Adriano Machado/Crusoé

Uns se vão, mas outros querem ficar

Cuba abandona o Mais Médicos para preservar o negócio com exportação de mão de obra, mas centenas de cubanos querem permanecer aqui
23.11.18

A vice-ministra de saúde de Cuba, Marcia Cobas Ruiz, foi encarregada pela ditadura comunista, em 2012, de oferecer ao governo brasileiro um programa de exportação de doutores para preencher vagas ociosas, que no ano seguinte ganharia o nome de Mais Médicos. Experiente e com o segundo cargo mais elevado na sua área, Marcia gerenciava a atuação de profissionais em dezenas de países. Esqueça, leitor, qualquer preocupação com a qualidade de atendimento. Sua função era a de amedrontar os que pensavam em desertar e de expulsar para Cuba os amigos daqueles que abandonavam a missão. Segundo relatos de seus compatriotas, Marcia era uma tirana, que infernizava a vida dos colegas o tempo todo.

Em maio de 2014, o filho de Marcia, Julio Antonio Mella Cobas, foi recebido para trabalhar como médico da família em Santa Catarina pelo programa que sua mãe coordenava. Colegas o avaliam como uma pessoa tranquila, que não compactuava com as ideias da mãe. Dois anos depois, ele prestou o Revalida, o teste para medir a capacidade dos profissionais de saúde com diplomas obtidos no exterior. Segundo alguns, sua mãe o esperou na saída da prova, que os cubanos são proibidos de fazer. Aprovado, Cobas ganhou seu registro de médico, o CRM. Com ele em mãos, deixou o Mais Médicos e, em agosto do ano passado, começou a atuar em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) verde e vermelha de dois andares no Jardim Maringá, zona leste de São Paulo. No novo posto, passou a clinicar como funcionário de uma empresa terceirizada, a OSS SAS Seconci, com contrato regido pela CLT. Livre das algemas do acordo negociado por sua mãe com o governo brasileiro, Julio realizou o sonho de todo médico cubano: o de ganhar um salário integral, exercer a profissão legalmente e tocar a vida com dignidade.

A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições virou de cabeça para baixo o destino dos dois. Na quarta-feira 31 de outubro, três dias depois do segundo turno, o doutor Cobas apareceu no posto de saúde e pediu seu desligamento, alegando que voltaria para Cuba. Duas semanas depois, Marcia, a mãe dele, foi destituída do alto cargo que ocupava no governo cubano. Tanto que, no dia 17 de novembro, um grupo de médicos que tinha completado os três anos de serviço no Brasil foi recebido no aeroporto de Havana por outra vice-ministra da Saúde, Regla Angulo Pardo. Cobas se viu obrigado a retornar para não prejudicar ainda mais a sua mãe.

O filho da ex-vice-ministra Cobas fez o que os seus compatriotas não podiam fazer
Para um brasileiro que cresceu com liberdade democrática, a sina da família Cobas choca sobretudo pela forma como a ditadura exerce seu controle sobre cada indivíduo, arbitrando as relações familiares e as perspectivas de carreira de cada um. Quando assinaram o seu contrato para participar do Mais Médicos, por exemplo, os cubanos precisaram aceitar uma cláusula em que se comprometem a não fazer o Revalida.

O governo cubano anunciou a saída do programa no dia 14 de novembro, alegando não compactuar com as exigências do presidente eleito do Brasil. Entre os médicos cubanos aqui instalados, a notícia causou tensão imediata. “Já recebemos muitos pedidos de ajuda. Ouvimos relatos de desespero e de apreensão. A principal preocupação é com a retaliação que familiares na ilha podem sofrer”, diz Uziel Santana, presidente da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). Apenas um dia após o anúncio da ditadura, a entidade, em parceria com a ONG Human Rights in Cuba, disponibilizou um número de WhatsApp para prestar apoio jurídico aos cubanos. Para dar conta da forte demanda, a equipe da Anajure, com dezenas de advogados, precisou começar a trabalhar doze horas por dia.

Dos 16.150 profissionais que participavam do Mais Médicos, metade era de cubanos. Na opinião de Santana, da Anajure, entre 30% e 40% devem ficar no Brasil. Há outros mais otimistas. “Posso até ser leviano, mas acho que metade não volta, hein?”, disse o vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão. Para a Associação de Cubanos Livres Residentes no Brasil, um grupo criado por profissionais que deixaram o programa, pelo menos 1500 devem optar em permanecer onde estão. “Até agora, entre 500 e 600 médicos nos procuraram para saber o que poderiam fazer para ficar no Brasil”, diz a médica Eva Maria Arzuaga Duanys, de 44 anos, que mora em Barros Cassal, no Rio Grande do Sul, e é uma das criadoras da Associação. Segundo ela, uma boa parte dos cubanos casou-se por aqui, apesar do breve período de três anos da missão, e não pensa em arredar o pé. A pouca idade também deve interferir na decisão. “Os que vieram ao Brasil nas últimas levas são mais novos e não têm filhos na ilha. Sem muitas raízes por lá, podem iniciar uma vida do zero em outro lugar”, afirma.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéYuledis Legrá mostra o diploma cubano: ele não pensa em voltar
Eva foi expulsa do programa em 2017, porque conseguiu trazer seus dois filhos jovens para morar com ela. Pelas regras da ditadura, visitas familiares não podem exceder o período de três meses. Como eles extrapolaram o prazo, Eva foi desligada e tornou-se uma desertora aos olhos do regime. Hoje, ela trabalha como secretária em um centro clínico da prefeitura de Barros Cassal. Como outros cubanos, ela se ressente do excesso de controle sobre a vida dos médicos e da situação de exploração a que eram submetidos. As queixas, contudo, sempre foram raras. Como eram vigiados por oficiais do governo cubano identificados como membros da Organização Panamericana de Saúde (Opas), os médicos raramente criticavam o sistema que os submetia. O silêncio deixou de existir na última semana, depois da decisão de retirada do governo cubano. Alguns passaram a reclamar nas redes sociais e pelo WhatsApp das exigências absurdas da ditadura. Entre elas, a ordem dada para uma evacuação quase que imediata sem poder levar dólares e com um limite estrito de peso de bagagem (45 quilos na mala de mão e 214 quilos nas malas despachadas). Como todo cubano, eles esperavam um dia levar consigo objetos e eletrodomésticos para a ilha, onde falta de tudo.

Nas críticas que dirigiu ao programa, o presidente eleito Jair Bolsonaro referiu-se diversas vezes às condições precárias dos médicos. “Não podemos admitir escravos cubanos no Brasil”, disse ele. A afirmação, surpreendentemente, não soou ofensiva para muitos dos que fugiram de qualquer uma das missões de saúde cubana no exterior. Um dos que hoje se sentem alforriados é o médico Yuledis Legrá, que se especializou em oftalmologia em Cuba e trabalhou em três missões na Venezuela. Ao retornar para sua terra natal, não conseguiu mais ficar na ilha. “Lá, eu cresci sendo obrigado a dizer com orgulho que era comunista. Nas viagens ao exterior, descobri que as pessoas eram livres e decidiam sobre seus destinos. Qualquer nova medida da ditadura passou a me incomodar e me dei conta de que não passava de um escravo”, diz Legrá. Ele, então, aceitou o convite de um amigo para mudar-se para o Brasil. Legrá não chegou a integrar o Mais Médicos. Como não fez o Revalida, trabalha numa ótica e vende perfumes. Conhecido como “Jhulio”, ganha o equivalente a 1200 reais por mês. “Aqui, eu aproveito as oportunidades que aparecem e ganho o meu dinheiro com liberdade.”

Outro médico cubano, Carlos Raul Lujo Macias, de 51 anos, atendeu no programa entre 2014 e 2015. Trabalhou em Pernambuco e em Goiás. Lujo conta que fez bicos de lavagem de tapetes e foi motorista de Uber, mas não prosperou. Hoje está desempregado. Para viver, ele e a mulher, também egressa do Mais Médicos, contam com a ajuda de vizinhos. Apesar da situação precária em que vivem, os dois tiveram uma filha e decidiram que ficarão no Brasil. “Antes eu vivia em uma situação de escravidão. Agora eu sou livre e minha filha nasceu livre. Isso não tem preço”, conta ele, chorando.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAlioski Ramirez e Carlos Raul Lujos decidiram reconstruir a vida nas proximidades de Brasília
Para os cubanos que estavam no Mais Médicos, Bolsonaro prometeu dar asilo e salário integral. Foi uma jogada dupla do presidente eleito. Ele foi benevolente com os médicos ao mesmo tempo em que cerrou o punho contra a ditadura. A estratégia funcionou e, rapidamente, Bolsonaro caiu nas graças de muitos cubanos. O que os incomodou, porém, foram as suspeitas sobre a qualidade da formação deles. “Nós, médicos cubanos, somos plenamente capazes. Só não prestamos o Revalida porque isso não nos era permitido”, diz o médico Alioski Ramirez, que mora em Valparaíso de Goiás e foi expulso do programa porque o acusaram de ter tentado receber o salário integral com ajuda de um advogado (sob pressão de Havana, os processos dos médicos cubanos ficaram parados na Justiça brasileira). Na terça-feira, 20, o governo brasileiro anunciou um edital para contratar médicos para preencher as vagas deixadas pelos cubanos. Inicialmente, só serão aceitos profissionais com CRM, o registro profissional dos médicos. A exigência deixa de fora quase todos os cubanos. Um segundo edital, a ser publicado na próxima semana, deverá permitir também a candidatura de cubanos que integravam o Mais Médicos. “Se preciso for, vou prestar o Revalida 50 vezes”, diz Eva Maria, a médica de Barros Cassal.

Com o temor de que milhares de médicos debandassem em massa, o governo de Cuba montou uma operação de guerra para colocá-los nos aviões com destino à ilha. No dia 18 de novembro, o Ministério de Saúde Pública cubano (Minsap)  enviou um documento com duas folhas e 18 orientações para oficiais e médicos no Brasil. Como o texto causou ampla irritação, o material vazou e chegou a ser postado nas redes sociais. A carta dizia que as aeronaves partiriam de quatro cidades: Brasília, Manaus, São Paulo e Salvador. Aqueles que não retornassem para Cuba ficariam impedidos de voltar para casa por oito anos. Também foi solicitado que os médicos mantivessem comunicação permanente com os familiares. Em paralelo, em Cuba, oficiais organizados em comissões visitaram os parentes dos médicos. Eles pagaram ligações para os doutores no Brasil e induziram os familiares a fazer chantagem emocional. Do limão do vexame iminente, a ditadura pensou em preparar uma limonada. “Deve-se trabalhar intensamente nos atos de boas-vindas para que estejam à altura do momento histórico”, dizia o texto. Mas o teatro no aeroporto, com direito a hino nacional e entrevistas para a televisão estatal, não emocionou os cubanos, habituados com os jogos de cena oficiais.

A recusa de seus cidadãos em voltar para Cuba não é algo novo para o regime, que sempre rotulou de traidores aqueles que fogem do país, pelo mar ou pelo ar. No caso do Mais Médicos, o maior medo do governo comunista era que ataques frontais de Bolsonaro comprometessem aquela que é a principal fonte de renda da ditadura. O trabalho forçado de médicos no Brasil rende a Cuba 332 milhões de dólares por ano. “Com a mudança de sinal ideológico no governo do Brasil, a exploração dos médicos cubanos viria à superfície”, diz o historiador cubano Manuel Cuesta Morúa, que vive em Havana e integra a Mesa de Unidade para a Ação Democrática (MUAD), organização clandestina que luta por eleições livres. “Para o governo de Cuba, a retirada foi uma forma de tentar conter o impacto das críticas nas demais missões da América Latina”. Atualmente, há médicos cubanos em mais de sessenta países. Pela via oficial do convênio com a ditadura de Havana, o Brasil não será mais um deles.

Depois do anúncio do fim da participação cubana no programa, os médicos Carlos Lujo e Alioski Ramirez bateram à porta do gabinete de transição, em Brasília, para falar com o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Os dois resolveram viver no Brasil e foram pedir ajuda. “Só voltaremos para Cuba quando o comunismo acabar. Na ilha, esse sistema já durou sessenta anos. Na União Soviética, não passou de setenta. Tenho esperanças”, diz Lujo.

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