O candidato do PSL em visita à sede da Polícia Federal no Rio nesta semana: ideias no papel

O plano Bolsonaro

Crusoé teve acesso, com exclusividade, à íntegra do documento que serve de guia para os projetos de governo do capitão da reserva. Não faltarão polêmicas
19.10.18

Na última quarta-feira, a onze dias do segundo turno, o gabinete da Casa Civil no Palácio do Planalto recebeu mais uma ligação da equipe de Jair Bolsonaro. O interlocutor tentava costurar uma visita antecipada de membros da campanha presidencial ao gabinete de transição de governo, no Centro Cultural Banco do Brasil, onde o presidente eleito despachará até ser empossado, em janeiro. A conversa não andou, pelo menos por enquanto. Os funcionários do Planalto alegaram, sem jeito, que era preciso esperar o resultado da votação.

Bolsonaro ainda não detalhou o seu programa de governo. O plano protocolado na Justiça Eleitoral há dois meses é genérico. Desde que foi esfaqueado, 40 dias atrás, o capitão da reserva não vai a debates. Nesta quinta-feira, ele anunciou que não comparecerá aos próximos. Nem mesmo ao da Rede Globo, marcado para a próxima sexta-feira. Vez ou outra o candidato dá pistas, em entrevistas ou em manifestações na internet, sobre o que fará se eleito – o adversário dele, Fernando Haddad, também não é nenhum exemplo de clareza nas propostas.

Um documento a que Crusoé teve acesso, porém, ajuda a iluminar alguns dos planos do candidato do PSL. O cartapácio, de 111 páginas, tem servido de base para as discussões diárias no bunker dos generais que formulam ideias para um eventual governo bolsonarista, no subsolo de um discreto hotel em Brasília, bem como para o pessoal do núcleo econômico, comandado por Paulo Guedes, no Rio. Com detalhamentos inéditos, o material tem sido paulatinamente atualizado  — as últimas atualizações foram feitas dias atrás. O material foi concebido inicialmente para ser o plano de governo, mas a campanha preferiu mandar ao Tribunal Superior Eleitoral uma versão reduzida, em tópicos e slides.

Reação à vista: plano prevê redução do número de parlamentares
Supervisionado pelos generais, o documento promete “especial atenção” à própria classe militar, aumentando salários e incrementando as carreiras. Segundo o que está escrito, existe uma “premente necessidade de adequação da remuneração dos militares das Forças Armadas, notoriamente defasada”, com vistas a tornar a carreira militar mais atrativa, inclusive turbinando o sistema de previdência dos fardados. No ano passado, o déficit previdenciário de servidores militares bateu os 37,7 bilhões de reais. O dos civis chegou a 45,2 bilhões de reais. Em outra frente, a verba do Ministério da Defesa deverá engordar: o orçamento não é “suficiente”, argumenta o texto. Os militares também teriam mais protagonismo na execução de projetos de saúde e educação.

De 23, o número de ministérios cairia para 15, com fusões das pastas. Educação, Esporte e Cultura seriam um órgão só. O mesmo aconteceria com Cidades, Desenvolvimento Social e Integração Nacional. O Ministério da Economia, já prometido ao guru Paulo Guedes, seria composto pelas pastas da Fazenda e do Planejamento. No novo desenho, perderiam o status de ministério a Advocacia-Geral da União e as quatro pastas palacianas: Casa Civil, Secretaria de Governo, Secretaria Geral e Gabinete de Segurança Institucional. Os cargos de confiança também exigiriam “critérios objetivos” para as nomeações e a necessidade de “reputação ilibada”. Há, no documento, referências a cortes até mesmo do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Congresso Nacional, algo que significaria um polêmico avanço do Executivo sobre o Legislativo. O texto fala em reduzir o número de senadores de 81 para 54 e o de deputados de 513 para 385.

O “plano Bolsonaro” defende ainda que só tenham foro privilegiado o próprio presidente da República; o presidente do Senado, que será eleito em fevereiro; e o presidente do Supremo Tribunal Federal. O restante do Congresso, os demais ministros da Suprema Corte e a quase totalidade dos deputados e senadores ficariam na planície, sujeitos à primeira e segunda instâncias da Justiça, como os cidadãos comuns. O documento fala, textualmente, em “exclusão da imunidade jurídica para todas as autoridades, com exceção dos presidentes dos Três Poderes”.

Foro privilegiado: só para os presidentes dos Três Poderes
A prisão após condenação em segunda instância será defendida “com ênfase”, diz o papelório. O plano também defende acabar com a audiência de custódia, que determina que todo preso em flagrante seja levado a uma autoridade judicial em até 24 horas, para que seja avaliada a legalidade da prisão. A audiência de custódia é prevista em acordos internacionais e visa a evitar prisões desnecessárias e abusos de autoridade. Para a campanha de Jair Bolsonaro, entretanto, o mecanismo faz com que “muitos infratores voltem às ruas após cometerem crimes graves e, em muitos casos, o prejuízo é repassado ao policial que efetuou o flagrante”. O texto prossegue: “Isso corrobora para o aumento da criminalidade nas ruas e provoca um desgaste da função policial perante a sociedade e sua profissão, pois o agente se sente desvalorizado”.

Não está claro quais das medidas Bolsonaro levará adiante caso seja eleito. Mas todas as propostas estão em linha com o discurso do candidato. O plano prevê, por exemplo, apresentar ao Congresso um projeto de lei que classifique como terrorismo invasões de terra ou outras propriedades por integrantes de movimentos de trabalhadores sem-terra ou sem-teto.

No capítulo de segurança pública, há menção ao tratamento a ser dispensado, na visão da equipe de campanha, a refugiados que, como os venezuelanos, tentem ingressar no Brasil. Sem mencionar tratados internacionais sobre o tema, o documento diz: “Promover uma política responsavelmente restritiva de acesso ao Brasil pelos estrangeiros de determinados países que não compactuam com os mesmos ideais de nação”. A Venezuela parece ser o sujeito oculto do texto. Para casos “específicos, em que se fizer necessário o empenho solidário da comunidade internacional”, o documento menciona a necessidade de “desenvolver de forma controlada campos de refugiados”.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO bunker dos generais, em Brasília: é lá que as ideias do plano têm sido detalhadas
Na educação, o pano de fundo também é militar. Autoridade, disciplina, amor à pátria e atividades físicas. De acordo com o documento, nas escolas haverá educação física ao menos três vezes na semana. Com uma ressalva: “Merece destaque o interesse dos brasileiros pela prática de artes marciais”. Cada turma da escola deverá montar equipes de futebol, vôlei, basquete e handebol, pelo menos, e participar de competições anuais “obrigatórias”. A quantidade de dias letivos ao ano saltaria de 200 para 230. Em “locais de risco”, assim entendidas zonas violentas, as escolas repetiriam o modelo de colégios militares. O Prouni, programa implementado por Lula e que concede bolsas de estudo, seria destinado “apenas aos alunos que realmente tenham méritos”. Ainda estão no pacote novas disciplinas para as salas de aula: “Civismo e Ética”, “Educação Moral e Cívica” e “Organização Social e Política do Brasil” — esta última, extinta há mais de duas décadas.

Muito receoso com a “doutrinação ideológica” nas escolas, o grupo copiou e colou trechos do polêmico projeto “Escola sem partido”. Um exemplo: “O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”. O projeto tramita na Câmara e deve voltar à pauta em breve, já que a bancada do partido de Bolsonaro, entusiasta da empreitada, tornou-se a segunda maior da Casa, com 52 deputados. O modelo defende que marxistas como o italiano Antonio Gramsci e o brasileiro Paulo Freire tenham suas obras retiradas da formação dos professores.  A escolha de reitores de universidades federais, por sua vez, deve ser modificada para que seja considerado o “interesse do Estado”. Atualmente, alunos, professores e funcionários elegem seus reitores, e a lista dos três mais votados vai para chancela do Planalto.

Capitaneada por Paulo Guedes, o Posto Ipiranga de Bolsonaro, a parte de economia prevê a implementação de uma reforma previdenciária para civis e a simplificação de impostos. Pelo texto, a reforma da Previdência a ser proposta pelo governo deverá estabelecer idade mínima de aposentadoria de 62 anos para mulheres e 65 para homens. Algumas categorias profissionais teriam regime especial: 60 anos para professores e 55 para policiais, bombeiros e trabalhadores em “condições prejudiciais à saúde”. As novas faixas etárias para se aposentar entrariam em vigor lenta e gradualmente, com transição até 2042. Quanto aos impostos, o plano prevê uma simplificação “brutal”. Já o programa de refinanciamento de dívidas, o Refis, deve sofrer um baque. “Os parcelamentos do Refis se tornaram frequentes e periódicos, servindo apenas para mascarar um sistema arrecadatório inviável”, diz o texto.

Mudanças no currículo escolar: de volta no túnel do tempo
Nas relações exteriores, ao menos no campo das ideias dos responsáveis pela campanha, há mudanças de eixo consideráveis em relação ao modelo vigente. Nessa parte, a Venezuela é citada nominalmente. O documento diz que é preciso “priorizar a tarefa de lidar” com o país de Nicolás Maduro para que o Brasil tenha “papel mais ativo”, “com cautela mas de modo incisivo”. Diz o documento: “A crise na Venezuela e a manutenção de governos de esquerda, que violam os princípios básicos da democracia e dos direitos humanos, trazem instabilidade para a América do Sul e afetam diretamente o Brasil”.

O cenário regional é usado para defender mudanças na forma como o governo lida com o orçamento das Forças Armadas. O texto lembra que o nível de ameaça na América Latina é “reduzido”, mas no tabuleiro global conflitos podem demandar a ação dos militares brasileiros. “Não podemos, a pretexto de sermos um país tradicionalmente pacífico, estar desmobilizados e despreparados militarmente”.

Em alguns trechos, o documento está em primeira pessoa, como se fosse o próprio Bolsonaro a bradar ideias: “Combaterei a corrupção dos políticos brasileiros com muita intensidade e rigor”. E segue: “Creio que a vontade maior da população brasileira vem ao encontro da minha”. Se for eleito presidente, o capitão da reserva terá de submeter boa parte de seu plano ao Congresso. Uma emenda à Constituição, por exemplo, demanda aprovação de 60% da Câmara e do Senado. A história dos últimos governos mostra que uma coisa são os planos dos ocupantes do Palácio do Planalto. Outra, bem diferente, é conseguir executá-los. Será um teste para Bolsonaro tanto no Parlamento como fora dele.

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