Reprodução"Era como se cada um tivesse uma arma na mão. Se um atirasse e errasse, o outro decerto acertaria"

Nocaute estético

Nada pode ser maior do que um feito esportivo apoteótico, mas Norman Mailer conseguiu engrandecer algo que parecia insuperável
24.03.23

Erling Haaland marcou cinco gols nesta semana contra o RB Leipzig pela Champions League, o maior campeonato de futebol de clubes do mundo. Questionado sobre o feito, o norueguês disse que “é um sentimento maravilhoso“. E acrescentou: “O sentimento é maravilhoso”. O que mais poderia dizer? O que mais deveria dizer? Nada é mais eloquente do que balançar a rede, ainda mais tantas vezes quanto o atacante do Manchester City, que tem impressionantes 216 gols em 256 partidas oficiais — o número já deve ter aumentado quando você estiver lendo isto aqui. Quando alguém sabe exatamente o que dizer sobre um feito como esse, contudo, o esporte transcende.

David Foster Wallace já escreveu sobre a inaptidão dos atletas geniais para descrever suas próprias proezas, mas isso é tema para um artigo futuro. Neste, vamos apenas celebrar a capacidade de Norman Mailer de engrandecer algo que parecia insuperável. Em 1974, Muhammad Ali e George Foreman — esse mesmo em que você pensou, do George Foreman Grill — se encontraram no Zaire, hoje República Democrática do Congo, para a maior luta de boxe da história.

Campeão mundial dos pesos-pesados, Foreman era o favorito. Aos 25 anos, representava o establishment branco americano contra um desafiante de 32 anos convertido ao islã que perdera o título sete anos antes, como punição por se recusar a se alistar para a Guerra do Vietnã. Não bastasse, a disputa pelo cinturão ocorria pela primeira vez em território africano e era patrocinada por um ditador ao pior estilo do continente — Mobutu Sese Seko pagou cinco milhões de dólares para cada lutador, na expectativa de chamar atenção para seu país.

O relato de Mailer sobre a luta demorou um ano para ser publicado. O jornalista fazia parte de uma vasta comitiva de imprensa, que tinha entre os membros Hunter Thompson, outro repórter mítico, que não soube aproveitar tão bem a oportunidade que se apresentou. A luta (Companhia das Letras) descreve de forma competente o clima político-racial que envolveu o confronto, com o único porém de Mailer tentar aparecer mais do que devia, bem à moda do novo jornalismo, ao se referir a si mesmo na terceira pessoa durante todo o livro.

Tudo se perdoa, contudo, quando chegamos ao relato brilhante da luta e… “Colidiram sem se encontrarem, os corpos ainda afastados por um metro e meio. Cada um recuou como polos magnéticos iguais, repelindo-se irresistivelmente. Então Ali avançou de novo. Foreman avançou, circularam um ao outro, se esquivaram, moveram-se num anel elétrico e Ali deu o primeiro soco, uma esquerda tentante.”

Mailer descreve minuciosamente cada movimento, todos os socos e expressões, e traduz tudo de forma a não deixar nenhuma dúvida sobre o que está acontecendo. “Era como se cada um tivesse uma arma na mão. Se um atirasse e errasse, o outro decerto acertaria. Se um lançasse um soco e o oponente estivesse atento, a cabeça do primeiro é que levaria o golpe.”

Ali resiste em adotar a estratégia por que todos esperavam, de permanecer escorado nas cordas, em posição de defesa, para não ser executado pelo adversário — havia mesmo quem temesse pela morte do desafiante de Foreman. Mas o primeiro round termina assim, com o representante do movimento negro acuado, apesar de ter se saído melhor. “Ali saiu das cordas no abraço mais determinado de sua vida, as duas luvas presas atrás da cabeça de Foreman. O branco dos olhos de Ali exibiam o aspecto vidrado de um soldado em combate que acaba de ver um braço desmembrado voar pelo céu após uma explosão. Que tipo de monstro era aquele?

Ao fim do segundo assalto, Mailer diz que parecia que já haviam se passado oito rounds. “Seria por que tentamos assistir com a sensação de tempo dos lutadores?“, questiona. “Antes que o cansaço leve os boxeadores aos caldeirões dos condenados, eles vivem num estado de consciência e com uma percepção dos detalhes que não encontram em qualquer outra situação. Em nenhum outro lugar sua inteligência é tão complexa, nem sua sensação de tempo capaz de conter tanto de si própria como no longo esforço interno do ringue”, analisa. Assim, 30 minutos de luta passariam como se fossem três horas para os boxeadores.

Esse tipo de observação metafísica se mistura, no livro, a comentários técnicos sobre boxe, uma das obsessões do autor. Aprendemos com Mailer sobre os riscos de aplicar um direto de direita, que o cansaço vai progressivamente transformando os boxeadores profissionais em lutadores de rua e que “há um limiar para o nocaute”: “Quando se chega próximo dele mas não é transposto, o adversário é capaz de cambalear pelo ringue para sempre”.

A aula é entremeada por imagens que vão da guerra — “Começou um bombardeio reminiscente das batalhas de artilharia da Primeira Guerra Mundial”— ao campo — “E Ali, com as luvas na cabeça, os cotovelos contra as costelas, lá ficou e pendulou e foi sacudido e batido e chacoalhado como um gafanhoto na ponta de um caniço quando o vento bate, e as cordas balançavam e oscilavam como as cortinas de água de uma tempestade”.

Mailer nos prepara para o nocaute do oitavo assalto dizendo que “é uma agonia elucidar o menor sentido estético do boxe”. “Seria um desperdício que um artista como Ali deixasse escapar a perfeição daquela luta, caso se permitisse vaguear durante uma monótona meia hora até uma árida decisão por unanimidade”, analisa. Segundo ele, um belo fim transformaria a luta numa lenda, enquanto uma vitória opaca faria de Ali uma meia lenda, com uma reputação superinflada pelos amigos e contestada pelos inimigos. Venceu a lenda.

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    1. P. S. Estive pensando e por causa desse teu artigo pensei em não mais desistir de vocês. Abraço

  1. Não li o relato (e que falta fazem mais desses no jornalismo esportivo atual), mas vi a luta. Lendário! Ali é para sempre.

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