DivulgaçãoUm dos bombardeiros russos na pista do aeroporto venezuelano: jogo lembra a Guerra Fria

Provocação atômica

O impacto da breve visita de dois bombardeiros nucleares russos à Venezuela é muito mais político e comercial do que militar
14.12.18

A Rússia de hoje guarda apenas um naco do poder que a União Soviética tinha durante a Guerra Fria. Mas o país ainda preserva sua aptidão para importunar seu maior inimigo, os Estados Unidos. Na segunda-feira, 10, dois cargueiros Tupolev Tu-160, com capacidade para lançar bombas nucleares, pousaram no aeroporto de Maiquetía, próximo a Caracas, na Venezuela. Conhecidas como “cisnes brancos”, as aeronaves sobrevoaram os mares ao norte da Europa, foram escoltadas por caças F-16 da Noruega e passaram pelo Caribe antes de chegar ao destino. Em Washington, a reação não demorou. O secretário de estado americano, Mike Pompeo, foi ácido. “O povo da Rússia e o da Venezuela devem ver isso: dois governantes corruptos que esbanjam fundos públicos e esmagam a liberdade enquanto seus povos sofrem”, escreveu ele, no Twitter. Comparações com o período da Guerra Fria tornaram-se inevitáveis.

Não é possível saber se a bordo dos Tu-160 havia ou não armas nucleares. Apesar disso, a mera possibilidade de que isso tenha ocorrido não chega a ter a mesma importância da Crise dos Mísseis, em 1962. Naquela época, aviões americanos de espionagem flagraram a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, com a ponta virada para os Estados Unidos. O mundo, naqueles tempos, vivia o perigo real de uma guerra e o secretismo era fundamental em tudo. Desta vez, os atos políticos barulhentos é que predominam. Os Tupolevs deveriam fazer voos conjuntos com a Força Aérea Venezuela no estado de Vargas, perto da capital Caracas, mas a maior parte do tempo foi gasta em fotografias e discursos na pista do aeroporto, que também recebe voos comerciais. “Os russos querem mostrar que ainda conseguem projetar sua força globalmente, principalmente no Caribe”, diz Eduardo Heleno, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Há também uma vontade de revidar a presença americana e da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) perto das fronteiras russas.”

Na briga dos grandes, a Venezuela se colocou a serviço de Moscou e o ditador Nicolás Maduro aproveitou para subir ao palco. “Toda ação militar tem uma mensagem geopolítica”, diz o historiador venezuelano Luis Alberto Buttó, diretor do Centro Latino-americano de Estudos de Segurança da Universidade Simón Bolívar, em Caracas. “Maduro quis mostrar para a opinião pública nacional e para os vizinhos que ele não está sozinho.” Faz todo sentido. No próximo dia 10 de janeiro, o presidente começará seu segundo mandato. Contudo, as eleições fajutas em que ele se sagrou vencedor, realizadas em maio, não foram reconhecidas por mais de quinze países, incluindo o Brasil. Alguns governantes, como o colombiano Iván Duque, estão incitando os demais a retirar seus embaixadores da Venezuela. Seu objetivo é “encurralar diplomaticamente” o ditador.

O venezuelano também não perde a oportunidade de bradar contra outros países, para desviar a atenção dos problemas nacionais. Maduro segue dizendo que os Estados Unidos, mancomunados com países da região, estão planejando um golpe de estado ou uma invasão. “Hoje venho outra vez denunciar um complô sendo feito da Casa Branca para violentar a democracia venezuelana, me assassinar e impor um governo ditatorial na Venezuela”, disse Maduro na quarta-feira, 12. Ele chegou a citar o assessor de segurança nacional americano John Bolton, que se encontrou com o presidente eleito Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro, no dia 29 de novembro. Para Maduro, Bolton teria dado instruções ao brasileiro para realizar provocações na fronteira entre os dois países. O venezuelano também disse que o general Hamilton Mourão, futuro vice-presidente, tem “cara de louco”.

Ainda que ações militares desse tipo sejam improváveis, é certo que alguns dos vizinhos da ditadura estão aprimorando suas capacidades. Em maio, a Colômbia entrou para a Otan. Por não ser um estado do Hemisfério Norte, não estará protegida pela cláusula que obriga todos os membros a defender qualquer um dos integrantes em caso de ataque. O ingresso do país no grupo será, isso sim, um impulso para a troca de conhecimento e de tecnologia com os demais. “A cabeça principal da Otan é os Estados Unidos, o que ameaça a sobrevivência da Revolução Bolivariana e incomoda o governo de Maduro”, diz o venezuelano Luis Buttó. Em novembro, a cidade de Natal sediou o maior exercício militar do Brasil, com a participação de treze países. Estados Unidos e Chile foram os que mais mandaram armamentos e soldados. A Venezuela também esteve presente, mas apenas como observadora.

A estadia dos bombardeiros russos em território venezuelano será breve. Não passará de uma semana. As aeronaves não serão incorporadas às forças armadas locais, mas terão feito sua publicidade. A Rússia não é uma grande parceira comercial dos países da América Latina. Seus produtos não têm competitividade suficiente para disputar com os da China ou dos Estados Unidos. O país só consegue se destacar por aqui na venda de armamentos. A Venezuela, que se aproximou de Moscou ainda com Hugo Chávez, em 2005, é seu principal cliente na região. “Tudo não passa de propaganda dos russos, que têm um ambicioso plano de negócios e são os provedores de armas e aviões para a Venezuela”, diz o cientista social Luis Daniel Alvarez, diretor de estudos internacionais da Universidade Central da Venezuela. Como o país latino não tem dinheiro para pagar suas compras externas, os negócios são feitos principalmente com a cessão de ações de companhias estatais venezuelanas que exploram recursos naturais, como o petróleo.

Ao final, os Tu-160 podem até ter provocado alguma celeuma, mas não há muitas razões para os brasileiros se sentirem diminuídos com o belicismo do ditador Maduro. Brasil e Venezuela têm números similares de integrantes em suas forças armadas, cerca de 360 mil, mas o orçamento de defesa brasileiro é mais do que o dobro do venezuelano. O sucesso em um conflito com a Venezuela também dependeria da habilidade dos dois países de colocar armas, equipamentos e homens em ação. É aí que a Venezuela não teria chance alguma. O moral da tropa por lá está baixo. Militares de alta patente estão entre as vítimas mais recorrentes de tortura neste ano. Eles são castigados por novatos sem preparo, para que Maduro consiga exercer seu mando sem contestação. Todos os braços das forças armadas estão focados em manter a ordem interna. Soldados distribuem senhas para a compra de comidas em supermercados e reprimem manifestações populares. Com tanta amargura e dificuldades concretas, a sociedade venezuelana não estaria nem um pouco propensa para uma aventura no exterior. “A capacidade de mobilização da Venezuela está muito afetada. Há uma rejeição forte ao governo, não há alimentos nem medicamentos, existem divisões internas e muitos refugiados”, diz Eduardo Heleno, do Instituto de Estudos Estratégicos, no Rio de Janeiro.

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