Josias TeófiloMosteiro de São Bento, em Olinda

O barroco e a identidade brasileira

O estilo surgiu no contexto da Contrarreforma, em que o elemento retórico era preponderante – buscava-se convencer, converter
24.03.23

O barroco é a alma do Brasil. O título do livro do poeta Affonso Romano de Sant’Anna (Barroco, alma do Brasil) resume bem o papel do estilo que primeiro se cristalizou no nosso país. Em Imagem e Persuasão – Ensaios sobre o Barroco, Giulio Carlo Argan defende que para entender o barroco não se deve recorrer aos livros sobre arte da filosofia clássica, como a poética de Aristóteles, mas aos livros sobre retórica.

É que o barroco surge no contexto da Contrarreforma, a reação da Igreja Católica ao avanço do protestantismo, em que o elemento retórico era preponderante – buscava-se convencer, converter. Os ecos da Contrarreforma chegaram ao Brasil através da arte, mas, no nosso país, o elemento retórico tinha outro aspecto, missionário e jesuíta. O Brasil já nasceu sob a égide do catolicismo – e este é, segundo Gilberto Freyre, o cimento da identidade nacional. Aqui na Terra de Santa Cruz não havia Reforma Protestante, mas havia a intenção de converter os índios e propagar no novo continente a fé católica. Jamil Almansur Haddad relaciona a origem do espírito barroco a um homem: Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Diz ele: “Admite-se hoje que o Barroco seja a arte deste formidável movimento espiritual que passou à História com o nome de Contrarreforma e de cujos ideais religiosos a Companhia de Jesus foi arauta e propagadora”.

Mas o que é o barroco? Segundo Heinrich Wölfflin, o barroco se define como “pictórico, exprimindo-se em profundidade, por meio de formas abertas, alcançando unidade indivisível e clareza relativa”, diferente do clássico, com suas formas fechadas e de absoluta clareza. Só que não há, entre os dois estilos, uma ruptura, mas uma evolução natural no sentido da exuberância cada vez maior das formas – a Basílica de São Pedro, em Olinda, é a maior testemunha disso.

Mais apropriada ao contexto brasileiro é a definição do já citado Jamil Almansur Haddad, de caráter mais antropológico. Ele diz que o barroco é o espírito das contradições profundas, oriundas do contexto em que o homem da época vivia. Como exemplo, ele cita o poeta Gregório de Matos, cuja obra foi separada pela Academia Brasileira de Letras em sua faceta satírica e sacra: “O Boca do Inferno era também o Boca do Céu. Contraditório como o espírito barroco”.
Gilberto Freyre ressalta um aspecto absolutamente singular da colonização. Portugal, um país pequeno, precisou ocupar um território na América, mas não tinha gente suficiente para isso. Foi preciso afrouxar a moral católica para colonizar um espaço tão grande. Jerônimo de Albuquerque, por exemplo, colonizador português, que criou o primeiro engenho de Pernambuco, teve cerca de 24 filhos, e foi apelidado de Adão Pernambucano.

Jamil Almansur Haddad descreve os conventos da Bahia durante a colonização como lugares que mesclavam devoção e pecado, o que acontecia também em Roma. Segundo ele, as estatísticas do começo do século 16 provam ser maior o número de prostitutas que de senhoras honestas. Dentre as primeiras pregações de Santo Inácio de Loyola estavam principalmente mulheres de má vida. O melhor de tudo é a interpretação que Jamil Almansur Haddad faz desse contexto: “Quadro absolutamente característico do barroco: em que as criaturas sentindo inexoravelmente a morte como uma absoluta e atuante presença, de um lado perdem-se, pelo ideal de gozar ao máximo o efêmero minuto que passa, e o mesmo pensamento da morte, trazendo em si implícita a preocupação da salvação da alma – arrasta a mulher para os rastros do jesuíta, transformando-a portanto em santa”. Deve ser por isso que Maria Madalena é exaustivamente representada em pinturas barrocas.

Eugenio D’Ors diz que, na Europa, só existem dois corpos simples da cultura: Grécia e Portugal. Um representa o clássico puro, o outro o arquétipo do barroco. “O resto talvez seja uma questão de dose“, ele acrescenta. E o Brasil não deixa de ser esse imenso Portugal, como diz Evaldo Cabral de Melo. Mas a colônia não só recebeu passivamente o estilo, ela deu acréscimos originais.

O principal autor a dar um traço absolutamente original foi Aleijadinho, tanto na escultura quanto na arquitetura. Seu gênio inconfundível foi exaustivamente estudado por Germain Bazin, curador do Museu do Louvre e historiador da arte. Bazin, que viajou o Brasil catalogando a arquitetura barroca, e revelou ao mundo Aleijadinho, chegou a dizer que “a última vez que Deus esteve na arte do Ocidente foi por meio da obra de Aleijadinho”.

Ele diz ainda que, enquanto o espírito francês é gótico, o espírito brasileiro é barroco. Outro representante exemplar do barroco foi Padre Antonio Vieira, com seus sermões – de caráter sempre catequético, retórico. Alguém poderia estudar a obra de Padre Antonio Vieira em comparação à igrejas barrocas luso-brasileiras, assim como Panofsky estudou obra escolástica e a arquitetura gótica. O espírito do tempo se condensa em obras que transcendem gerações. Não é possível pensar o Brasil sem trazer à tona esses momentos fundadores da cultura e da nacionalidade.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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  1. Brilhante. Sou completo ignorante quando o assunto é arquitetura, e ler alguns dos seus artigos sobre a mesma é fascinante, especialmente como você atrela essa forma de arte ao país, sua história e cultura.

  2. Adorei o artigo! Fico feliz de ver uma coluna sobre arte na Crusoé 👏👏👏 o barroco é o estilo que fala mais fundo na minha alma , sou apaixonada

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