Adriano Machado/CrusoéQualquer cidadão pode representar ao TSE contra partidos que recebem dinheiro estrangeiro, diz o ex-ministro

O registro do PT sob ameaça

Carlos Velloso, ex-presidente do Supremo, diz que a lei é clara ao proibir que partidos recebam recursos estrangeiros. A punição é a perda do registro. Como mostrou Crusoé, Antonio Palocci revelou à Lava Jato que dívidas petistas foram pagas com dinheiro da ditadura líbia
19.10.18

A última edição de Crusoé revelou o que Antonio Palocci, na condição de delator, contou à PF sobre a transferência de 1 milhão de dólares do ditador líbio Muammar Kadafi para o PT em 2002, ano da primeira eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Depois de uma intrincada operação para ocultar sua origem, o dinheiro, segundo Palocci, acabou sendo usado para quitar parte da dívida do partido com o marqueteiro Duda Mendonça. Tudo sob a coordenação e a anuência do próprio Lula, o beneficiário direto da generosidade de Kadafi, seu “amigo-irmão” que acabaria morrendo nove anos depois. Nesta entrevista, o ex-ministro Carlos Velloso, que presidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), explica por que a legislação brasileira proíbe que partidos recebam recursos estrangeiros. A penalidade para as agremiações que desobedecem essa regra está no artigo 28 da Lei dos Partidos Políticos, em vigor desde 1995. O texto diz que o TSE deve determinar o cancelamento do registro e do estatuto do partido “contra o qual fique provado ter recebido ou estar recebendo recursos de procedência estrangeira”.

“É necessário que os partidos políticos não estejam subordinados de qualquer forma a agentes internacionais. Nada é mais importante no país do que a soberania do povo”, diz Velloso. Aos 82 anos, ele atualmente se dedica a palestras e ao escritório de advocacia que mantém em Brasília, juntamente com os filhos e um neto. O ex-ministro era presidente do TSE quando as urnas eletrônicas passaram a ser adotadas no país. Incomodado com o clima conflagrado que tomou conta destas eleições presidenciais, ele torce o nariz para as suspeitas lançadas sobre as urnas, vê a boataria nas redes sociais como um foco perigoso de desestabilização da credibilidade das instituições, mas discorda de quem acredita que a democracia no Brasil esteja em risco. Na entrevista que se segue, o ex-ministro também fala sobre as cada vez mais frequentes crises na Suprema Corte.

Na última edição, Crusoé mostrou que o ex-ministro Antonio Palocci forneceu à Lava Jato detalhes de como dinheiro do ditador líbio Muammar Kadafi foi usado para bancar despesas eleitorais do PT. Isso é legal?
Falarei somente em tese, sem me debruçar sobre o caso específico. O partido político não pode receber recursos financeiros de procedência estrangeira, seja de governos ou entidades. Se isso ocorrer, é cabível uma representação pedindo o cancelamento do registro da legenda. Qualquer pessoa pode denunciar. Nossa democracia se realiza através dos partidos políticos, e é necessário que eles não estejam subordinados de qualquer forma a agentes internacionais. É uma questão de soberania. Nada é mais importante no país do que a soberania do povo. A Constituição determina isso. Essa questão das doações sempre foi preocupante. Eu sempre achei que era preciso aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização de doações, de prestação de contas.

A fiscalização sobre a origem do dinheiro usado em campanhas ainda é falha?
Quando um partido presta contas à Justiça Eleitoral, entrega a nota fiscal, mas um órgão que investiga vai lá verificar se realmente aquela empresa existe, se o serviço foi prestado? O órgão fazendário tem condições de fazer isso. A Justiça poderia ter o apoio de tribunais de contas, Polícia Federal, Polícia Civil, para verificar se uma nota fiscal corresponde à realidade. No momento em que chegasse um fiscal para averiguar, qualquer fraudador iria ficar amedrontado, de cabelo em pé. As irregularidades poderiam até continuar acontecendo, mas com frequência bem menor.

Mesmo preso, o ex-presidente Lula tentou se candidatar e tem comandado a campanha petista da cadeia. Que mensagem isso transmite?
Isso não é bom. É outro fator de desmoralização das instituições, altamente danoso à democracia e ao processo eleitoral. A desmoralização de instituições é gravíssima, e se parte de alguém (que já foi) ligado ao governo é mais grave ainda. Houve uma decisão de juiz de primeiro grau, confirmada por juízes de segundo grau, apreciada em vários aspectos pelo Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Dizer que foi condenado sem provas? O candidato que faz as vezes desse cidadão dizer que vão utilizar todas as medidas porque ele foi condenado sem prova? Ora, isso é uma barbaridade.

Por que os ânimos estão tão acirrados nesta eleição?
Tudo corria muito bem até surgirem as redes sociais e o notável computador que nós todos temos em mãos, que é o celular. As redes sociais hoje controlam o estado emocional das pessoas, que recebem uma notícia com algum aspecto verdadeiro ou totalmente falsa, e aquilo circula sem possibilidade de esclarecimento, porque já atingiu milhões. Esse recrudescimento, até com violência, de ambos os lados, se dá em razão disso. A rede social é o novo governante, o novíssimo formador de opinião pública, que descontroladamente funciona para o bem e para o mal. Infelizmente, está sendo mais para o mal. Esse acirramento não é bom e pode causar danos. Vivemos realmente um novo mundo no campo das informações. As leis, autoridades, poderes constituídos são atropelados por essa nova forma de governo, em termos de informação e opinião. Agrava a situação o fato de muitas dessas postagens em redes sociais não terem tipificação penal precisa. A presidente do TSE, ministra Rosa Weber, recebeu uma ameaça em uma mensagem que pôs em dúvida a instituição, o que é lamentável. A democracia perde quando suas instituições são desacreditadas.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéÉ uma barbaridade dizer que Lula foi condenado sem provas, afirma o ex-ministro
A lisura das urnas eletrônicas vem sendo questionada, inclusive por candidatos. O processo eleitoral fica em xeque com isso?
Lamentavelmente isso começou em 2014, não é? Com o PSDB, que fez pedido de auditagem, ficou um ano tentando encontrar algo e não achou nada. Tampouco fez questão de esclarecer ou pedir desculpas ao Brasil. A urna eletrônica foi criada, com esforço muito grande, na minha administração, em 1995. Eu presidi o TSE de 1994 a 1996. Ela foi imaginada porque a fraude era muito grande. Ocorria principalmente na apuração dos votos, como votos em brancos que eram preenchidos a favor de candidatos. Os mapas de votação eram alterados. Houve uma fraude no Rio de Janeiro em 1994 que anulou quase metade das eleições. Então nós indagávamos: “Se tudo isso acontece no Rio, que é um tambor, que repercute tudo no Brasil inteiro e tem os maiores veículos de imprensa, o que está acontecendo país afora?”. Era preciso afastar a mão humana da apuração com urgência. Então convocamos comissões de juristas, técnicos de informática, que a mídia chamou de comissão de notáveis. Depois, foi criado um grupo para formular o protótipo da urna eletrônica. Aí contamos com a colaboração das três Forças Armadas, que sempre tiveram um bom serviço de informática, universidades e órgãos públicos de tecnologia. Era um trabalho de brasileiros bem-intencionados, que custou apenas as passagens que mandamos para eles.

O senhor confia plenamente na urna eletrônica?
A urna é absolutamente segura. Foi algo feito com muito critério, muito cuidado. Não posso dizer que é 100% segura porque é obra humana, não é? Só a obra divina que é 100% perfeita. Mas ela se aproxima disso. Quantas vezes presidentes do TSE, como Nelson Jobim e Ayres Britto, colocaram a urna à disposição de hackers durante uma semana? O Jobim encomendou uma auditagem da Unicamp que durou vários meses. Tudo isso é ignorado. A urna eletrônica não está online. Então não há possibilidade dessa interferência que falam. Estão querendo novamente cédulas de papel. Meu Deus do céu! Cédulas de papel eram a origem de todas as fraudes.

Acredita que a Lava Jato, ao expor formas criminosas de financiamento de campanha, tornou o processo eleitoral mais limpo?
Aqui temos vergonha em perder a eleição. Uma candidata (a ex-presidente Dilma Rousseff) disse que na campanha eleitoral faz-se o diabo. Era o que pensavam realmente. Essa questão de caixa dois é algo que encontrou, felizmente, reprovação para valer com a Lava Jato. Até então, todo mundo fazia. Foi o que o próprio Lula, quando começou o mensalão, declarou numa entrevista em Paris. Felizmente encontramos condenação severa, pelo menos da Lava Jato.

O senhor vê riscos à democracia no Brasil?
Não vejo. Temos uma consciência democrática formada. Há uma parcela da sociedade que nunca se preocupou em indagar a respeito da democracia, e é até capaz de desejar que essa democracia seja jogada de lado e seja instalado o autoritarismo. Pode ser. Mas a maioria, não. Temos uma Constituição democrática, em que todos os setores colaboraram e influíram na sua elaboração e votação. Eu ia para o Congresso na época da Constituinte, me interessava, era professor de direito constitucional. Um dia, estavam os índios acampados. No outro, os homens do agronegócio. No outro, sindicatos. É por isso que, aos 30 anos, a Constituição processou dois impeachments e os presidentes se retiraram sem necessidade de caudilhos. Não acredito que a democracia esteja em risco, apesar dessa trepidação maior.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéVelloso sobre as crises recentes no STF: “Se um juiz começa a aparecer muito, não está funcionando bem”
Candidatos à Presidência se acusam de tramar um golpe de Estado.
Os candidatos, dos dois lados, mudaram a forma de atuar. A sociedade brasileira não está mais indo na conversa. Declarações intempestivas já foram reconsideradas, de um e de outro lado. A Constituição precisa ser renovada. Mas uma nova Constituição? Jamais. Ela precisa ser observada, ser cumprida. E ela mesma, no artigo 60, dá a forma de como ser alterada, aperfeiçoada.

O Poder Judiciário tem sido atacado por políticos investigados.
Temos um Judiciário bom no Brasil. São cerca de 15 mil magistrados em primeiro grau, na linha de frente. Esses juízes entraram por concursos públicos duríssimos, com provas de títulos. Eu me lembro que, quando entrei para a magistratura, os juízes dependiam dos políticos locais. Acabou. A Constituição acabou com isso.

Há casos conhecidos de apadrinhamentos na Justiça.
É lógico que estamos falando de homens, e não de anjos, não é? Então há quem não honre a toga, claro. A imprensa tem acompanhado, põe o dedo, há órgãos de fiscalização, os apanhados são punidos. Alguns falam: “Mas a pena maior é a aposentadoria”. Não é, não. Tem um processo-crime em paralelo. Então, podem perder o cargo, sim. Se não honram a toga, é um problema de caráter individual. Isso ocorre em todas as categorias. Sou um otimista em relação ao Poder Judiciário.

Como o senhor, já há onze anos fora do STF, enxerga as atuais crises entre ministros na corte?
Há uma exposição muito grande dos ministros. Não é boa. Quando entrei para a magistratura, uma grande personalidade em Minas me disse: “Velloso, você sabe de que lado está seu fígado?”. Eu respondi: “Não sei”. Ele falou: “Você não sabe porque seu fígado está funcionando bem”. Juiz é como o fígado. Se um juiz começa a aparecer muito, não está funcionando bem. Essa exposição demasiada não é adequada para um magistrado.

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