Marcelo Camargo/Agência BrasilRamona diz que os médicos, para além de atender nos consultórios, tinham uma "função política"

“Tinha de falar bem da Dilma”

Primeira cubana a deixar o Mais Médicos, Ramona Rodríguez agora move um processo milionário contra a Opas, o braço das Nações Unidas que intermediou o acerto entre o governo do PT e a ditadura de Havana. Ela diz que, enquanto estava no Brasil, tinha de elogiar o governo da petista
07.12.18

A médica cubana Ramona Matos Rodríguez, de 56 anos, foi a primeira a abandonar o Mais Médicos, em 2014. Saiu bem no ano em que a ex-presidente Dilma Rousseff, responsável por lançar o programa, obteve a reeleição nas urnas com 51% dos votos no segundo turno contra Aécio Neves. A decisão de deixar o programa baseou-se em um argumento que mais tarde passaria a ser usado por outros colegas: Ramona discordava que os cubanos ganhassem apenas uma parte do salário, menos de 25%, enquanto médicos de outros países que também trabalhavam para o governo brasileiro recebiam o valor integral, cerca de 10 mil reais. Em depoimento ao Ministério Público, àquela altura, ela disse ter se sentido enganada pela ditadura de Havana. Relatou ainda que o valor que ganhava não era suficiente para viver no Brasil e para mandar roupas e outros bens para os familiares em Cuba. Hoje, Ramona vive nos Estados Unidos com a filha e a neta, e trabalha em uma clínica de estética. Há duas semanas, ela e outros três médicos cubanos entraram com um processo contra a Organização Panamericana de Saúde (Opas), vinculada à ONU. O grupo pede 75 milhões de dólares alegando que a entidade cobrou uma comissão dos salários dos profissionais que atuaram no Brasil e fez vista grossa às condições de trabalho. Em entrevista por telefone, a partir de sua casa em Miami, Ramona contou a Crusoé que os doutores cubanos eram orientados a elogiar o governo petista.

O processo que a sra. e mais três cubanos movem contra a Opas afirma que os médicos eram treinados para fazer doutrinamento político. A sra. recebeu esse treinamento?
Todos os cubanos que deixam o país em uma missão médica precisam fazer um treinamento político. O curso dura entre um e dois meses e acontece em uma escola. Nas aulas, eles nos ensinaram a influir na comunidade que íamos atender. Aprendemos como funcionava a política brasileira e o que tínhamos de dizer ao povo.

O que mandaram a sra. dizer lá em Pacajá, no interior do Pará?
A gente tinha de falar bem da Dilma (Rousseff). Para os pacientes, dizíamos que foi o governo dela que nos mandou para o Brasil. Falávamos que Dilma era boa porque ajudava o povo, porque se preocupava com a saúde dos mais necessitados. Estávamos inculcando uma ideia na população. No caso de haver uma outra eleição, tínhamos de fazer com que os brasileiros votassem pela mesma presidente. Nós tínhamos uma função política.

Dilma Rousseff condenou o fim do acordo entre Cuba e o governo brasileiro. Ela disse que o presidente eleito Jair Bolsonaro nutre desprezo pelos médicos cubanos, porque pediu que eles façam uma prova para mostrar se são qualificados ou não.
Em qualquer país do mundo, no Brasil ou nos Estados Unidos, estrangeiros precisam fazer um exame para revalidar o diploma, e os cubanos têm o conhecimento necessário para isso. Bolsonaro simplesmente deu sua opinião sobre o direito dos médicos cubanos de receber o salário integral, assim como os demais profissionais. Ele também prometeu dar asilo e falou em permitir que os médicos chamem seus familiares. Todos os cubanos concordam com ele. Me pareceu muito bom o que ele disse e espero que ele cumpra sua promessa. Acho que, mesmo entre aqueles que estão voltando para Cuba, mais de 90% acham certo o que o presidente eleito falou.

A sra. também precisou fazer campanha para o Partido dos Trabalhadores?
Não. Só tinha de falar bem da Dilma. Fui descobrir que havia mais de um partido no Brasil somente quando cheguei lá. Antes disso, achava que só existia um, o comunista.

Como explicar essa necessidade da ditadura cubana de fazer política no exterior?
É uma questão ideológica. O comunismo quer se expandir pelo mundo. Mas eles não podem enviar soldados. Então, o que fazem é mandar pessoas que possam falar sobre o comunismo e doutrinar outros povos.

Marcelo Camargo/Agência BrasilMarcelo Camargo/Agência BrasilHoje, a médica trabalha em uma clínica de estética em Miami
Havia o interesse em transformar o Brasil em uma Venezuela ou em uma Cuba?
Acho que sim, além de pegar o nosso salário, claro.

A sra. já foi comunista, então?
Nunca fui. Em Cuba, comunista é quem pertence ao Partido Comunista. Eu jamais me filiei. Me chamaram para o Mais Médicos porque eu trabalhava muito bem. Só pode sair em missão para o exterior quem o Partido Comunista julga confiável. Eu nunca fui uma dissidente, nunca fiz greve.

O que importava mais para a ditadura, a doutrinação política ou o dinheiro?
São dois os objetivos. Existe o econômico e o político. Supostamente, Cuba envia médicos para missões humanitárias. Mas o melhor seria dizer que é uma missão monetária, porque eles nos usam como moeda de troca. Mandam a gente para fora e ficam com 75% do nosso salário.

Se os médicos concordam com Bolsonaro, por que muitos estão retornando para Cuba?
Todos temem que a família que continua em Cuba sofra represálias. Eu penei muito com isso. Minha filha é médica, mas não a deixaram trabalhar como doutora depois que eu saí do programa. Tornaram a sua vida impossível. Então, ela passou a trabalhar por conta própria, com o marido. Os dois começaram a vender comida. Além disso, quem abandona o programa fica oito anos proibido de voltar para a ilha. É muito sofrimento. Aqui nos Estados Unidos, muitos têm a notícia de que o pai ou a mãe morreu, mas não podem retornar para a casa. Cuba é o único país do mundo que faz isso com os seus cidadãos.

É verdade que invadiram sua casa depois que a sra. deixou o Mais Médicos?
Mais ou menos uma semana depois, eles foram lá para confiscar meus bens. Faziam isso com todo mundo que saía do Mais Médicos. Entravam na casa da pessoa e pegavam tudo. Eu sabia que isso ia acontecer, então mandei antes meus parentes irem para a minha casa e levarem tudo embora antes. Quando os oficiais chegaram, a casa estava vazia. Eram coisas que eu tinha comprado com o meu dinheiro, fruto do meu trabalho. Não ia deixar que pegassem.

Marcelo Camargo/Agência BrasilMarcelo Camargo/Agência Brasil“Era uma escravidão moderna”, diz Ramona Rodríguez
A sra. foi pioneira em deixar o programa Mais Médicos, em 2014. Desde então, pelo menos 1.500 cubanos deixaram o Brasil e agora vivem nos Estados Unidos. Como se sente tendo sido a que iniciou esse movimento?
Me sinto feliz ao ver como outros colegas tomaram consciência de que é trabalho escravo e de como o governo cubano se apropria de 75% do salário. Essas coisas não estavam claras até então.

Por que a sra. diz que era trabalho escravo?
Nós éramos proibidos de nos relacionarmos com os brasileiros. Depois das 6 da tarde, tínhamos de ficar reclusos. Não podíamos sair da casa, nem para comprar cigarro. Não tínhamos liberdade, e ainda pegavam parte do nosso salário. Não era a escravidão antiga, mas era uma escravidão moderna.

Como é, para um cubano, descobrir que vale lutar por um direito?
Quem vive em Cuba não sabe que possui direitos. O governo cubano trata de manter o povo na ignorância. Mas os cubanos estão se informando do que acontece no resto do mundo. As missões médicas para outros países ajudam nisso. Nas conversas com estrangeiros, vamos entendendo aos poucos que as coisas podem funcionar de maneira diferente. A internet também abre nossos olhos. Ao ver a realidade dos outros no exterior, fica mais simples entender que também temos os mesmos direitos de outras pessoas. Não importa em qual país alguém nasceu, há direitos que valem para todos.

O processo que vocês movem ressalta que a Opas está vinculada à ONU. Como explicar que uma instituição que defenda os direitos humanos ganhe comissão por trabalho escravo?
Esse tipo de coisa deixo para os meus advogados. Mas concordo que se trata de algo que não entra na cabeça de ninguém bem informado.

A sra. conseguiu asilo político no Brasil. Por que não ficou no país?
Recebi muito carinho e ajuda dos brasileiros. Guardo todos eles em meu coração. Mas foi uma questão cultural. Onde estou agora, há mais cubanos. No Brasil, eu estava sozinha, não falava o idioma e era uma cultura diferente. Sentia temor por lidar com algo desconhecido. Eu não sei falar inglês, mas como eu praticamente não saio de Miami, só falo espanhol.

Como a sra. se sustenta nos Estados Unidos?
Sou funcionária de uma empresa. É um estúdio de tratamento capilar.

Por que não exerce a profissão de médica?
Para revalidar meu diploma, preciso que o governo cubano me dê um certificado. Estou pedindo isso há cinco anos, sem sucesso. Eu gostaria de trabalhar na área de saúde, mesmo que fosse como enfermeira, mas não consigo. A ditadura não me manda o certificado e proibiu minha família de me trazer esse documento. Disseram que tenho de ir lá para pegar. Mas não posso. Sou considerada uma desertora. Estou impedida de entrar em Cuba porque abandonei o Mais Médicos. Como disse, todo mundo que sai do programa fica proibido de voltar para a ilha por oito anos.

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