ReproduçãoA magistrada, em viagem ao Japão: no trabalho, fama de durona

A juíza que desmontou Lula

Quem é a paranaense de 44 anos que substituiu Sergio Moro e fez o ex-presidente petista, já condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, gaguejar no banco dos réus
15.11.18

Quando o juiz Sergio Moro foi anunciado como ministro da Justiça do futuro governo Bolsonaro, os holofotes da Lava Jato passaram a mirar uma jovem juíza paranaense, então desconhecida. Gabriela Hardt, 44, é a substituta na vara de Moro e, temporariamente, será a responsável por conduzir os processos restantes da maior operação anticorrupção da história do país. Em Crusoé, leitores elogiavam a decisão de Moro de ir para o governo. Um dos comentários, contudo, focava em Gabriela. “Ela é muito mais rigorosa. A conheço muito bem”. O autor era Jorge Hardt Filho, pai da juíza.

Gabriela Hardt, que ingressou na magistratura em 2009, é conhecida por ser firme. Antes de se tornar juíza, foi servidora da Justiça Federal, em cargo de nível médio. Quando vestiu a toga pela primeira vez, aos 34 anos, estava casada e tinha duas filhas. Uma delas ficou com o pai, em Curitiba, e a outra a acompanhou na mudança para o interior, onde foi lotada inicialmente. “Tive que dividir minha família. É uma carreira que exige algum sacrifício de ordem pessoal”, disse a juíza certa feita, ao contar as dificuldades do início da profissão.

Formada na Universidade Federal do Paraná e ex-aluna de Moro em um curso de especialização, Gabriela viu seus caminhos cruzarem com a Lava Jato em 2014, quando assumiu o posto de juíza substituta da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde trabalhava o magistrado. Logo o gabinete de Moro passaria a se dedicar exclusivamente à operação. À recém-chegada juíza cabia substituí-lo nas ausências. Não faltou trabalho. Não faltaram casos rumorosos. Ela chegou a mandar prender José Dirceu, por exemplo.

Agora como a principal juíza da Lava Jato, foram necessários menos de dois minutos do interrogatório de Lula, na última quarta-feira, para Gabriela Hardt mostrar que, de fato, o rigor de que Jorge Hardt Filho falava na seção de comentários de Crusoé não era apenas palavrório de pai orgulhoso.

ReproduçãoReprodução/JFPRLula durante a audiência: o petista levou um pito histórico
Ao longo das inúmeras audiências com Sergio Moro, a defesa do petista tinha como estratégia interromper o juiz, questioná-lo e testar o limite da paciência dele. Era uma maneira de reforçar a narrativa de vitimização e também tentar fazer Moro perder a cabeça — o que serviria para contestá-lo posteriormente. Com Gabriela, Lula tentou o mesmo. Quebrou a cara. A audiência tinha começado havia pouco tempo quando o ex-presidente, preso e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em outro processo, disse que não sabia do que estava sendo acusado ali. Puro cinismo. Ele tentava, mais uma vez, dizer que tudo era uma grande invenção da Lava Jato.

Acontece que a audiência era de um processo com múltiplas provas sobre as ligações do ex-presidente com o famoso sítio de Atibaia, reformado por empreiteiras amigas. Lula diz não ser dono da propriedade, mas a frequentou por anos a fio, sempre acompanhado de seguranças da Presidência da República. Também lá ele guardava muitos dos seus pertences. Na audiência, houve momentos em que a juíza teve até que explicar que a ação não era para discutir o nome de quem aparecia como dono do imóvel no cartório – o sítio está em nome de dois amigos e sócios dos filhos do ex-presidente.

E foi assim que, com 93 segundos da audiência, deu-se o seguinte diálogo:

Lula – “Doutora, eu só queria perguntar, para o meu esclarecimento, porque eu estou disposto a responder toda e qualquer pergunta. Eu sou dono do sítio ou não?”

Gabriela Hardt – “Isso o senhor que tem que responder, não eu, doutor. E eu não estou sendo interrogada neste momento.”

Lula – “Quem tem que responder é quem me acusou.”

Gabriela Hardt – “Doutor… Senhor ex-presidente (ela se corrige), isto é um interrogatório e se o senhor começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema. Então vamos começar de novo. Eu sou a juíza do caso. Eu vou fazer as perguntas que preciso para o caso ser esclarecido. Eu conduzo o ato.”

Segue-se uma tentativa de reclamação por parte dos advogados do ex-presidente. E Lula, de novo, tenta desafiá-la: “Pelo que eu sei, é meu tempo de falar”. Era uma maneira de justificar por que achava que poderia dizer o que bem quisesse, incluindo tentar interrogar a juíza. Gabriela Hardt o desmontou com um pito monumental. “Não. É o tempo de responder as minhas perguntas. Eu não vou responder interrogatório nem questionamentos aqui. Está claro? Está claro que eu não vou ser interrogada?”. Lula faz uma pausa e não responde. Até que abre os braços e diz: “Eu não imaginei que fosse assim, doutora”. “Eu também não. Eu também não imaginava. Então vamos começar as perguntas. O senhor fica em silêncio ou responde”, arrematou Gabriela. Há tempos não se via Lula, acostumado ao enfrentamento, baixar a cabeça constrangido. Sobrou até para o advogado dele, Cristiano Zanin, que tentou pegar o microfone para acudi-lo, mas foi prontamente repreendido pela magistrada: “Senhor Cristiano Zanin, eu não lhe concedi a palavra”.

ReproduçãoReproduçãoA juíza na versão aventureira: ela reagiu aos arroubos machistas do réu
Até ali, o depoimento do ex-presidente não tinha nem cinco minutos. Mas já era suficiente para mostrar que a juíza substituta chegara preparada para as provocações de Lula. Também era mais uma demonstração de que, a cada dia que passa, o petista tem menos sucesso na tentativa de emplacar sua narrativa de que a Lava Jato é uma grande conspiração contra ele.

Um outro trecho da audiência é igualmente ilustrativo do derretimento de Lula. É quando a juíza faz uma pergunta simples em busca de explicação para um fato grave. Se Lula diz que nunca foi dono do sítio, mas OAS e Odebrecht reformaram a propriedade, ela pergunta o que muitos gostariam de saber: “O senhor não estranhou uma grande empreiteira fazendo uma reforma da cozinha de um sítio que o senhor usa?”. Lula gaguejou e deu partida a uma digressão. Falou “não” sete vezes. “Não era uma grande empreiteira fazendo a reforma. Era uma pessoa com quem eu tinha relação há mais de vinte anos fazendo uma coisa sem falar de caixa geral (de propinas da Petrobras) e acho que ele tinha cobrado (pela obra)”, tentou explicar.

O tal amigo era Léo Pinheiro, presidente da OAS, que desviava dinheiro da Petrobras em contratos superfaturados e bancava gastos do petismo e de seu líder maior. Lula apelou até para a manjada estratégia de que não sabia de nada. Falou que desde 1975 não paga suas próprias contas – por isso, não teria atentado para quem bancava a reforma do sítio.

ReproduçãoReproduçãoA adega de Lula no sítio de Atibaia: ele continua dizendo que não era o dono
 

Já na segunda metade do depoimento, Lula faz uma ameaça. Diz que se fosse presidente do PT, pediria aos militantes que entrassem com centenas de processos contra os investigadores – como se ele precisasse de algum cargo para influenciar a militância. De imediato, tomou mais uma bronca da juíza. “O senhor está intimidando a acusação e não vou permitir. Vamos mudar o tom. O senhor não faça isso de novo. O senhor está estimulando os filiados ao partido a tumultuar o processo e os trabalhos. Se isso acontecer, o senhor será responsável.” Lula tentou se esquivar: “Isso era três anos atrás. Lamentavelmente, não fizeram.”

A Lava Jato evidenciou uma safra de juízes — no Paraná, em Brasília e no Rio – que agem com rigor em casos de corrupção envolvendo ricos e poderosos. Gabriela Hardt é a primeira mulher a tocar um caso de grande magnitude na operação. E já na primeira audiência com o ex-presidente, ouviu dele insinuações de cunho machista. “A senhora sabe que, não sei se a senhora é casada, mas seu marido entende pouco de cozinha como eu. Não discuto cozinha”, disse Lula. Gabriela Hardt foi seca: “Sou divorciada e não discuto nada de cozinha”.

Lula seguiu na tentativa de alfinetar a Lava Jato e, como de hábito, mirou em Moro. O juiz foi citado pelo petista como “amigo de Alberto Yousseff”, o doleiro-delator que abriu caminhos para a operação. “Doutor, por favor. Ele não vai fazer acusações sobre meu colega aqui. […] É melhor o senhor parar com isso”, interrompeu a juíza.

Apesar de mostrar que estava preparada para o embate com Lula, a tarefa de Gabriela Hardt à frente da Lava Jato é, como já foi dito, apenas temporária. O sítio de Atibaia é um dos casos nos quais a magistrada terá que trabalhar até outro juiz federal assumir em definitivo a vara da Lava Jato. Isso acontecerá apenas quando Sergio Moro deixar a magistratura, em dezembro. Primeiro, ele tirou férias. O novo juiz, ou a nova juíza, será escolhido pelo critério de antiguidade entre os que já têm o grau de juiz titular e manifestarem interesse. Gabriela não poderá chefiar a vara porque, na carreira, ela ainda é substituta.

A juíza divide seu tempo com a natação, um hábito que cultiva desde a infância – em especial, a maratona aquática. Ela também é adepta de esportes radicais e corrida. Nas redes sociais, curte páginas como a de Marina Silva, ex-candidata à Presidência, a do pacote das Dez Medidas Contra a Corrupção defendidas pelo Ministério Público, e a da youtuber Jout Jout, conhecida por defender o empoderamento das mulheres. Também faz parte de um grupo no Facebook que defendeu a nomeação de Moro para o Supremo Tribunal Federal.

JFPRJFPRGabriela Hardt ao ser empossada, em 2009: ela foi aluna de Moro num curso de especialização
Há um elemento especial que a conecta à Petrobras, a grande vítima do petrolão. O pai da juíza foi funcionário da estatal por mais de 20 anos, na cidade de São Mateus do Sul, a 150 quilômetros de Curitiba. Gabriela Hardt, contudo, é discreta, até em família: não tece comentários em casa sobre sua atuação. Quando ainda estava longe dos holofotes, mantinha seu Facebook aberto. Em uma das ocasiões, ela lamentou os ataques que a operação sofria, ainda em 2015. “Eu tenho a sorte de estar acompanhando ‘de camarote’ uma parte da história do país que está sendo muito bem conduzida no gabinete ao lado. Mas confesso que tem dias que me bate um baita desânimo, porque são muitas forças agindo em sentido contrário.” E prosseguiu: “Só pra registrar: o Sergio (Moro) não desanima, ele é imune a frustrações”.

Antes de trabalhar perto de Moro, Gabriela Hardt foi corregedora do presídio de segurança máxima de Catanduvas, no interior do Paraná. Ao falar sobre o cargo, em uma entrevista à associação de juízes, em 2017, ela defendeu mudanças na legislação penal e atacou o preconceito existente no Judiciário. “A Justiça Federal, dentro de todas as justiças, é a que tem a menor representatividade feminina. Em primeira instância, mas principalmente nos tribunais. As discriminações são mais veladas, não são tão explícitas. Mas eu acho que a sociedade ainda exige da mulher uma presença maior nas responsabilidades familiares, em casa, e a carreira de juiz federal nos exige movimentações que, para a mulher, às vezes são mais cobradas.”

Enquanto não se define o novo titular da Lava Jato, ela está à frente do processo de Atibaia. Ele é especialmente relevante em razão da robustez das provas, o que pode fazer a pena total de Lula passar dos 20 anos. Há ainda outras ações penais em curso, como a que envolve a compra de um terreno para sediar o instituto do ex-presidente – essa está pronta para ser sentenciada. Outra ainda trata do esquema de caixa dois montado pelo marqueteiro João Santana juntamente com Guido Mantega, além de casos que envolvem Eduardo Cunha. A juíza também se encarregará de apreciar pedidos de novas operações e diligências feitas pela Polícia Federal a partir da delação premiada de Antonio Palocci – mais uma frente sensível para o PT. O alcance da atuação de Gabriela Hardt ainda é uma incógnita, visto que dependerá de quando um novo magistrado assumirá a Lava Jato. Mas uma coisa é certa: até lá, Lula não será o único a gaguejar na frente dela, no banco dos réus.

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