Perdidos na cadeia
Lula estava recolhido havia 26 dias em sua cela presidencial em Curitiba quando, numa conversa de 40 minutos com Gleisi Hoffmann, finalmente autorizada a visitá-lo na prisão, soube que Jaques Wagner estava com planos diferentes dos dele para as eleições presidenciais deste ano. Gleisi contou que Wagner, ex-ministro de Lula, ex-governador da Bahia e um dos fundadores do PT, tinha começado a acenar à candidatura do pedetista Ciro Gomes. Naquele dia de visita, Jaques Wagner era o próximo da fila. Quando entrou, o ex-governador tomou um “chega pra lá” do ex-presidente, nas palavras de um integrante da cúpula do partido. A reunião durou a metade do tempo da de Gleisi. Dois dias antes, o ex-governador havia dito publicamente que era chegada a hora de o PT “ceder a precedência” no campo da esquerda a algum partido aliado. A declaração, que Gleisi tratou de comunicar a Lula, foi vista como uma traição ao ex-presidente. Abrir mão do discurso de que Lula segue candidato seria o mesmo que abandoná-lo. Era o ápice de uma divisão interna que mostra que o PT, já gravemente combalido por tudo o que a Lava Jato revelou, se perdeu no tempo e no espaço a partir da prisão de seu chefe-mor.
Jaques Wagner saiu do encontro com Lula jurando fidelidade. “Vou com ele até o final da linha”, disse. A garantia, porém, não foi suficiente para acalmar os mais fiéis ao condenado preso. Nos dias seguintes, teria início uma operação para debelar a iniciativa dos petistas que, como Wagner, defendiam uma alternativa ao nome do ex-presidente para as eleições de outubro. Por WhatsApp, a ala mais leal a Lula começou a disparar mensagens com ataques frontais a Ciro Gomes. O texto, compartilhado por senadores, deputados e outras lideranças da sigla, apontava os sete partidos pelos quais Ciro passou desde que se elegeu deputado estadual no Ceará em 1982, pelo PDS, e sua ligação com a Arena, que sustentava o regime militar. “Dá para confiar?”, concluía a mensagem. Além disso, a claque cibernética a serviço do comando petista foi acionada para engrossar o coro. A própria Gleisi chegou a dizer que o nome de Ciro não passaria “nem com reza brava” no PT. Na quinta-feira da semana passada, para reforçar ainda mais a ordem unida, Lula entregou a Gleisi uma carta na qual diz que ainda é candidato – um delírio evidente do preso mais famoso do Brasil, já que a Lei da Ficha Limpa o impede de disputar a eleição, a menos que seja revogada pela jurisprudência de encomenda.
A campanha para asfixiar o apoio a Ciro e conter a divisão interna que defende alternativas ao nome do ex-presidente mostra a que ponto chegou o PT: as decisões importantes e as estratégias do partido são tomadas e traçadas de dentro da cadeia. Lula segue mandando, com todas as limitações, e a obediente Gleisi segue no papel de executora das ordens. Basicamente, há hoje na legenda quatro segmentos. A defesa da candidatura Lula até o fim é majoritária e feita principalmente pela corrente que desde sempre comanda o partido, a Construindo um Novo Brasil (CNB), antigo Campo Majoritário. É a mesma de Lula, José Dirceu, Gleisi e Dilma Rousseff. Já o apoio a Ciro vem de governadores, principalmente do Nordeste. O movimento começou com Camilo Santana, governador do Ceará. Embora petista, Camilo é muito alinhado ao candidato do PDT. No final do ano passado, começou a defender internamente a opção conforme a prisão de Lula se tornava mais próxima. Conseguiu influenciar a Bahia de Wagner e do governador Rui Costa e, aos poucos, a ideia começou a ser considerada por alguns deputados federais. Além da preocupação em evitar fissuras em suas alianças locais, que incluem o PDT, o receio desse grupo que apoia Ciro é principalmente ter que arrastar em cima da hora um nome ungido por Lula que não empolgue o eleitor nordestino, como o do próprio Fernando Haddad – tido como uma alternativa a ser lançada na undécima hora, quando Lula tiver que abandonar definitivamente o delírio da candidatura.
Para tentar neutralizar Camilo e demais apoiadores da aliança com Ciro, Gleisi forçou toda a bancada do partido, senadores inclusive, a voltar à linha justa, através de um manifesto assinado no dia 17. Também chamou os governadores petistas para uma reunião em Brasília, na semana que vem, para deixar bem claro que não existe plano B: o candidato é o chefão condenado. Mas concedeu que o partido começaria a tecer alianças para o segundo turno. “No primeiro turno, nós teremos candidato: será Lula. No segundo turno, ele vai vencer e queremos fazer uma composição. Se não for ele, nós vamos ver quem da esquerda foi para o segundo turno. Se lá na frente nada der certo, o presidente saberá encaminhar o processo junto com a direção do PT”, disse ela. Tudo a mando de Lula, evidentemente, com quem se reunira pouco antes.
O racha interno já causa problemas na relação do PT com tradicionais aliados. O PDT, evidentemente, reagiu aos ataques a seu candidato. Ciro afirmou ter pena de Gleisi e fechou as portas para uma negociação, o que acendeu o sinal de alerta entre os petistas. Em recente reunião da bancada no partido do Senado, Gleisi ouviu do senador Humberto Costa que a iniciativa de dizer que o nome de Ciro não passaria “nem por reza brava” havia sido equivocada, pois poderia inviabilizar eventuais alianças no segundo turno. O cientista político Aldo Fornazieri, um dos preferidos do petismo, classificou a declaração como “desnecessária e inconveniente” – ele prevê que o PT, com suas divisões internas, está construindo a sua própria derrota.
Com o controle do partido sendo feito a ferro e fogo por Lula e Gleisi, a tendência é que o PT mantenha o nome do ex-presidente até quando der e continue a reprimir qualquer ação contrária a essa tese. Na semana passada, uma reunião da corrente CNB na sede do partido no centro de São Paulo cerceou o debate sobre um vice e ignorou Ciro. A linha foi a de que a estratégia está dando certo na medida em que as pesquisas mantêm Lula na liderança. O discurso foi reproduzido como mantra nesta semana pela ala mais fiel a Lula. Decidiu-se, então, que o partido fará o pré-lançamento da candidatura do ex-presidente no final deste mês, provavelmente no dia 25 de maio. A convenção foi marcada para 28 de julho. O plano é registrar o nome de Lula no dia 15 de agosto e iniciar então uma batalha por uma liminar no Supremo Tribunal Federal ou no Tribunal Superior Eleitoral que o autorize a ser candidato. De novo, um sonho impossível, se ninguém “reinterpretar” a Lei da Ficha Limpa. A aposta é que, com a derrota nos tribunais, a simples exploração do discurso de que Lula está sendo injustiçado ao ser proibido de disputar a eleição já ajudará na transferência de grande parte do patrimônio eleitoral do petista para o seu ungido. Isso garantiria pelo menos, na visão dos petistas mais otimistas, uma vaga para o partido no segundo turno. A cadeia, está provado, produz miragens.
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