MarioSabino

Deus: use com moderação

15.11.18

Neste mundo materialista e ideologicamente patrulhado, você não precisa sentir vergonha de acreditar em Deus. Você também não deve se sentir mais inteligente se for ateu. Eu não sinto vergonha de acreditar em Deus. E também não me sinto mais inteligente por ser considerado ateu. Antes de me mandar para o inferno, leia até o final. Mas já começo a explicar: o Deus em que acredito é uma excelente ideia, desde que não nos matemos por causa dela. Uma ideia que resultou, entre mortos e feridos, na civilização.

Por civilização, e eu vou ficar apenas na ocidental, avistável desta nossa praia, entenda-se os tabus e códigos morais que permitiram que crescêssemos e nos multiplicássemos (já passou da hora, por sinal, de pararmos com reprodução tão maciça). Os templos gregos e romanos (Deus era vários deuses nessa época). As catedrais góticas, orações elevadas em pedra. As obras de Giotto, Piero della Francesca, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Caravaggio e El Greco – elas nos mostram como Deus foi criado à nossa imagem e semelhança. Os Réquiens de Bach filho e Mozart (finais grandiosos para a nossa vida mesquinha). Os versos divinos do “ Cântico dos Cânticos” bíblico e da “Comédia”, de Dante Alighieri. Os sistemas de pensamento que, ao buscar provar a existência de um Criador ou a Sua inexistência, avançaram na lógica, na matemática, na física, na química e na astronomia, mesmo com a oposição de quem se apropriou Dele.

Deus é, portanto, muito maior do que o amor que Magno Malta ou Cabo Daciolo nutrem pelos seus semelhantes.

Não sou autista porque resolvi escrever sobre Deus a esta altura do campeonato. Assim como os militares, Ele voltou a estar onipresente na política brasileira. O slogan de Jair Bolsonaro é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, perfeito para a sua agenda conservadora. Até Fernando Haddad teve de trocar de Deus no segundo turno – e religiosamente partiu para cima do adversário chamando-o de Anticristo. Uma vez ungido pelas urnas, Bolsonaro viu-se criticado por ter agradecido a Deus no dia da sua vitória — e provavelmente foi o demônio a soprar no ouvido de alguns jornalistas que se tratava de “ameaça ao Estado laico”. O demônio, sempre um ótimo editor, proporcionou dois dias de colunas sobre o Hitler-Mussolini transformado em Savonarola-Torquemada tropical.

Deus também está por trás (ou melhor, acima) da declaração de Bolsonaro de que vai transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. Não há nenhum motivo estratégico ou ideológico para essa decisão, se é que ela será mesmo tomada. O presidente eleito, além de ter-se batizado no rio Jordão, quis agradar os apoiadores evangélicos que passaram a crer-se uma extensão do povo eleito. Deus tornou a manifestar-se, ainda, por meio do escolhido para ser o chanceler brasileiro. No seu blog, Ernesto Araújo apresenta-se como inimigo declarado do “globalismo pilotado pelo marxismo cultural, essencialmente um sistema anti-humano e anticristão”. Araújo acrescenta que “a fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e na história”.

Metapolítica é um conceito em voga no lado direito da Força. Como explica sucintamente Araújo no artigo “Trump e o Ocidente”, trata-se do “conjunto de ideias, cultura, filosofia, história e símbolos que agem tanto no nível racional quanto no nível emotivo da consciência”. Digamos que “metapolítica” está para o lado direito da Força, assim como “hegemonia”está para o lado esquerdo. Nesse artigo escrito para uma revista especializada em assuntos diplomáticos, Araújo vai do futebol americano a Martin Heidegger, o filósofo alemão que flertou com o nazismo, para afirmar que Trump “pode ainda salvar o Ocidente”. Eu não demonizo o presidente americano, como afirmei mais de uma vez. E entendo que haja uma reação à campanha diuturna que é feita contra ele dentro e fora dos Estados Unidos. Mas eu tentaria ouvir Melania Trump, pelo menos, antes de colocar o seu marido como salvador do Ocidente – ou dos valores ocidentais, porque é disso que se trata.

Não desviei de Deus para Trump. A conexão foi feita por Araújo, no seu artigo. Ele o conclui da seguinte forma:

“Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana. Heidegger jamais acreditou na América como portadora do facho do Ocidente, considerava os EUA um país tão materialista quanto a União Soviética e incapaz de autopercepção metafísica indispensável à geração de um ‘novo começo’, como ele dizia, essa refundação do Ocidente que repetiria em outros termos o primeiro começo gerado pelos antigos gregos. Talvez Heidegger mudasse de opinião após ouvir o discurso de Trump em Varsóvia (no qual ele chama por Deus), e observasse: Nur noch Trump kann das Abendland retten, somente Trump pode ainda salvar o Ocidente.”

Parágrafos antes, Araújo escreve que, queira-se ou não, o Brasil faz parte desse Ocidente e que o país “precisa de uma metapolítica externa, para que possamos situar-nos e atuar naquele plano cultural-espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático-militar, estão se definindo os destinos do mundo. Destinos que precisaríamos estudar, não só do ponto de vista da geopolítica, mas também de uma ‘teopolítica’”.

À medida que fui lendo o artigo de Araújo, o demônio editor foi enchendo os meus ouvidos sobre a “ameaça ao Estado laico”. Confesso que ele quase me convenceu quando deparei com a palavra “teopolítica”, mas já não caio mais nas armadilhas desse sujeitinho. Interpreto o artigo do futuro chanceler como um interessante exercício intelectual que se estende até o limite, na sua defesa de pontos caros ao conservadorismo. Exercícios intelectuais servem para isso também. Mas a estrada da realidade é curta. O Brasil não é Ocidente. No máximo, faz parte do que se costuma definir como “Ocidente Próximo”. Somos uma espécie de Síria do Ocidente — sem nenhum risco teocrático ou algo que o valha, seja para nós mesmos, seja para os outros, porque isso aqui, iô, iô, é o Brasil, iá, iá. A gente só exagerou na esculhambação que nos é inerente e precisa mudar a direção do desfile carnavalesco, para não cair no abismo. Os brasileiros colocaram Bolsonaro na presidência de República para isso. A chance de o país atuar diplomaticamente no “plano cultural-espiritual” é zero, porque não teremos nenhuma importância enquanto as exportações e importações brasileiras significarem apenas 1% do comércio mundial. Se Araújo conseguir anular o petismo no Itamaraty, aquele com opção preferencial por ditaduras latino-americanas, sem macaquear o trumpismo, já será o suficiente para agradecer a Deus. Estaremos em paz para prosseguir na nossa insignificância planetária.

Deus é uma excelente ideia, desde que não nos matemos por causa dela, retomo. É comum a discussão em torno da questão suscitada por Ivan Karamazov, personagem do romance de Dostoievsky, que foi resumida assim: “Se Deus não existe, então tudo é permitido?” A ideia da existência de Deus surgiu há cerca de 14.000 anos, como informa Karen Armstrong, em “Uma História de Deus”. Essa ideia dava conta do mundo invisível que nos cerca e, como já dito, foi determinante para estabelecer tabus e códigos morais essenciais para que o homem saísse do estado da Natureza para o da civilização. As religiões se apropriaram dela e personalizaram Deus. Primeiramente, sob a forma de deuses específicos para cada aspecto da vida; depois, sob a forma de um Deus único. A partir do século XVIII, sempre no Ocidente, iniciou-se a troca do Deus místico pela crença na razão científica – que beira a crendice em certos casos, como o do biólogo Richard Dawkins, convertido em apóstolo do ateísmo. Dostoievsky foi pego ainda em meio a essa troca. A questão de Ivan Karamazov é se os princípios básicos da civilização sobreviveriam sem que houvesse um Deus para punir os transgressores ou premiar os que seguissem a linha justa. É possível haver ética se não se acredita em Deus? É possível existir um motivo em si para se ter retidão?

Possível, é, como provam suecos (menos aqueles que venderam os caças para Lula) e dinamarqueses. São povos com mais de 80% de ateus e que figuram entre os menos corruptos e mais civilizados. “O humanismo é ele próprio uma religião sem Deus”, afirma Karen Armstrong. Mas, por aqui, foi necessário chamar um tosco capitão da reserva do Exército para dizer que não é possível haver ética sem Deus. Em algumas latitudes, Deus continuará a ser muito necessário. Eu acredito nisso. Principalmente para que não nos matemos uns aos outros por motivos humanos demasiado humanos. Deus: use com moderação.

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