de hoje que Lula tem dificuldade de entender o que é democracia

Por que o Brasil, sob Lula, não será uma democracia liberal

O novo governo acha que tem o dever de reescrever a história, promover a adoração ao líder populista e tem uma visão anacrônica de política externa
20.01.23

O regime político brasileiro era uma democracia quando Lula 1 e 2 assumiu. Continuou sendo uma democracia quando Dilma 1 e 2 assumiu. Idem quando Temer assumiu. Idem-idem quando Bolsonaro assumiu. E continua sendo uma democracia com Lula 3. Sempre, porém, uma democracia eleitoral, não liberal.

Afastado o perigo bolsonarista de transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral – sim, esse perigo era iminente com a reeleição de Bolsonaro – estamos diante de novo desafio. Sob o domínio do lulopetismo nossa democracia (apenas) eleitoral jamais virará uma democracia liberal.

(Um parêntesis. Falar em democracia liberal ficou difícil no Brasil. Confunde-se a palavra liberal com liberalismo-econômico ou neoliberalismo. E sobretudo, não se entende que a democracia liberal é medida por uma visão negativa do poder político: não pela capacidade de um governo de se impor à sociedade e sim pela capacidade da sociedade de controlar o governo.)

As razões pelas quais não viraremos uma democracia liberal sob o domínio lulopetista, a esta altura, são quase-óbvias (para quem não adotou a postura cínica de tapar voluntariamente os olhos). A força política no poder acha que tem o dever de reescrever a história (e está instalando, aos poucos, uma espécie Ministério da Verdade orwelliano). Seus integrantes estimulam a prática da política como continuação da guerra por outros meios (na base do “nós contra eles”) e têm um comportamento hegemonista. Eles querem (e até agora vêm conseguindo) uma imprensa chapa-branca (com a participação, inédita, de grandes meios de comunicação profissionais). Eles incentivam o culto à personalidade de um líder sem muita noção de democracia, que tem uma visão excessivamente positiva do poder político (democracia como governo e não como controlar o governo), uma visão econômica desenvolvimentista e estatista (o Estado como o principal promotor do desenvolvimento e educador da sociedade) e uma visão de política externa de um mundo que não existe mais.

Como é impossível, num só artigo, comentar todos esses pontos, vamos tratar aqui apenas dos mais escandalosos.

 

Ministério da Verdade

Neste exato momento a história está sendo reescrita por uma espécie de Miniver orwelliano.

Não se fala mais em mensalão. É como se não tivesse existido, embora Lula tenha confessado que sim, existiu, em entrevistas na Granja do Torto e em Paris no final de 2005, confundido-o porém espertamente com caixa 2 de campanha, “que todo mundo faz” (versão falsa urdida pelos falecidos Thomaz Bastos e Arnaldo Malheiros).

Não se fala mais em petrolão. O PT nada teve a ver com aquele mega esquema de corrupção, apesar da montanha de evidências (e da devolução de vultosos valores pelos criminosos).

Não se fala em aparelhamento do Estado por militantes petistas. Embora haja relatórios muito precisos sobre isso. O governo Lula 1 criou mais de um cargo público por hora. Foram 37.543 cargos entre janeiro de 2003 e fevereiro de 2006. Dividindo sucessivamente por 38 meses, por 30 dias e por 24 horas, dá o total de 1,37 cargos por hora, representando uma despesa extra de 625 milhões de reais por ano. Levantamentos feitos durante o primeiro mandato de Lula provaram que o grau de infestação ultrapassou todos os limites do bom senso (e. g., cerca de 90% dos cargos de direção do Ministério das Cidades sob o comando de Olívio Dutra, estavam, na época, nas mãos de petistas).

Não se fala da rede suja de sites e blogs petistas, que introduziram, pela primeira vez, as fake news no debate público brasileiro. É como se nunca tivessem existido veículos, não raro financiados por dinheiro público ou propaganda de estatais, emissores de notícias fraudulentas. Alguns exemplos (dos que já existiam em 2014): Brasil 247, Opera Mundi, Correio do Brasil, Revista Forum, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Viomundo, Brasil de Fato, Diário do Centro do Mundo, Conversa Afiada, GGN, Caros Amigos, Plantão Brasil, Tijolaço, Mídia Ninja, Outras Palavras, Carta Maior.

Não se fala da responsabilidade do PT na introdução do “nós contra eles” na luta política, quer dizer, da visão populista de que a sociedade está vincada por uma única clivagem “povo” versus “elites”, sendo que “povo“, aqui, não é um conceito sociológico e sim político-ideológico (o “verdadeiro povo” é composto pelos que seguem o líder populista).

Não se fala do apoio do PT às ditaduras cubana, angolana, venezuelana e nicaraguense. Inventa-se, então, que o PT é social-democrata para esconder o seu caráter neopopulista de esquerda (tal como seus aliados históricos estratégicos Chávez e Maduro, Ortega, Evo, Correa, Lugo, Funes).

Diz-se que o PT nunca quis controlar a mídia (inventando a versão de que o partido defendia um tipo de regulação democrática como a que vigora no Reino Unido ou que o PT quer regular as mídias sociais – que nem existiam na ocasião em que essa bandeira começou a ser agitada).

Pela fragilidade das provas da Lava Jato, tenta-se dizer que o sítio de Atibaia não era de Lula (embora todo mundo soubesse que era de Lula, ocupado regularmente por ele, ainda que não estivesse formalmente em seu nome). Ora, os bens de Putin também não estão em seu nome.

Tenta-se dizer que Lula nunca se interessou pelo tríplex do Guarujá (ainda que não o tivesse comprado de papel passado, pois ficou registrado em nome da OAS). Para não falar do empreendimento fraudulento da Bancoop, que está na raiz de tudo, dirigido por Berzoini e Vacccari.

Repete-se, repete-se e repete-se, diariamente, que não há provas contra Lula e que tanto é assim que seus processos foram anulados. Como se ele tivesse sido absolvido pela justiça e como se os atropelos de Moro, Deltan e Cia. inocentassem Lula.

Por último, insiste-se na tese, falsa, de que o processo constitucional do impeachment de Dilma foi um golpe (e isso foi agora até publicado em site oficial do governo brasileiro). Ora, se o impeachment foi golpe, chegou a hora de processar os golpistas. Quem são? As mesas da Câmara e do Senado em 2016? A imensa maioria dos deputados e senadores que votaram a favor do impedimento? O Supremo Tribunal Federal, que presidiu o processo no Senado? Se a hora é a de fazer valer a força da lei e do Estado de direito, denunciar oficialmente um golpe e não tomar nenhuma medida para punir os golpistas é, no mínimo, prevaricar.

 

A visão de democracia do líder

Lula tem repetido que democracia é comida no prato do pobre. Embora isso seja desejável (e necessário), a democracia liberal é o regime em que as pessoas, caminhando com suas próprias pernas, possam conquistar seus recursos para a sobrevivência do seu jeito em vez de ficarem de boca aberta para cima esperando as dádivas de um líder provedor.

Na sua entrevista ao jornal El País, de 20 de novembro de 2021, Lula teve a coragem de dizer:

Os democratas precisam aprender que a democracia é uma coisa séria. O povo não quer uma democracia para gritar que está desempregado; ele quer trabalho. Não quer democracia para gritar que está com fome; quer comer. O povo não gosta da democracia para dizer que não tem possibilidade de estudar; ele tem que estudar. E a democracia precisa garantir esses direitos. Na verdade, a democracia falhou em muitos lugares.

Há aqui uma confusão deliberada entre a democracia e o papel dos governos. Governos populistas podem bravatear que vão dar “casa, comida e roupa lavada” para todos (em especial para os pobres). Isso, porém, não é função da democracia. Democracia não pode ser reduzida à comida na mesa. Os chineses têm hoje mais comida na mesa do que tinham anteontem. As populações atuais de Singapura e do sultanato de Brunei nem sabem mais o que é fome. E todos esses regimes são ditaduras (autocracias fechadas ou eleitorais).

O fato é que o populismo de esquerda está alterando o significado da palavra democracia para que ela passe a designar cidadania. A ideia é colocar a universalização da cidadania como pré-condição para uma verdadeira democracia. Mas se fosse assim jamais teríamos ouvido a palavra democracia. E se fosse assim só teríamos “verdadeira democracia” num futuro reino da abundância (ou seja, nunca – a não ser nas mentes infectadas pelas distopias igualitaristas).

Não é de hoje que Lula tem dificuldade de entender o que é democracia.

No dia 20 de abril de 2005, Lula discursou em um congresso de trabalhadores: “É importante saber o que nós éramos há três anos e o que nós somos agora… O que aconteceu no Brasil… o que aconteceu no Equador, o que aconteceu na Venezuela, que foi já um pouco mais para frente (sic), e o que pode acontecer na evolução política de outros países do continente…”.

No dia 29 de setembro de 2005, em discurso no Palácio do Planalto, ele disparou: “Eu não sei se a América Latina teve um presidente com as experiências democráticas colocadas em prática na Venezuela. Um presidente que ganha as eleições, faz uma Constituição e propõe um referendo para ele mesmo; faz um referendo e ganha as eleições outra vez. Ninguém pode acusar aquele país de não ter democracia. Poder-se-ia até dizer que tem excesso”.

No dia 7 de junho de 2007, numa entrevista à Folha de São Paulo, na embaixada do Brasil em Berlim, Lula disse: “O fato de ele (Chávez) não renovar a concessão (da RCTV) é tão democrático quanto dar. Não sei por que a diferença entre dois atos democráticos”.

E no dia 14 de novembro de 2007, em outra entrevista, no Itamaraty, ele reafirmou: “Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é”.

Ora, já se sabia naquela época que a Venezuela caminhava a passos largos para se transformar em uma ditadura (uma autocracia eleitoral) – o que de fato se consumou com a ascensão de Maduro (cuja reeleição foi apoiada por Lula, com vídeo e tudo).

Mas Lula parece não saber direito a diferença entre uma democracia liberal e uma ditadura. Em entrevista ao jornal El País, em 2021, ele perguntou: “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e Daniel Ortega não? Por que Margaret Thatcher pode ficar 12 anos no poder, e Chávez não?” A fala dispensa comentários.

 

A visão econômica do lulopetismo

Na área econômica os sinais emitidos por Lula até agora são preocupantes. Citem-se apenas alguns: abolir privatizações em nome da soberania nacional; retomar uma política industrial século 20; julgar teto de gastos como “estupidez“; não entender a conveniência de um Banco Central independente; avaliar responsabilidade fiscal como crueldade dos financistas contra o povo; desprezar o papel das agências reguladoras e desvalorizar marcos regulatórios como os do saneamento e das ferrovias; e, novamente, como não poderia deixar de ser, apostar todas as fichas no Estado como o grande promotor do desenvolvimento.

Mal foi entrando, Lula – estatista que é – já retirou da lista (até então cogitada) de privatizações: os Correios,  a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Dataprev, a Nuclebrás, o Serpro, os imóveis da Conab, a Petrobras, a Pré-Sal Petróleo S.A. – PPSA.

E, nesta semana, Lula – demonstrando que não aprendeu nada e não esqueceu nada – reafirmou sua incompreensão sobre a independência do Banco Central. Ele disse que é “uma bobagem” considerar que o presidente de um BC independente faça mais pela economia do que um indicado pelo presidente da República.

 

Visão anacrônica de política externa

Apesar de tudo que aconteceu na última década, o PT insiste na política externa ideológica do Sul Global.

O sinal mais horroroso é que Lula e o PT, até hoje, se recusaram a apoiar a resistência ucraniana à invasão militar de Putin e as sanções impostas à Rússia. Lula, por tudo que já declarou, não quer essas medidas. Aliás, em entrevista à revista Time, em maio de 2022, Lula culpou e acusou Volodymyr Zelensky e os países democráticos (inclusive Biden) pela invasão criminosa de Putin à Ucrânia.

Ele [Zelensky] quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais… Você fica estimulando o cara [Zelensky] e ele fica se achando o máximo. Ele fica se achando o rei da cocada, quando na verdade deveriam ter tido conversa mais séria com ele: ‘Ô, cara, você é um bom artista, você é um bom comediante, mas não vamos fazer uma guerra para você aparecer’.”

Na mesma linha, por tudo que já declarou sobre a China, o novo governo brasileiro não tomará a defesa da democracia liberal de Taiwan (contra as tentativas imperiais de anexação do ditador Xi Jinping).

Parece óbvio que o governo lulopetista também nunca fará uma condenação explícita e inequívoca das ditaduras latino-americanas de esquerda (como Cuba, Venezuela e Nicarágua) e africanas (como Angola).

Outro sinal negativo é a politização indevida do papel dos BRICs (dominado por grandes autocracias como Rússia, China e Índia), transigindo com o seu uso para combater os supostos imperalismo norte-americano e expansionismo da Otan. Além disso, ao que tudo indica, tenderá a apoiar a ampliação dos BRICs, inclusive com a entrada da teocracia assassina do Irã.

O governo do PT não vai se alinhar, preferencialmente, à coalizão das democracias liberais (UE, Canadá, USA, Costa Rica, Coréia do Sul, Japão, Austrália, Nova Zelândia etc.) em detrimento do bloco das ditaduras (Rússia, China, Índia, Irã, Síria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia etc) que está se articulando para iniciar uma segunda grande guerra fria mundial.

Nas Américas, o Brasil não vai privilegiar as seis únicas democracias liberais existentes (Canadá, EUA, Costa Rica, Barbados, Chile e Uruguai) e sim as ditaduras (Venezuela, Nicarágua e Cuba) ou as democracias (apenas) eleitorais parasitadas por forças políticas neopopulistas (como Bolívia, Peru, Argentina, Honduras, México e agora, infelizmente, Colômbia).

Nada disso, ao contrário do que dizem os agentes petistas na imprensa, tem a ver com as necessárias relações comerciais do Brasil com esses países, sejam autocracias fechadas ou eleitorais ou mesmo democracias eleitorais parasitadas pelo populismo dito de esquerda. É preciso separar as duas coisas e não usar as relações comerciais como biombo para justificar alianças políticas ou geopolíticas antidemocráticas.

Para concluir. São muitas evidências, montanhas de evidências de que a democracia brasileira continuará sendo um regime insuficientemente liberal (e, pior, ficará ainda menos liberal), e só não as vê quem adotou a postura ideológica de não querer vê-las – como certos “liberais”, que tapam os olhos alegando que é um imperativo, a despeito das barbaridades que cometa, que o governo Lula dê certo. Para quê?

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500
  1. O Brasil viveu uma democracia até a instalação da equipe de transição. De lá para cá, é ditadura. Que inferno esse momento.

    1. O excelente texto retrata bem pessoas com esse tipo de pensamento. Quando alguém se recusa a enxergar o óbvio, não há muito o que fazer.

  2. E quanto ao “liberar pra todos” o artigo do moço lá de cima, negativo.. quem quiser ler um magistral artigo que pague uma assinatura.. vou descancelar a minha.. A CRUSOÉ VOLTOU!!! ulalaaaa. Obs: nao confunda ULALAAA.. com lulalá.. hem?

  3. Estou franca e abusivamente estatelado no solo. Não é solo musical, é solo de solo mesmo…chão, melhor dizendo. Alvíssaras, fuzuês, festejos a esta guinada de bom senso, que apenas a meu sentir, está ocorrendo na CruCru..Para mantener minhaassinatura, já extinta, bastam mais 2 artigos serelepes e bem escritos com os dois últimos que li aqui, hoje! Pra ficar em aplausos desvairados, so falta trazer de novo o impoluto Diogo, e o quase perfeito escrevinhador Mario Sabino.. ulalaaa…

    1. *como os dois últimos (correcão)

  4. Eu só fico realmente chateado quando vejo críticas a imprensa sem fundamento. Globo folha e estadão estão recriminado bastante alguns aspectos do governo.

    1. Arre ègua..Folha, Globo e alhures sempre foram de um lado só.. Fokha hà muito, Gkobo, bem recentemente, representam a “esquerdalha caviar”.. e de novo recebem críticas por terem percebido as “m.e.r.d.a.s” que publicaram.. è só fazerem um bom jornalismo (coisa raea) que reaparecem os “sabujos” reclamando por informarem as novas e emporcalhadas visões destes porcarias que “tomaram” o poder (parafraseando o Barrosito)..

  5. Excelente artigo. Tão importante, que deveria ser aberto para todos lerem. É difícil ver tantos pingos nos iis em tão pouco espaço.

  6. Apesar do alívio com a saída de Bolsonaro, não vislumbro nenhuma possibilidade de melhora nos próximos quatro anos. A menos que a natureza se imponha …

  7. Por dezesseis anos o Estado brasileiro foi um chiqueiro comandado por ladrões, por quatro anos um galinheiro pela falta de visão estratégia do poder iludido da vez e finalmente será um puteiro se à moda cubana, nicaraguense ou venezuelana é a dúvida do canelau ... o povo a esta altura aplaudiria se chegarmos a ser apenas uma Argentina destruída por quadrilhas .. o povo desesperado já desconfia que este ano o natal se chamará Funeral e eu desconfio que nesta toada estúpida sequer chegaremos lá.

  8. Parabéns Crusoe e Augusto de Franco. Que esse artigo possa ser liberado e compartilhado. E que tenhamos a verdadeira democracia das ruas para interromper mais uma vez esse projeto ultrapassado de poder dessa esquerda nefasta.

  9. Enfim, alguém com lucidez e bom senso. Obrigado, Augusto de Franco. Sugiro que CRUSOÉ libere o acesso desse artigo a todos, assinantes ou não. Inclusive, para se contrapor à máxima de que uma mentira repetida várias vezes acabe por se tornar verdade, verdadeira. Afasta de "nós" esse CALE-SE, pai.

    1. Espetacular. Reitero o pedido de liberação do artigo. Que tenhamos a força das ruas pra barrar esse projeto atrasado e corrupto liderado por essa esquerda brasileira.

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