Bruno Santos/Folhapress

Todo privilégio corrompe

28.12.18
Modesto Carvalhosa

Comemoraram-se com grande pompa, durante várias semanas, os 30 anos de nossa Constituição de 88. O exagero dos elogios cantados em prosa e verso por soberbos tribunos foi de tal ordem que atribuíram à nossa atual Constituição o caráter de documento perfeito, que derramou sobre o povo brasileiro centenas de direitos como jamais havia ocorrido no mundo. Nenhuma crítica, nenhum reparo, nenhuma necessidade de aperfeiçoamento.

Com essa elevação da Carta de 1988 ao status da redentora política de um povo, os discursos das nobres autoridades dos três poderes procuram inocular a ideia de que se trata de um livro sagrado. Enfatizam, nesse plano excelso, que qualquer discussão a respeito do infalível texto é considerada um crime lesa-pátria, uma ofensa ao caráter intocável e sacrossanto desse monumento imperecível colocado no altar da nação. Segundo eles, os ensinamentos cívicos contidos na Carta constituem dogmas, sendo apóstatas os seus críticos e, mais ainda, aqueles que desejam a formação de uma constituinte independente para substituí-la. E as críticas ao magnífico Texto Magno vigente devem ser consideradas fake news e seus autores, processados.

Ocorre que a Constituição de 1988 não é nada disso. Deveria ser chamada de Constituição dos Privilégios, e não de Constituição Cidadã. Os seus mais de mil dispositivos e uma centena de emendas nada mais fazem do que criar benesses para os detentores do poder, para os agentes públicos e para os amigos do rei. O seu texto é uma consagração do mais deslavado corporativismo. Na Constituição atual, falta o princípio fundamental da igualdade na medida em que, desde logo, o poder político emana dos partidos, e não do povo, que somente pode se expressar através das decadentes e corruptas agremiações registradas no TSE. E à semelhança do ancien régime do século XVIII, todos os recursos arrecadados pertencem, por força dessa nossa Carta, aos membros do setor público.

Pode-se, por outro lado, dizer que a Constituição vigente outorga liberdades públicas e direitos individuais e sociais aos cidadãos. Mas esses direitos são encontrados em toda e qualquer constituição dos países democráticos. O que marca o nosso diploma máximo é, pelo contrário, a consagração dos privilégios dos membros do setor público e dos protegidos do setor privado. Nesses trinta anos de vigência da Carta, criou-se um fosso entre a sociedade civil e o estado. Aos cidadãos cabe pagar os impostos. Aos políticos, aos servidores dos três poderes e aos seletos “campeões” empresariais cabe usufruir do produto desses mesmos impostos mediante todo gênero e espécie de benefícios e vantagens acompanhados das exonerações tributárias e trabalhistas.

Em 2018, de janeiro a outubro, o estado arrecadou mais de 2 trilhões de reais em tributos e gastou mais de dois terços desse valor arrecadado nas folhas de pagamento dos servidores e dos políticos, sob o título de “despesas de custeio”. Os municípios brasileiros gastam 75% dos seus recursos orçamentários com os seus servidores.

A Constituição de 1988 é tão iníqua que no parágrafo 11º do artigo 37 determina que “não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios previstos no inciso XI do caput deste artigo, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei”. Isso quer dizer que o teto de remuneração dos ministros do Supremo pode ser ilimitadamente estourado pelas dezenas de “auxílios” prestados aos agentes públicos dos três poderes. A Constituição determina que os políticos e os funcionários devem ser regiamente indenizados pelo penoso encargo de servirem ao estado.

No plano das aposentadorias, a Carta trintenária criou dois mundos. O regime geral da Previdência, que abrange 35 milhões de aposentados do setor privado, e o regime especial de Previdência, que beneficia com aposentadoria integral tão somente 900 mil servidores públicos e políticos profissionais. O déficit previdenciário anualizado do regime geral (35 milhões de aposentados) é de 120 bilhões de reais. Já o déficit dos parcos 900 mil funcionários é de 60 bilhões. Nada mais é preciso dizer sobre os privilégios da segunda categoria.

Falta à nossa Carta o principal fundamento, que é o da isonomia, ou seja, a igualdade da lei perante todos. O reverso da regra de que todos são iguais perante a lei. Mas que leis são essas? As leis que garantem os privilégios constitucionais? As centenas de leis que foram vendidas aos corruptos dentro da Câmara e do Senado, as quais, como lembra o ínclito ministro Herman Benjamim, nunca foram revogadas? As leis em causa própria, casuísticas e até personalíssimas a favor dos olímpicos integrantes do setor público e de grupos de interesses do setor privado? Todos devem obedecer, sem piar, sem mugir, a esses diplomas da corrupção e da desigualdade institucional.

O delito de corrupção é definido classicamente como a apropriação privada de recursos públicos. A glorificada Constituição de 88 é o instrumento maior dessa apropriação privada de praticamente todos os recursos públicos pelas pessoas que compõem o estado e seus seletos acólitos do setor privado. As normas constitucionais e legais, para que sejam legítimas, devem fazer abstração de pessoas e grupos de interesses. Devem ser necessariamente abstratas, difusas, sem identificação de seus beneficiários. Leis que não sejam impessoais são imorais, como o é toda a estrutura de privilégios que se insere na sacrossanta Carta de 88, que criou normas liberatórias para a apropriação privada dos recursos públicos e, assim, um regime cleptojurídico, ou seja, em que a apropriação privada dos recursos públicos se faz através da própria Constituição e das leis pessoais e imorais que ela proporciona, de tal maneira que passamos a ter, no Brasil, com efeito, três formas de corrupção: a constitucionalizada, a legalizada e a criminalizada.

Ora, todo privilégio estabelecido na Constituição e nas leis é uma modalidade de corrupção. Por isso há que se adotar uma nova Carta constitucional que estabeleça primordialmente a igualdade de direitos, obrigações e responsabilidades entre os integrantes do setor público e privado, notadamente trabalhistas e previdenciários. Não se pode mais aceitar que no setor privado mais de 13 milhões de pessoas tenham sido desempregadas, ao passo que no setor público nenhum servidor foi afetado pela grave recessão e estagnação da economia. O regime de estabilidade deve ser fundamentalmente revisto. O uso do instituto do direito adquirido para perpetuar privilégios absurdos dos ocupantes do estado também precisa ser eliminado.

No plano político, impõe-se a extinção do fundo partidário e a eliminação das corruptas emendas orçamentárias individuais e coletivas dos congressistas. Enfim, uma profunda reforma política e administrativa é exigida pela sociedade brasileira, por meio da convocação de uma constituinte independente que possa instituir o princípio da isonomia numa nova Carta principiológica, de apenas uma dezena de artigos. Essa demanda histórica é cada vez mais premente.

Modesto Carvalhosa é jurista e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP.

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