Foto: Marcello Casal/Agência BrasilHospital do SUS: swe dependesse do sistema, meu amigo estaria agora dentro de um tupperware, em forma de cinzas

O SUS é a verdadeira medicina alternativa

Nenhum tratamento no SUS pode ter "eficiência cientificamente comprovada” se só é oferecido depois que a pessoa foi cremada
04.08.23

Um amigo meu teve câncer no ano passado. Fui eu, na verdade, mas gosto de ser discreto nessas coisas para ir criando uma falsa reputação de mistério e elegância. Então vamos dizer que foi o meu amigo.

Como ele não tinha plano de saúde (é um imbecil), e como os gastos de uma operação complicada seguida de várias sessões de quimioterapia eram o equivalente a comprar meia bolsa Birkin ou doze chocolates da marca equatoriana To’ak por mês, ele teve que recorrer ao famoso e tão amado SUS.

Os pacientes de câncer, disseram os médicos para o meu amigo, têm que começar o tratamento quimioterápico no máximo três meses depois do diagnóstico. Bem. Muitas pessoas falaram para o meu amigo que isso não era problema e que o SUS é rápido na área de oncologia. Até tem que ser, eles diziam, porque se o tratamento não começar nesse prazo “o SUS é multado”, diziam. De modo que ao ouvir isso o meu amigo (repito que é um imbecil, embora incrivelmente charmoso, lábios carnudos etc.) acreditou e ficou esperando ser chamado pelo SUS para o início do tratamento.

Três meses se passaram. Três meses com o meu amigo esperando em casa, o câncer não sendo tratado, e os amigos do meu amigo no Instagram postando fotos deles mesmos tomando vacina da Covid com a hashtag #euamooSUS, #vivaoSUS, #SUSseulindo etc.

Ele moveu uma ação contra o governo para que o tratamento fosse feito logo; mas a própria Justiça foi um pouco lenta e no final meu amigo foi para o sistema privado, pagou pelo tratamento e tudo está bem. Mas acho que, quando o meu amigo ouve as pessoas elogiando o SUS, sei lá, ele tem lá as opiniões firmes dele; porque se dependesse do SUS ele estaria agora dentro de um tupperware, sob a forma de cinzas.

Mas falo tudo isso a propósito do livro recém-lançado Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério (editora Contexto), de Natalia Pasternak e Carlos Orsi.

Esse livro tem causado alguma celeuma, ou, para usar palavras ainda mais velhas, um quiproquó, um brouhaha, na internet e nos jornais, por atacar homeopatia, acupuntura e psicanálise como “pseudociências” que não deveriam ser oferecidas pelo SUS.

Como disse Pasternak, uma divulgadora científica que apareceu numa lista feita pela BBC das 100 mulheres mais importantes do mundo junto com a Fat Amy de Pitch Perfect 1, 2 e 3, para a Folha de S.Paulo: “Pseudociências não são inócuas. Elas são danosas para a sociedade. A gente tomou o cuidado de não ofender pessoas. A gente discute temas, assuntos. Mas pessoas morrem por acreditar em bobagens”.

A paixão nominal de Pasternak e Orsi pela ciência me lembra um grupo que havia no Facebook chamado “I F… Love Science”. Sempre desconfiei de um amor que se declara nesses termos. Ou você se concentra em ciência, porque a ama, ou se concentra no seu amor pela ciência, porque se ama. Um amor ainda mais afastado da ciência é o seu “f…” amor pela ciência. A ciência em algum ponto foi deixada lá pra trás pelo seu deslumbre com a sua autoimagem de pessoa altamente cética e científica e coisa e tal.

Sei lá eu se acupuntura, por exemplo, tem eficiência cientificamente comprovada. Ela tem eficiência anedoticamente comprovada, por mim. Quando eu tinha vinte e dois anos, fiz um tratamento de acupuntura para me livrar da rinite que tinha desde os onze anos, todas as manhãs sem falta. No dia seguinte à primeira sessão, a rinite não veio. E continuou desaparecida durante trinta e poucos anos.

No entanto, ao discutir com um médico cético-de-internet esta semana, que saiu empolgado com o livro da Pasternak rindo de medicina alternativa, ele explicou o sumiço da minha rinite no dia seguinte à primeira sessão nestes termos: “Rinite faz parte da marcha atópica, a história natural da doença (tal qual a asma) é melhorar sozinha!”.

Ok, céticos. Continuo achando mais racional achar que a acupuntura funcionou no meu caso, no lugar de insistir em acreditar em explicações que requerem coincidências claramente implausíveis.

Mas meu ponto nem é esse. Meu ponto é o SUS. Meu ponto é que nenhum tratamento oferecido pelo SUS pode ter “eficiência cientificamente comprovada” se só é oferecido depois que a pessoa está cremada e dentro de um potinho.

Um tratamento completamente não científico aplicado numa senhorinha crédula é ainda levemente mais científico que um tratamento científico aplicado num cadáver.

É obviamente racional preferir tratar a sua emergência cardíaca só com psicanálise enquanto você ainda está vivo (“e como essa dor faz você se sentir?”), a tratá-la com uma operação oito meses depois que você se mudou para um jazigo.

Acreditem vocês no SUS; eu sóu cético e prefiro acreditar em homeopatia, quando aplicada num paciente que ainda respira.

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  1. De fato, o tal SUS, deixa muito a desejar. Quase 1 ano pra marcar raio X da mão, e até agora nada. Minha irmã, sabe bem como é.

  2. O autor deveria ter se limitado a criticar a total inoperância do SUS - no que tem completa razão. Agora, ficar criticando a Ciência e defendendo o uso de práticas reconhecidamente inócuas segundo testes feitos em populações estatisticamente significativas é, desculpe dizer, demonstração de ignorância. E não, não é melhor tratar alguém com um tratamento errado do que "não fazer nada". Na verdade, dá na mesma.

  3. Ciência é um método para se descobrir fatos, não necessariamente verdade e é dinâmica. Há todo um método para se comprovar a eficácia, a eficiência e a segurança de intervenções em saúde, internacionalmente validadas. Estás intervenções devem ser aplicadas no paciente certo, na hora certa. Se se aplica a intervenção no paciente errado e/ou na hora errada, não há benefício. Mas isto depende da gestão do sistema e não da ciência. Exaltar pseudociência em detrimento da ciência não é a solução.

  4. As pessoas que se curaram ou melhoraram a saúde usando medicina alternativa não se importam com discussões que levam a lugar algum. Concordo com você que ainda por cima trata com leveza assunto espinhoso.

  5. Os pseudointelectuais tem a mesma característica dos pseudocientistas: encantam pelas palavras. Argumentar que qualquer tratamento é melhor antes que depois de morrer é absolutamente verdadeiro. É claro que o colunista não vai contextualizar sua rinite, dizendo que outros tratamentos estava fazendo, nem que remédios estava tomando, afinal, depois de anos com rinite ele dizer que não estava fazendo tratamento nenhum ou ingerindo remédio algum não é crível. Exceto por idiotice.

  6. Entendo a crítica principal à ineficiência de um sistema de custo altíssimo e de serviços paupérrimos (que subscrevo, aliás), mas daí ao salto para a qualidade da medicina alternativa vai um pedaço. O seu valor é meramente como placebo, que não deve ser descartado, mas também não financiado e oferecido pelo mesmo sistema tão horroroso, como evidente pela sua própria experiência

  7. Gosto muito dos seus textos e você é muito engraçado. Mas tenho alguma condição técnica de discutir o assunto e você não. Seu texto, fora a escrita charmosa, equivale a evidência científica de um influencer. Tanto tratamentos sem evidência científica mínima quanto tratar alguém depois de morto é ineficiente e muito caro (já que é inútil). Mas não concordo com generalizações como “acupuntura não funciona”. Não funciona para quê? Ausência de evidência não significa evidência de ausência.

  8. Sempre faço acupuntura com um cardiologista que resolveu se dedicar á essa "ciência oculta". Se especializou na China. Não resolveu o problema de câncer de minha mãe, mas trata dos efeitos colaterais dos remédios fortíssimos que ela tem que tomar. E mais, ele aceita Unimed! Coisa rara aqui em Curitiba. Já o SUS não tenho boas experiências , principalmente com os que atendem. Pensam que são os "tais". Humilham uma mãe com nenê no colo e fazem esperar por mais de 3 horas na fil

  9. Salve! Alexandre. Prazer em lê-lo (que lingua a nossa!). A homeopatia realmente funciona, nossa família é testemunha disso; acumpuntura também funciona, que o digam os milhões de chineses que utilizam a técnica; já , psicanálise não tenho idéia.

  10. Tratei incidências seguidas de resfriados fortes com homeopatia e muito raramente passei a ter depois. Minha mãe tratou dores articulares com acupuntura e não curou o problema, mas aliviou a dor de uma forma que chamou a atenção. Placebo? Pode ser. Quando tudo o mais falha…

    1. Humano é aplicar o tratamento correto à pessoa, o que de fato salva vidas, ao invés de ficar embromando ela com práticas sem comprovação. Não me adianta ter um médico alternativo muito simpático, amigo e "humano" se o tratamento dele não cura a minha doença.

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