Adriano Machado/Crusoé

O ataque da velha política

Multi-investigado, Renan Calheiros é ponta de lança da velha guarda que se move para manter privilégios e garantir a impunidade. Os alvos são Sergio Moro e a Lava Jato
30.11.18

Renan Calheiros quase morreu. Evoluiu de uma gripe na campanha eleitoral para uma pneumonia nos últimos dias. Uma médica do Senado lhe receitou um antibiótico de última geração. Após uma reação alérgica, ele piorou. Ficou internado dois dias na UTI de um hospital de Brasília. De lá, mesmo com a saúde precária, criticou em sua conta no Twitter a decisão de Sergio Moro, futuro ministro da Justiça, de criar novas secretarias por medida provisória “sem conversar com o Legislativo”. No dia seguinte, ainda combalido, mas já de volta ao Congresso, Renan protagonizou um embate barulhento com um senador que articula para que a eleição para a presidência do Senado, em fevereiro, se dê por voto aberto. Ao seu melhor estilo, o alagoano partiu para o ataque. Mencionou uma velha acusação feita ao colega, e já arquivada, de agressão à ex-mulher. Insinuou que o caso ainda pode parar no Conselho de Ética. E ainda mandou uma indireta para a líder de seu partido, Simone Tebet, postulante como ele à presidência da casa. Deixou claro que, se não for o indicado da bancada, ele pode concorrer mesmo assim. A movimentação do enfermo Renan do hospital para as redes sociais e, depois, para o carpete azul do Senado é muito significativa. O emedebista é o retrato acabado dos últimos movimentos da velha política para se manter firme e forte, com seus privilégios garantidos, nestes tempos em que os brasileiros exigem mudanças de comportamento dos poderosos.

Alvo de 14 procedimentos criminais por crimes como o de corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente do Senado tornou-se ponta de lança da reação ao futuro trabalho de Moro no Ministério da Justiça, que desde já causa calafrios especialmente entre as excelências mais enroladas. Se já era um estorvo para os políticos como juiz federal em Curitiba, agora que trabalhará a poucos metros da Praça dos Três Poderes, e com uma caneta muito mais carregada, Moro incomoda ainda mais. Não apenas pelo seu plano de endurecimento do combate à corrupção, mas também pela força que sua figura popular dá a uma agenda que não interessa muito à turma acostumada a antigos e maus hábitos. É um oponente robusto que se coloca para uma queda de braço que o universo político não estava habituado a enfrentar.

A reação da velha política tem se manifestado em diferentes frentes. E Renan, por uma série de fatores, é o rosto mais vistoso desse movimento. Primeiro, porque muitos dos outros players que compartilham dos mesmos interesses estão afastados do front. Ele acaba de garantir sua cadeira no Senado por mais oito anos, posto que promete usar como trincheira. O emedebista, ex-líder estudantil ligado ao Partido Comunista do Brasil, está na política há 40 anos. Mais da metade desse tempo ele passou no próprio Senado, que presidiu em três ocasiões. Sempre esteve ao lado do governo, qualquer que fosse o governo. É um dos recordistas de investigações da Lava Jato. Atualmente, são doze os inquéritos a que ele responde. Há, ainda, duas denúncias. A despeito dessa ficha corrida, e graças também à sua longa trajetória em Brasília e às relações que construiu, ele tem conseguido conservar a sua força – e está, conforme admitem até seus adversários, cotado para voltar a presidir o Senado. Sua principal bandeira, desfraldada desde já, é garantir a “independência” da Casa, um discurso padrão nas eleições que a cada dois anos definem o comando do Congresso, mas que agora servirá de biombo para a verdadeira guerra que pretende travar e que tem do lado oposto o empoderado ministro da Justiça responsável, como magistrado, por levar para a cadeia grandes nomes da política nacional, como o ex-presidente Lula, aliado de Renan.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO futuro ministro Moro na sede da transição: ele é o alvo preferencial
Para além das manifestações públicas, como as postagens no Twitter no dia em que estava internado, nos bastidores Renan tem bombardeado os planos já apresentados por Moro e se colocado como o homem perfeito para enfrentá-lo. A depender do interlocutor, o discurso funciona. Embora tenha perdido aliados importantes, gente igualmente enrolada que não se elegeu, ele tem o apoio de colegas do naipe de Ciro Nogueira, outro que figura entre os recordistas de investigações na Lava Jato. Ciro preside o notório PP (rebatizado de Progressistas), que terá, a partir de 2019, uma bancada de seis senadores. Falando para sua turma, Renan garante que as medidas propostas por Moro seguramente sairão do Congresso “aperfeiçoadas”. Ele critica, por exemplo, o teste de integridade (uma espécie de avaliação ética para servidores), a possibilidade de utilização de prova ilícita desde que colhida de boa-fé e a restrição à utilização do habeas corpus. Além do discurso de enfrentamento à nova ordem, cabem outras promessas nas negociações. Segundo uma fonte, para convencer outros senadores a votar em Renan o próprio Ciro Nogueira tem oferecido abrir as arcas do rico PP para ajudar no pagamento de dívidas de campanha. Nas conversas com o PT, além obviamente do plano de fazer frente ao novo governo, o entourage de Renan garante que trabalhará para barrar propostas de Jair Bolsonaro, como a redução da maioridade penal. Até questões mais prosaicas, como a preferência para a escolha dos gabinetes maiores e mais confortáveis, estão entrando nas tratativas. Ou seja: é a velha política fazendo o que ela sabe fazer.

O maior temor do senador, por óbvio, é não conseguir número suficiente de apoiadores (para se eleger presidente ele precisa de maioria simples), porque o Senado estará repleto de novatos que talvez não se mostrem interessados nesse tipo de negociata. “Renan está otimista, mas ao mesmo tempo preocupado com as caras novas do Senado que ele não conhece”, disse a Crusoé o ex-governador de Pernambuco e senador eleito Jarbas Vasconcelos. Para ele, o risco à Lava Jato “é permanente”. “Sempre haverá quem tenha o interesse em derrubar os cânones da operação”, concluiu.

Paralelamente à ação de Renan, a velha política também tem se movimentado na Câmara. Alvos da Lava Jato pressionam o presidente da Casa, Rodrigo Maia, a colocar em votação um projeto que flexibiliza a punição a crimes de colarinho branco. Entre outros pontos, a proposta amplia a possibilidade de suspensão de processos e aumenta de oito para nove anos a pena mínima para que um condenado comece o cumprimento em regime fechado. Bem em linha com o que Renan costura no Senado, no estabelecimento vizinho os deputados querem usar a eleição para a presidência, e o plano de Rodrigo Maia de se manter no posto, para barganhar a aprovação do projeto. Também investigado na Lava Jato, Maia, do DEM, tem piscado para a ideia. E cedido também em outras frentes. Na quarta-feira, ele avançou completamente o sinal. Operou para que a Lei de Responsabilidade das Estatais, aquela que tentou dar alguma ordem nas empresas públicas após a descoberta do petrolão, fosse afrouxada. Deu certo. Com a manobra, estará aberta a possibilidade de parentes de ministros e dirigentes partidários participarem de conselhos de administração de estatais, que costumam render altos jetons. Na prática, é mais um avanço proporcionado pela Lava Jato que cai por terra. A proposta agora precisa ser referendada pelo Senado. Eunício de Oliveira, o atual presidente do Senado, também enrolado na Lava Jato e derrotado nas urnas ao tentar a reeleição, quer votar a proposta ainda neste ano.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéTemer: reajuste para afagar os juízes porque ele estará na planície
Fora do Congresso, a velha política também atua a todo vapor. Na segunda-feira, 25, o presidente Michel Temer sancionou o reajuste do Judiciário que elevou o salário dos ministros do STF de 33 mil reais para 39 mil reais. Foi uma barganha em troca do fim do auxílio-moradia. O reajuste tem efeito cascata sobre os holerites do Judiciário. Com a decisão, sobre a qual manteve suspense até a undécima hora, Temer fez um afago aos magistrados pensando também em seu futuro. Em um mês, ele deixará o cargo e voltará, portanto, à planície. As acusações dirigidas a ele nas investigações do caso JBS e do Porto de Santos passarão a ser examinadas por juízes de primeira instância. Não interessava a ele, evidentemente, comprar uma briga a esta altura com os magistrados. Assim, considerou que valia usar o pouco que resta de tinta em sua caneta para liberar o aumento de 16,38%, a despeito da necessidade gritante do país de cortar gastos e ajustar contas. Feito o afago, mais um exemplo típico das viciadas relações entre os poderes, o atual ocupante do Planalto fez chegar ao Supremo, por intermédio de Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, o desejo de que a corte julgasse constitucional seu decreto que amoleceu as regras do indulto de Natal em 2017. O texto presidencial perdoa, sob determinadas condições, crimes como peculato, corrupção, tráfico de influência, contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro e ocultação de bens. Ou seja: é um bálsamo para políticos e amigos de políticos encalacrados. A validade do decreto, assinado por Temer no apagar das luzes de 2017, fora suspensa por uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso.

Com o esforço de agora, quase um ano depois, a ideia era fazer com que o texto e suas benesses voltassem a valer. “Indulto de Temer de 2017 tentou perdoar 80% da pena dos corruptos. STF suspendeu e pode liberar nesta 4ª feira. A corrupção compensará. Este parece que será um fim de ano difícil para a Lava Jato, que continua precisando do seu apoio”, escreveu no Twitter o procurador Deltan Dallagnol, em um esforço para iluminar o estrago que a nova decisão do Supremo poderia causar. O julgamento começou na quarta-feira, 28, e prosseguiu no dia seguinte. Os ministros formaram maioria em favor do indulto, mas a validação do veredicto foi suspensa por um pedido de vista de Luiz Fux. Foi quando Gilmar Mendes sugeriu que, ante a maioria já formada, o texto de Temer já passasse a valer imediatamente. Dias Toffoli, então, também pediu vista e a decisão só valerá quando o debate for retomado. A maioria formada, porém, mostra que as costuras em favor de réus graúdos – e na contramão da Lava-Jato — também encontram eco no Judiciário.

Ainda no STF, Toffoli pautou o julgamento da ação que pretende derrubar a prisão de condenados em segunda instância, considerada uma medida essencial para os investigadores da Lava Jato. O ministro atendeu aos apelos de advogados criminalistas e de políticos que têm pavor da medida. Fontes próximas ao presidente da corte disseram, contudo, que ele apenas cumpriu a promessa feita a alguns de seus colegas, como o ministro Marco Aurélio, de que pautaria o tema logo depois das eleições presidenciais. O maior beneficiário da ação pode ser o ex-presidente Lula, preso desde 7 abril em Curitiba por corrupção e lavagem de dinheiro. Mas pode ser que o petista, preso em Curitiba, não tenha que esperar a ação contra a prisão de condenados em segunda instância.

Na noite desta quinta-feira, 29, o Supremo anunciou que a Segunda Turma julgará na próxima terça um habeas corpus em que a defesa de Lula alega que Sergio Moro, que o condenou, julgou com “clara parcialidade e motivação política”. O mote do pedido é o fato de Moro ter aceitado ser ministro de Bolsonaro. Os advogados o acusam, para variar, de impedir a candidatura de Lula para beneficiar o presidente eleito. A Lava Jato, nestes dias derradeiros de 2018, resiste como pode. E contra-ataca com as armas que tem. Também nesta quinta, o governador do Rio Luiz Fernando Pezão foi preso pela operação, sob suspeita de receber 39 milhões de reais em propina entre 2007 e 2015. O emedebista, um dos tantos interessados nos benefícios da ofensiva liderada pelo correligionário Renan Calheiros, foi surpreendido pelos agentes pouco depois de acordar no Palácio das Laranjeiras, a residência oficial do governador fluminense. Antes de ser levado, pediu para tomar café da manhã. Mas o que eles querem mesmo é uma enorme colher de chá.

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