Foto: Reprodução, Instagram @saopaulofc

Alta fidelidade

Por que, mesmo diante de tantas humilhações, não me passa pela cabeça simplesmente trocar de time? Nick Hornby tem uma teoria
17.03.23

Eu tinha 12 ou 13 anos. Estava na festa de aniversário de um colega de escola quando presenciei uma cena que ainda me deixa tonto. Um dos convidados chega atrasado, trazendo como presente um belo boné do Internacional de Porto Alegre. Um constrangimento inexplicável toma o jardim onde a celebração ocorria. Naquele momento, eu, o convidado atrasado e outros dos frequentadores da festa ficaríamos sabendo que o aniversariante não torcia mais para o Inter. Ele tinha virado… gremista.

A virada de casaca não foi assumida com todas as letras e, se bem me lembro, o aniversariante chegou a assegurar que sempre torcera para o Grêmio. O trauma provocado pela falha no espaço-tempo causada por essa mudança de time não me permite distinguir exatamente o que é verdade ou fantasia neste relato, mas o fato é que as últimas campanhas vergonhosas do meu time me levaram a questionar nossa fidelidade canina aos clubes de futebol.

O multicampeão São Paulo Futebol Clube acaba de ser eliminado do Campeonato Paulista pelo humilde Água Santa. Meses depois de perder a final da Copa Sul-Americana para o Independiente del Valle, praticamente sem oferecer resistência ao rival. Um ano depois de ser humilhado pelo Palmeiras na final do Campeonato Paulista de 2022, entre outras tragédias ocorridas nos últimos dez anos sem títulos expressivos.

Ainda assim, eu espero que, no próximo jogo, Rodrigo Nestor vá começar a tomar as decisões certas — ou que Rogério Ceni, se ainda estiver treinando o time, vá se convencer, enfim, de que é preciso tirar Nestor de campo, poupar o promissor menino, para que ele não venha a ser imolado em praça pública como Igor Gomes. Espero também, sem razão, a cada partida, que nenhum jogador vá romper um ligamento e passar seis meses fora de campo, que Orejuela vá  desencantar na lateral direita e que um desconhecido aspirante da base vá surgir e nos redimir a todos.

Por que não me passa pela cabeça simplesmente trocar de time? Por que não consigo parar de acompanhar os jogos? E de onde vem tanta ingenuidade em relação ao futuro quando não há qualquer perspectiva de melhora? “Descobri depois do jogo contra o Swindon que a lealdade, pelo menos em termos de futebol, não era uma escolha moral, como bravura ou bondade; era mais como uma verruga ou uma corcunda, algo a que estamos presos”, escreve Nick Hornby em “A chatice sem fim do Arsenal”, um dos artigos do clássico Febre de Bola (Companhia das Letras).

Quer dizer, não se trata de uma escolha. “Os casamentos não são nem de longe tão rígidos — você nunca vai pegar torcedores do Arsenal pulando a cerca para o Tottenham em busca de uma aventura extraconjugal, e embora o divórcio seja uma possibilidade (você pode simplesmente parar de ir [aos jogos] se as coisas ficarem muito ruins), se comprometer novamente está fora de questão”, compara o britânico, que publicou em livro uma das mais eloquentes descrições da obsessão pelo futebol.

Essa perspectiva ajuda a entender por que soa tão obsceno mudar de time. É como se um parte do corpo estivesse sendo mutilada. A partir do momento em que a relação com o clube se estabelece, desfazer-se dessa ligação implica uma deformidade. “Nos últimos vinte e três anos, muitas vezes me debrucei sobre as letras miúdas do meu contrato procurando uma saída, mas não havia nenhuma. Cada derrota humilhante (Swindon, Tranmere, York, Walsall, Rotherham, Wrexham) deve ser suportada com paciência, fortaleza e tolerância; simplesmente não há nada que possa ser feito, e essa é uma constatação que pode fazer você se contorcer de frustração”, constata Hornby.

Eu só não me contorço mais a cada derrota porque pelo menos tenho vitórias e glórias na memória — o que me faz pensar no martírio dos torcedores do Botafogo ou do Cleveland Browns ou do New York Knicks ou de qualquer outra agremiação histórica cujas glórias ficaram no início do século passado, carregando corcundas muito mais pesadas do que a minha. Em nome de quê?

“Aprendi coisas com o jogo. Muito do meu conhecimento de locais na Grã-Bretanha e na Europa não vem da escola, mas de jogos fora de casa ou das páginas de esportes, e o hooliganismo me deu gosto pela sociologia e um grau de experiência em trabalho de campo”, destaca Hornby em outro trecho do livro, do texto “Questão de vida ou morte”. Mais do que isso, o torcedor do Arsenal diz que aprendeu o valor de pertencer a uma comunidade cujas aspirações compartilha completa e acriticamente e de investir tempo e emoção em coisas que não se podem controlar.

Tida, até alguns anos atrás, como mal acostumada e acomodada, a torcida do São Paulo praticamente salvou o cambaleante clube do inédito rebaixamento nos últimos anos, com o comparecimento massivo aos jogos, tanto no estádio do Morumbi quanto nas partidas fora de casa. É como se o são-paulino estivesse precisando sofrer para se conectar completamente com o time, como ocorreu ao longo de décadas com os corintianos. A verruga não parece tão feia vista por esse ângulo. De qualquer forma, sigo acreditando na vitória que não virá no próximo jogo.

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  1. Ótima coluna.Mencionar o texto de Hornby foi pontual e esclarecedor.Entre tantas verrugas e corcundas,não abandono o Vasco,um time de poucas vitórias,muitos memes e uma torcida aguerrida.

  2. A paixão continua enorme; as frustrações são menores, pois são proporcionais às ambições, hoje resta torcer para não cair. Sobrevive a esperança de que dias melhores virão em um tempo longínquo. Vamos SPFC, pra sempre.

  3. Sei muito bem do que sente, sendo eu torcedor do Vasco. E, pior, velho o suficiente para ter vivido no estádio todas as glórias da década de 90. O amor a um clube é como uma droga: cada derrota é um mês de sofrimento de abstinência, mas cada derrota traz a ilusão de uma retomada que sabemos que não virá, mais uma dose da droga desejada. Saudações vascaínas.

  4. Toda crise traz crescimento e apesar da paixão que envolve o time do coração há que se ter racionalidade para cobrar dos dirigentes mais competência para resolver os problemas financeiros que se arrastam. O patrimônio é muito grande e os maus administradores infelizmente não receberam a punição pelos maus atos cometidos. Vamos São Paulo!

  5. Não desanimem são-paulinos: "...22 anos, oito meses e sete dias foi o tempo que durou o jejum de títulos do Corinthians. Qualquer time entre os chamados “grandes”, ficaria apagado, esquecido, se tornaria um clube menor após tanto tempo sem ganhar um título. Mas, o Corinthians não era qualquer um..." e foi durante esse jejum infinito que o time angariou o maior número de torcedores da sua história.

  6. Espero que vc continue torcedor do tricolor paulista , troco de mulher, de marca de roupa, de time de basquete(nba) , de partido ,mas não troco meu time de coração

  7. Muito interessante; o homem muda de mulher, muda de religião e até de sexo, mas não muda de time! É inexplicável; mas eu, que já sofri toda a adolescência e início da vida adulta com o meu Corinthians, de há muito que não tô nem aí; em pessoas adultas, e amadurecidas (a maioria não é; tenho um grande que piorou a estupidez), o fanatismo esmorece; só torço um pouco pq meu filho amado é corintianíssimo! Sugiro "Como criei filhos fortes e felizes", digital na Amazon e em papel Clube de Autores

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