Agência BrasilReceita Federal: ela também tem motivos para resistir a uma reforma tributária

Muito grande para reformar

Há ganhos públicos claros em fazer uma reforma tributária, mas a luta por manter os milhões de tratamentos especiais do setor privado e preservar a capacidade de barganha do poder político e dos estamentos burocráticos não permite que ela aconteça
24.03.23

Um experiente consultor político de Brasília conta que, certa vez, foi procurado por uma empresa de software de administração contábil para uma conversa. O tema era a reforma tributária e o seu interesse era que ela não acontecesse porque os impostos no Brasil eram tão complexos que serviam como uma espécie de barreira para a entrada de concorrentes internacionais do ramo no país, que não conseguiam formatar seus produtos para atuar no mercado tupiniquim. 

Não é mera figura de linguagem dizer que é impossível dizer a extensão da complexidade do sistema tributário brasileiro. Ele foi se expandindo e se diversificando ao longo de décadas a partir da ação de muitas forças que fizeram com que cada área de atividade econômica tenha, de fato, uma regra tributária específica para si. A lei formal, tal como está escrita, sempre tem alguma exceção, interpretação, regime especial, subsídio ou liminar que faz com que exista aqui “n” sistemas de impostos. 

A forma como se chegou a isso lembra os filmes de máfia nos quais o gângster cria muitas situações de violência nos bairros e depois vai ao dono da quitanda dizendo “a coisa tá feia por aqui… mas o senhor paga aí uma taxa de proteção que ficará tudo certo”. O mafioso, no nosso caso, é o Estado, que tem à sua disposição a capacidade de decidir arbitrariamente sobre muita coisa. O comerciante são os segmentos, que usam os lobbies para criar condições mais adequadas ao seu negócio por meio de justificativas legítimas (a maioria) ou não (proteções). 

Nesse sentido, qualquer tentativa de reforma tributária é, na sua essência, um trabalho para submeter todos os segmentos econômicos à mesma regra. O secretário especial para o tema, Bernard Appy, que faz peregrinação nos mundos políticos e empresariais, afirma que o maior ganho trazido por essa mudança seria de natureza civilizatória, isto é, de realmente haver a igualdade de todos perante a lei, e não uma lei esculpida para cada um. Além disso, os benefícios da racionalização seriam tão grandes que compensariam eventuais aumentos de carga que possam vir para um ou para outro nesse mar de legislações “customizadas”. 

Colocar todos debaixo do mesmo teto, no entanto, mexe fundamentalmente com estruturas de poder. No lado privado, a existência de sabe-se lá quantos regimes especiais construídos politicamente ao longo de eras gera um conflito distributivo de proporções bíblicas. O setor industrial acusará os setores de serviços e de agronegócio de não pagarem impostos suficientes, deixando para ele a carga maior, por exemplo. O pessoal de serviços, no entanto, afirmará que isso é necessário porque ele carrega o peso de ser o maior empregador e ter que, dessa forma, arcar com os custos da folha salarial. Já a turma do campo dirá que essa é a única forma de serem competitivos internacionalmente, trazendo dólares para casa e, portanto, “carregar o país nas costas”. 

Mas a mudança também traz um dilema para a estruturas estatais que veem na reforma a abdicação de nacos de poder. A capacidade de tributar e de fiscalizar é a principal forma de governantes se relacionarem com empresários. Oferecer e retirar concessões é, antes de tudo, um instrumento de política pública, permitindo o desenvolvimento de uma atividade em uma determinada região, mas também é uma arma de chantagem a partir do qual é possível beneficiar aliados e punir adversários. 

Um exemplo que está acontecendo em tempo real é o tal do voto de qualidade do Carf, que é um órgão administrativo que julga recursos de contribuintes contra o governo. Hoje, vale a regra universal de que o empate no colegiado deve favorecer o réu, pois se entende que o poder público não conseguiu chegar a um consenso sobre o tema. Uma das primeiras medidas de Fernando Haddad no ministério da Fazenda foi tentar voltar à regra antiga, na qual o presidente do colegiado, leia-se “o governo”, terá o voto de desempate. Além do aumento de contendas vencidas pelo Estado, dá para imaginar que a concentração do poder de decidir sobre cifras milionárias dá uma grande capacidade de barganha para quem o exerce. Outra questão pouco mapeada da resistência à reforma, por exemplo, é a da Receita Federal. Ao ter que dividir o seu poder de fiscalização com entes estaduais e até municipais para a criação de um imposto nacional único sobre o consumo, entende que estaria entregando prerrogativas a atores “menores” e, assim, reduzindo seu próprio papel. 

O fato da vida é que apesar do extremo desconforto que o sistema tributário gera, com custos enormes para a produtividade da economia, renegociações políticas constantes (todo mundo esperando o próximo programa de regularização tributária que cortará juros e multas por atrasos de pagamento) e em permanente litígio jurídico, ele está de certa forma assentado. Quem tem força política e econômica, tem suas proteções. E quem não tem, cumpre a lei do jeito que ela é, como é o caso dos trabalhadores celetistas que têm seu imposto de renda descontado na fonte sem qualquer exceção. 

A reforma tributária é um grande dilema de ação coletiva. Há ganhos públicos claros em fazê-la, como diz Appy. Mas a luta por manter os milhões de tratamentos especiais do setor privado e preservar a capacidade de barganha do poder político e dos estamentos burocráticos não permite que ela aconteça, mantendo uma situação que parece vantajosa no nível micro, mas que asfixia a todos no nível macro, impedindo, por exemplo, que o país receba investimentos de empresas do exterior, como no caso da firma de software. Por isso, é fácil ser consultor político se o objetivo é trabalhar contra a reforma. A taxa de sucesso está praticamente garantida mesmo que não se faça nada. O sistema é muito grande para ser reformado. 

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  1. O sistema é grande porque nossos agentes políticos são pequenos demais. Não há coragem para gastar capital político com algo que todos sabemos há décadas ser crucial para o país, sempre se empurrando o problema com a barriga, maltratando milhões para beneficiar alguns. Nada novo nesse país.

  2. A colocação faz sentido. Uma reforma deste quilate pressupõe um governo que não seja populista, o que não é o caso neste momento …

  3. Como garantir q depois q você eventual reforma ele não comece a ser descaracterizada pelo lobby privado e com o tempo voltar a tudo como era antes?

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