ReproduçãoCena do filme O Exorcista, de William Friedkin: estreia atrasou dois anos por causa da censura

O erro mais comum sobre arte

Não se pode confundir a representação de algo com seu endosso ou apologia
25.05.23

Em 6 de janeiro de 1977 o jornal A Notícia, de Manaus, publicou uma cobertura da estreia do filme O Exorcista, de William Friedkin, na cidade. A estreia, ocorrida no Cine Veneza, atrasou dois anos por causa da censura federal. Uma multidão compareceu ao cinema, mesmo sob a chuva, onde aconteceu um grande tumulto. Algumas pessoas se feriram.

O título que o jornal deu à cobertura foi: “Povo virou cavalo do cão para ver e adorar o diabo”.

Na tarde do dia 17 de setembro de 1869 tocaram os sinos da Igreja de São Francisco, no Recife. Era sinal de incêndio. O Teatro de Santa Isabel, construído 19 anos antes, pegou fogo. Restaram de pé apenas as paredes laterais, o alpendre e o pórtico. Estava sendo preparada no teatro uma encenação do Fausto, a lenda do homem que fez um pacto com o demônio. Na época, populares atribuíram o incêndio à representação de “coisas do diabo” no teatro.

Nos dois casos se confundiu representação com endosso ou apologia. É o erro mais comum ao se interpretar obras de arte. Tal tipo de confusão não ficou no passado. Em 2022, o deputado André Fernandes pegou um trecho do filme Como se tornar o pior aluno da escola, baseado no livro de Danilo Gentili, e fez uma denúncia de apologia à pedofilia. No filme, o personagem de Fabio Porchat fazia uma proposta indecente a um garoto de 13 anos. O então ministro da Justiça, Anderson Torres, chegou a determinar que o filme fosse removido das plataformas de streaming, no que foi solenemente ignorado, tal a absurdidade do pedido.

Mais uma vez, confunde-se representação com endosso.

Em 17 de maio último, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a retirada do especial Perturbador, do humorista Léo Lins, do Youtube, que já tinha 3 milhões de visualizações. A juíza Gina Fonseca Corrêa proibiu também o humorista de produzir, distribuir ou manter no ar “conteúdo depreciativo ou humilhante a qualquer categoria considerada minoria ou vulnerável“. Trata-se do mesmo erro. Uma piada, especialmente no palco, para uma plateia de um stand-up, não é uma descrição da realidade, nem uma defesa daquilo que é dito. O comediante Oscar Filho comentou, sobre o caso: “Qualquer imbecil assiste ao show do Léo Lins ou qualquer outro humorista que faça piadas ácidas, e percebe que são piadas. É entretenimento assim como Tarantino faz jorrar sangue na tela.”

Tudo que é possível ao ser humano imaginar cabe dentro de uma obra de arte ou de entretenimento. O artista não necessariamente concorda com o que dizem seus personagens, ou com o sentido geral da história, ou com o plot da piada. A arte, a cultura e o entretenimento são exatamente formas de descolar da realidade cotidiana, do mundo dos fatos concretos.

Uma cena engraçada ilustra bem esse tipo de confusão. Em 2018, um sujeito agrediu um dos soldados romanos da apresentação da Paixão de Cristo na cidade de Nova Hartz, no Rio Grande do Sul. Segundo testemunhas, o homem dizia que ia impedir Jesus de morrer na cruz, e atacou com um capacete o ator que interpretava o soldado romano. A cena filmada viralizou em rede social e virou meme. No caso, trata-se de uma pessoa com problemas mentais, mas não deixa de ser uma confusão semelhante aos exemplos acima.

É que a linguagem artística opera num âmbito diferente do jornalismo, que é mais descritivo, e da publicidade, que é retórica, leva ao convencimento e mobiliza à ação. A arte não tem e não deve ter limites, porque ela não se refere necessariamente a coisas reais.

A representação da máfia não é uma apologia da máfia, a representação de uma perversão sexual não é apologia dessa perversão, e por aí vai. Isso parece óbvio, mas é preciso relembrá-lo de vez em quando, em tempos de militância em rede social, onde tudo é baseado nas reações emocionais mais primitivas, e em que a direita é cada vez mais tomada pelo moralismo, e a esquerda pelo identitarismo.

Josias Teófilo é cineasta, escritor e jornalista

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Nessa toada, não se poderá mais encenar nada sobre o Holocausto e o stalinismo. Só historinhas açucaradas e edificantes. Nada de realidade. Gente burra…

  2. O suposto humorista conseguiu na verdade tudo que queria: notoriedade. Não quis fazer piada ácida. Não quis humilhar vulneráveis ou minorias. Ele apenas e simplesmente encontrou um veio de ouro ainda não explorado , já que outros supostos humoristas já tinham explorado o veio religioso e conquistado a fama que procuravam. Agora " minorias e vulneráveis" são o novo veio de polêmica monetizada, e muito bem." Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal"(Millôr). Polêmica dá lucro.

    1. Virou polêmica porque os insanos extremistas assim o quiseram. Bem feito

Mais notícias
Assine agora
TOPO