Foto: Wikimedia CommonsJ. Robert Oppenheimer (1904-1967), o "pai da bomba atômica", cuja história é contada no filme de Christopher Nolan

Oppenheimer pede: “toca Raul”!

Filme sobre o físico americano indaga como deve ter sido para os cientistas carregar a responsabilidade de trazer uma nova era de terror global
04.08.23

Muito antes de Raul Seixas escrever a canção “Gita”, na qual ele se define como sendo o “início, o fim e o meio”, o poema hindu já havia entrado para a história ocidental ao servir de pano de fundo para a épica história do físico norte-americano J. Robert Oppenheimer, que liderou a criação da bomba atômica em uma corrida contra alemães e soviéticos durante a Segunda Guerra. A detonação do primeiro teste, que foi batizado com o título de outro poema — “Trinity” (trindade), de John Donne —, pariu a morte na sua dimensão mais extensa e fez com que Oppenheimer, no momento do espanto, recorresse aos versos em sânscrito antigo para tratar da sua própria condição como recém-chegado “destruidor de mundos”.

O filme que conta a saga da bomba e de Oppenheimer, dirigido por Christopher Nolan, foca no drama interior do físico, que secundariza a dor das centenas de milhares de vidas japoneses apagadas nos clarões das explosões de Hiroshima e Nagasaki. As perguntas que permeiam o personagem, mas que podem ser feitas a toda a humanidade, indagam como deve ter sido para os cientistas carregar a responsabilidade de trazer uma nova era de terror global, se as circunstâncias da guerra eram justificativas suficientes para evitar remorsos e se os responsáveis, mesmo cientes das possibilidades apocalípticas, seguiram em frente apenas pela obra — isto é, para se testarem e verem até onde poderiam ir, considerando as condições excepcionais de recursos que nunca mais se repetiriam. O risco de que o resultado obtido pudesse devorar a todos em um instante era apenas um detalhe que não impediria o nascimento da maior obra da história da ciência aplicada.

É impossível responder a qualquer uma dessas questões e mesmo imaginar quantos dilemas mais podem ser elaborados. Mas chama a atenção a capacidade que a alma humana tem de criar artifícios para conseguir lidar com aquilo que é grande demais para ser encarado por um indivíduo ou mesmo por civilizações inteiras. É nesse contexto que a mitologia hindu de Gita ajuda a entender Oppenheimer e a nós mesmos.

Dois artigos distintos sobre o uso desse mito por Oppenheimer, escritos por Patty Templeton, do National Security Research Center, ligado à instituição de pesquisa de Los Alamos, e por Alex Wellerstein, historiador de ciência e armas nucleares do Stevens Institute of Technology, argumentam que há uma interpretação equivocada no uso, pelo físico, do verso “agora eu me tornei a morte, o destruidor de mundos” quando o teste da bomba é bem-sucedido. Oppenheimer não se torna o agente apocalíptico, mas assume a condição de um observador passivo que apenas realiza o que lhe cabe fazer e que não tem responsabilidade pelo que está por vir.

O poema conta a história de um príncipe hindu, Arjuna, que não deseja entrar em guerra contra seus primos, irmãos, professores e compatriotas pela sucessão do trono. Em um diálogo com Krishna, um deus personificado em um conselheiro, ele é levado, no entanto, a entender a sua obrigação de travar o conflito, pois esse seria o seu carma. Wellerstein conta que Krishna apontou três razões para que o relutante Arjuna mudasse de ideia: primeiro, ele era um soldado e seu dever seria lutar (não importando qual luta); segundo, definir o destino de Arjuna seria o trabalho de Krishna (e não do próprio Arjuna); por fim, apenas se Arjuna confiasse em Krishna teria sua alma preservada pela divindade. Perto de ser convencido, o príncipe pede a Krishna que se mostre em sua grandeza e com a força de mil sóis. Com mil formas, ele se revela e se afirma: “Agora eu sou a morte, o destruidor de mundos”.

Por analogia simples e absurda, a bomba é Deus, é o destino, que viria ao mundo pelas mãos de quem quer que fosse, e Oppenheimer é o príncipe sem escolha, aquele que, embora corajoso e nobre, não controla a própria sorte. Toda a responsabilidade recai sobre as circunstâncias e, mitologia à parte, cria-se um paradoxo sobrenatural no qual se escapa da própria responsabilidade sem, contudo, recorrer ao cinismo. O ponto é que, não havendo força interior que não se dobre à realidade, ao medo e ao orgulho, atribuir nossas escolhas a forças superiores diante de fardos muito pesados talvez seja a única forma de caminhar pelo labirinto ético sem o risco de enlouquecer.

Nesse sentido, a “Gita” de Raul Seixas poderia tranquilamente ter sido tocada na vitrola de Oppenheimer se não fosse o tempo entre a morte do físico (1967) e a gravação da canção (1974). Sendo “o tudo e o nada”, “os olhos do cego e a cegueira da visão”, o roqueiro baiano talvez dissesse ao professor americano que o que o assusta realmente não é a bomba, mas a efemeridade do espírito, que mesmo diante de todas as conquistas e realizações nunca deixará de também ser “a beira do abismo”.

 

Leonardo Barreto é doutor em ciência política pela UnB (Universidade de Brasília)

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  1. Se a vinda do pior é inevitável, que não seja pelas minhas mãos. “Obedecer ordens” foi o argumento usado por muitos criminosos nazistas.

  2. Aqueles cientistas estavam numa situação impossível, encurralados entra a criação de algo horrível e o risco de serem superados pelos nazistas, num primeiro momento, ou prolongar a guerra com o Japão, arriscando ainda mais vidas, num segundo momento. Numa tal situação, qualquer racionalização cínica ou escapismo tolo é compreensível e deve, na minha opinião, ser encarado com compaixão

  3. Essa discussão sobre Oppenheimer é um pouco sem sentido. Afinal, considerando os conhecimentos da física na época, se não fosse Oppenheimer, alguém logo teria criado a bomba. E por muito pouco não foram os nazistas que fizeram isso. Aí, a história teria sido bem outra. Por isso, nesse caso, atribuir a responsabilidade a uma determinada pessoa é bem ingênuo.

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