ReproduçãoO debate sobre Léo Lins girou apenas em torno de ser ou não legítimo seu humor

Pondé e a censura líquida que secou

Morrendo o conceito clássico de liberdade de expressão, morre também, por consequência, sua oponente
25.05.23

Na última semana, o filósofo Luiz Felipe Pondé escreveu um artigo na Folha de S. Paulo chamado “Só sendo irrelevante você escapa da censura líquida de hoje”. O artigo traça um paralelo curioso entre o momento de nosso país e a tese do sociólogo Zygmunt Bauman, que cunhou o termo “líquido” para descrever como a modernidade estilhaçada nos lança valores diluídos, fazendo com que os vivenciemos de forma descartável e insensível. No caso da censura, por estar dispersa, não a localizaríamos concretamente para a enfrentarmos.

Acontece que a coisa é muito pior que isso. Na última semana, por exemplo, embora o caso Léo Lins tenha sido amplamente comentado na imprensa, pouco se tratou sobre a censura imposta a ele. O debate girou apenas em torno de ser ou não legítimo seu humor, tanto que quase nenhum profissional do Direito foi chamado a se manifestar. Quando alguém se lembrava da censura ao humorista, logo o foco era desviado para suas piadas potencialmente ofensivas a esta ou àquela minoria.

Há uma canção chamada “Haicai”, do compositor Luiz Tatit, em que o eu lírico sai correndo atrás da musa “Sofia” para lhe mostrar um poema e ela não lhe dá a mínima:

 

“Sofia, eu tô aqui esperando pra mostrar pra você aquela poesia.

Que eu te lia, te lia, te lia. Você não ouvia, não ouvia, não ouvia.

Hoje é o dia, vem ouvir, vai.

Ela é pequenininha, parece um haicai”

 

Falar de censura, mesmo que rapidinho, como na canção, tornou-se uma chatice inconveniente. Talvez a censura tenha se tornado tão irrelevante ao debate público quanto a poesia sempre foi à Sofia de Luiz Tatit, e ao brasileiro em geral. Se para poder falar mal do trabalho de um humorista indesejado foi necessário ignorar a censura, que seja.

Mas não significa que ninguém veja concretamente a censura, que ela esteja diluída e imperceptível — e é nesse ponto que divirjo de Pondé. Ela está evidenciada na sentença contra Léo Lins, na estátua queimada de Borba Gato, na repulsa ao extraordinariamente genial escritor Monteiro Lobato. Enxergamos a censura personificada nesses episódios, mas não ligamos, a naturalizamos, virou uma velha tia que mora em casa, um agregado do debate público. Uma pequena turbulência que vale a pena passar para chegarmos a nosso destino: calar o que não desejamos ouvir. De excrescência jurídica, a censura foi promovida a aliada. Não está diluída, nós é que nos submetemos.

No sentimento íntimo das pessoas, o risco de censura não é mais motivo suficiente para impedir que se aprove um texto de Projeto de Lei, como o 2630/20, das Fake News, nem obstáculo suficiente para nos indignarmos com decisões proferidas nos últimos tempos por nossa Suprema Corte. A censura está lá, claríssima, palpável. Não a enfrentamos apenas porque já nos acomodamos a ela.

As próximas décadas serão ainda piores. Morrendo o conceito clássico de liberdade de expressão, morre também, por consequência, sua oponente, a censura. O discurso único poderá vigorar sem as impertinências da liberdade de expressão e sem as inconveniências da censura. Não estaremos no tempo da censura líquida, pois já não havendo mais nada a censurar, tendo toda a vontade de divergência à sua volta morrido, ela terá secado. Embora seja estranho pensar, enquanto alguém se importa com censura é porque há desejo de liberdade. O futuro é sem ambas. E esse é o mundo que deixaremos para os filhos que deveríamos ao menos ter a delicadeza de não ter.

 

André Marsiglia é advogado constitucionalista e professor. Pesquisa casos de censura no Brasil e no mundo.

@marsiglia_andre

andremarsiglia.com.br   

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. As colunas do Marsiglia são sempre oportunas e certeiras. A partir do momento que o debate deixa de ser sobre a censura ela já venceu

  2. É muito assustador, mas é fato. Estamos vivendo num castelo de areia e a maré está subindo, subindo, subindo e não havendo oposição forte e imediata, não sobrará nada daquilo que construímos com liberdade.

  3. É plausível refletir sobre a necessidade explícita de causar polêmica e não de fazer qualquer tipo de manifestação artística ou não. É a polêmica que impulsiona os seguidores e as suas redes monetizadas. Para essa reflexão talvez seja interessante buscar também no humor a resposta: "Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal"(Millôr Fernandes).Não é para provocar risos, é para provocar polêmica e viralizar e ser virótico.

    1. O espaço de comentários é destinado a comentar o artigo e não os comentários dos outros. Respeite minha opinião, pois respeito a sua. Humorista que usa minorias e vulneráveis para suas piadas infames são de coloração radical de direita, isso é conceitual. Idealistas sim por sua suposta postura liberal de liberdade de expressão. É conceitual. O ponto central da crítica é o ganho financeiro com a monetização da polêmica. Polêmica= Dinheiro. Na próxima vez vou desenhar.

    2. Humoristas não são idealistas. Piada não é ideologia. Demonizar pessoas que conseguem agregar 1,7 milhões de pessoas com piadas é deprimente. Falta pouco para nossas clássicas piadas de português virarem crime. As de "negos" já se foram. As de deficientes, não pode mais. As de "bixinhas" ou "putas", crime hediondo. As de políticos, crime de lesa pátria. Fala sério, podemos deixar de ser sérios em algum espaço?

Mais notícias
Assine agora
TOPO