MarioSabino

Os Sentinelas da impunidade

30.11.18

Você deve ter lido a respeito. Em meados de novembro, o americano John Chau, de 26 anos, foi morto pelos Sentinelas – um povo de, no máximo, 150 indivíduos que habitam uma ilhota no arquipélago de Andamão e Nicobar, no oceano Índico. Eu nunca tinha ouvido falar nos Sentinelas, mas, ao pesquisar na internet, constatei que volta e meia são assunto de sites e revistas de curiosidades. Os Sentinelas são bem mais do que uma curiosidade. Na verdade, são uma preciosidade. Trata-se de uma tribo que vive completamente isolada da civilização nesse minúsculo território que, apesar de pertencer oficialmente à Índia, é como se não fizesse parte do país. Os Sentinelas nunca se sujeitaram a conquistadores ou missionários (caso de John Chau). Também se recusam a fazer trocas comerciais com pescadores de ilhas próximas. Simplesmente matam quem ousa invadir a sua praia. Estacionaram no que se convencionava chamar de Pré-História (aprendi que a História começava com a invenção da escrita, mas parece que não é mais assim). Há cerca de 50 mil anos os Sentinelas caçam e coletam para sobreviver na floresta que cobre a maior parte da sua ilhota. Não têm noção do que seja agricultura. E alguns estudiosos acreditam que eles ainda não descobriram sequer o fogo.

John Chau foi morto a flechadas, depois de ter sido levado à ilhota dos Sentinelas por pescadores que burlaram a regra que proíbe transportar gente até lá. Nesta semana, intensificou-se o debate sobre o resgate do corpo do missionário americano. Antropólogos afirmam que a tentativa seria extremamente perigosa tanto para os indianos eventualmente encarregados da tarefa como para os Sentinelas, que podem ser dizimados por doenças contra as quais não possuem anticorpos. Teme-se até que o coitado do John Chau, enterrado pelos algozes, tenha transmitido um vírus fatal aos Sentinelas. Se isso ocorreu, o americano que queria levar Jesus ao coração dos nativos os levará à morte ao lhes infectar os pulmões.

Isso ocorreu entre índios no Brasil e alhures. A gripe foi uma das doenças que devastaram tribos inteiras. Alguém dirá que a história dos Sentinelas não é original. Ainda há índios brasileiros que recusam qualquer comunicação com antropólogos ou missionários. É verdade. Mas, sem desvalorizar o produto nacional, nenhum descende diretamente dos primeiros seres humanos que deixaram a África para espalhar-se pelo planeta. Os Sentinelas, sim. E, por mais que esses índios vivam afastados, sabe-se que eles guardam ligações culturais com outros assimilados ou contatados. Os Sentinelas, não. O que existem são suposições. Ninguém sabe exatamente como é a sua língua, por exemplo. E, ao que parece, a sua genética é diferente da dos povos das ilhas vizinhas.

Os Sentinelas são uma janela fechada para o passado da espécie humana. Se fosse possível entreabri-la à socapa e fazer um Big Brother, verificaríamos se as teses sobre os hábitos e a organização social dos nossos ancestrais batem com a realidade. Decifraríamos a sua língua e descobriríamos a gênese dos nossos sentimentos e códigos morais. Os Sentinelas, no entanto, fazem jus ao nome que lhes demos e guardam belicosamente as nossas próprias origens.

O fato de habitarem uma ilhota perdida no oceano Índico confere aos Sentinelas um caráter especial. Ilhas sempre foram ótimos cenários de livros e filmes e continuam a ser metáforas eficientes, como se pode constatar pelo nome e slogan desta Crusoé. São um símbolo milenar. No magnífico Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, somos informados de que “a busca da ilha deserta, ou da ilha desconhecida, ou da ilha rica em surpresas, é um dos temas fundamentais da literatura, dos sonhos, dos desejos”. E os autores se perguntam: “A conquista dos planetas não evidencia também a busca da ilha?” O poeta inglês John Donne transpôs séculos e continentes com um verso que contrasta com essa procura e virou máxima de folhinhas: “Nenhum homem é uma ilha isolada”. Donne foi desmentido pelos Sentinelas, de certa forma.

Na trilha mais rasteira da simbologia, não existe sinal de fortuna mais eloquente do que dispor de uma ilha paradisíaca exclusiva, como prova o bilionário Richard Branson, fundador da Virgin. Ele é dono de uma no Caribe e, de vez em quando, a aluga para temporadas de outros abastados. Lembro que, muitos anos atrás, Roberto Civita alugou a ilha de Branson, para levar a família de férias. Numa conferência telefônica comigo feita de lá, para resolver uma pauta da Veja, ele me disse simpaticamente que estava passando férias num lugar maravilhoso que eu jamais teria oportunidade de conhecer. Ri. Acho divertido quando alguém tenta me humilhar — ou impressionar — exibindo riqueza.

Só não acho divertido quando o dinheiro é meu. É recorrente comparar Brasília a uma ilha da fantasia cercada de dinheiro público de todos os lados. Na ilha da fantasia brasiliense, há Sentinelas da impunidade. Calculo que, assim como na  tribo do oceano Índico, sejam apenas 150 indivíduos, espalhados nos Três Poderes, embora milhares se locupletem graças a eles. Neste momento, atiram flechas em quem tenta entrar na ilha da fantasia que emergiu de um fundo de lama.

Os Sentinelas da impunidade são uma janela aberta para um passado nacional que se recusa a passar. Um passado movido a cobiça, compadrio e corrupção. Ao contrário do que ocorre com os Sentinelas que mataram John Chau, eles não podem ser preservados de jeito nenhum. Temos que invadir a sua ilha da fantasia, desarmá-los e infectá-los com vírus previstos no código penal, sem anticorpos da jurisprudência de ocasião. É preciso extingui-los para que tenhamos um presente e um futuro civilizados.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO