Fábio Motta/Estadão conteúdo"Cada ministro, em seu comportamento, tem que ser independente e tem que dar evidências disso à sociedade"

Um celular na mão e
a democracia na cabeça

28.12.18
Joaquim Falcão

Em geral, as análises sobre o Supremo focam o impacto imediato e a conjuntura das decisões e comportamentos de seus ministros. O que é bom, mas é pouco.

Uma boa refeição somente é saudável se sacia a fome do momento e, ao mesmo tempo, fortalece o organismo para o futuro.

O Supremo esqueceu de seu futuro.

Tem tomado decisões que enfraquecem mais e mais seu organismo. Seu poder. Sua esperança. Sua credibilidade. Sua legitimidade. Sua união.

Abusa do direto à vitalidade como se fosse uma cortina de ferro, ou um Muro de Berlim, só destrutível pelo impeachment. Que, acredita, nunca virá.

Sendo um poder não eleito, acredita que o povo não perceberá a lenta autocorrosão de seu caráter.

Está percebendo.

Vejam as mensagens de autodestruição, tijolo a tijolo, que o Supremo recentemente nos envia.

Há anos o CNJ, desde a época do ministro Jobim, acabara com o ilimitado auxílio moradia. Para burlar essa proibição, os tribunais optaram por conceder o auxílio inconstitucional. Não por resolução administrativa, mas por lei. Judicializaram a si mesmos. Ganhariam anos até chegar ao Supremo.

Levaram cerca de sete anos. E, no final, o Supremo mandou o CNJ redecidir. O Supremo escapou-se de si próprio. Não decidiu. Enquanto isso, o Tesouro pagou. E nada será devolvido.

A mensagem que corrói o caráter institucional, independentemente da questão do auxílio, é clara: (a) o sorteio do relator é decisivo; (b) quanto mais recursos, melhor; (c) quem faz justiça é quem manipula prazos, pedidos de vista e processos.

A outra meta mensagem é a seguinte: alguns ministros usam os últimos dias antes do recesso para impor, por liminar, suas decisões, seus desesperos, seus egocentrismos.

No fim do ano, o Supremo sou eu.

A mensagem corrosiva é que o Supremo deixa de ser porto seguro. É mar revolto. Ninguém manda em ninguém. O país fica em suspenso. A economia também.

A imprevisibilidade administrativa e a instabilidade decisória produzem a insegurança social que desce a rampa de toga, ocupa a Praça dos Três Poderes e inunda o país.

O Supremo não precisa de inimigo. Ele é seu próprio inimigo.

Está conflitado consigo mesmo. Dividido. Sem firme comando de si próprio. Alguns ministros brigam entre si.

Está em crise de identidade.

Confunde seu poder de interpretar a Constituição com o de negociar orçamentos-selfies.

Encanta-se com a quimera de vir a ser poder moderador. Moderar é coordenar, diz o dicionário. Coordenar os demais poderes sem antes coordenar a si mesmo?

Quem o coordena operacionalmente? O presidente? O colegiado? As sessões administrativas? Cada ministro individualmente? Ou os cargos de confiança?

Quem fala pelo Supremo perante a sociedade? O presidente, o colegiado, cada ministro por si só, ou o decano?

Vozes repartidas, partidas vozes.

Procura de nova identidade. Pretender ser poder moderador é desejo de ser outro.

O que será em 2019?

Não sabemos.

Só os economistas são competentes para prever o futuro. E, em geral, erram…

Mas três pedras importantes moveram-se no xadrez do amanhã.

A primeira é a nomeação de um — e depois outro — general para assessorar o presidente do Supremo. O movimento é similar ao dos militares que ocupam ministérios no governo Bolsonaro.

O conceito estratégico é claro: um militar deixa de ser militar quando ocupa cargo civil: legislativo, judicial ou executivo.

Deixa mesmo?

E os valores, a hierarquia, a ética, a visão geopolítica do Brasil, os padrões gerenciais, o conservadorismo cultural e político, sobretudo, o acesso a informações judiciais estratégicas, sob segredo de justiça, a prevenção diante dos direitos humanos? Desaparecem também?

Essa cultura militar imaterial é que estaria entrando no Supremo e no governo.

Faz sentido? É preciso? É o novo normal?

O maior adversário do PT nunca foi o PSDB. Nem foram os empresários, porque com estes, como mostra Lava Jato, o PT pode, na corrupção, se aliar.

O maior precavido contra o PT sempre foram os militares. Vimos agora, no episódio Marco Aurélio, como as Forças Armadas estão atentas ao Supremo.

O que não quer dizer que o ministro Toffoli será um presidente do Supremo do PT. Mas, nos tempos atuais, alguns setores militares preferem prevenir.

O ministro Toffoli pretende ser um presidente negociador. Mas negociar o quê? Quais seus limites? O dever da imparcialidade do presidente do Supremo o impede de ser negociador. É apenas autoridade para responder à pergunta simples: é constitucional ou não?

O que já é muitíssimo.

Qual a transparência e os temas dessas negociações? E com quem? Essas são questões a observar em 2019.

A segunda pedra movida no xadrez é Sergio Moro como ministro da Justiça. O próximo ano deve ser o da Lava Jato 2.0.

Por motivo simples.

Os números mostram que o combate constitucional à corrupção das instâncias inferiores tem esbarrado no Supremo.

Agora, Curitiba chega a Brasília por outra via também. A via do poder político do Ministério da Justiça.

Vai indicar os novos ministros do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça. Os desembargadores da Justiça Federal. As autoridades da Polícia Federal.

Terá mais iniciativa para investigar parlamentares, governadores. Negociar e aprovar leis de combate à corrupção, com a Presidência ao seu lado.

A manutenção do Cade e do Coaf em sua área é vigor contra a lavagem de dinheiro e a recôndita paz dos cartéis e oligopólios que fizeram a Lava Jato.

Investigações em escritórios de advocacia e a magistratura não estarão mais dentro da cortina de ferro em que se fizeram. Já começa no Rio de Janeiro.

Dois novos instrumentos de investigação o favorecem. Primeiro, a intensificação do uso de Big Data ou de Data Analytics. Já temos a transparência e os bancos de dados necessários. Faltam os sistemas de inteligência.

Como já fez o MP de Curitiba ao cruzar tecnologicamente mais de 1 trilhão de reais em transações bancárias. Sob cerrado escrutínio.

Aliás, será o desenvolvimento tecnológico que fará a reforma que o Judiciário não se fez. E fará fora dele.

Outro instrumento é a intensificação da cooperação internacional: intragovernamental, intramercado e intrabancária. Não haverá mais sombras para o dinheiro escondido. Apenas sol.

Finalmente, a terceira nova peça desse xadrez é o mandato principal do presidente Bolsonaro: combater a corrupção e a violência urbana.

As urnas verbalizaram. O Supremo escutará?

O ministro Toffoli listou alguns objetivos que lhes serão privilegiados, tais como modernização estatística, prestação de contas por juízes e tribunais, transparência e tanto mais.

Tenta também alianças internas. Cresce o grupo de ministros mudancistas.

O ministro Barroso tem factíveis propostas para mudanças no processo decisório do Supremo. O ministro Alexandre Moraes, em menos de dois anos de Supremo, conseguiu diminuir de cerca de 6.000 processos em estoque para apenas 1.700. A proposta do ministro Peluso, de execução logo na segunda instância, deve avançar.

A boa notícia, porém, é o novo padrão de comportamento individual dos ministros que começa a se impor. A ministra Rosa Weber o exemplifica e lidera. Bastando ser o que apenas é. Como Edson Fachin também.

Weber mostrou nas eleições como ter autoridade, ser imparcial e eficiente, sem precisar polemizar na imprensa, falar fora dos autos, ofender colegas e ter amizades de meia noite.

Quem sustentará essas possíveis mudanças serão as ruas, as urnas e a opinião pública. E, progressivamente, os empresários e trabalhadores.

Um Supremo com crise de identidade é um Supremo de incertezas decisórias, temperamental, a provocar medo de investir.

É poder não eleito. Se fosse, o eleitor já teria trocado alguns ministros.

O Brasil é, provavelmente, o único país do mundo democrático onde o eleitor reage nas ruas contra alguns ministros individualmente. Através do constrangimento midiático moral. Resistência democrática pacífica.
Essa reação tende a crescer.

Será 2019, nas ruas, o 2013 do Supremo?

Na década de 1960, na dourada época do Cinema Novo, dizia-se que para fazer bom cinema — e muito se fez — bastava o cineasta ter uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.

Hoje, para protestar ou apoiar algum ministro do Supremo, procurador ou juiz, basta o eleitor ter um celular na mão. E um sentimento de justiça na cabeça.

E outro no coração.

Joaquim Falcão é jurista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. Dedica-se, há anos, ao acompanhamento do desempenho do Supremo Tribunal Federal.

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