Fátima Meira/Futura Press/Folhapress

A resistência de Paulo Guedes

O "Posto Ipiranga" de Jair Bolsonaro enfrenta cabeçadas do Planalto, de Onyx Lorenzoni ao próprio presidente, mas promete resistir. Ele acredita que é da economia que virá a redenção da política
11.01.19

Na primeira semana de governo, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pegou o telefone de seu gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto para fazer uma ligação ao ministro da Economia, Paulo Guedes. A conversa não seria sobre reforma da Previdência ou o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), temas que explicitaram, nos últimos dias, o grau de tensão entre eles. Onyx ligou para reclamar do movimento que Guedes vinha fazendo para que o presidente Jair Bolsonaro vetasse integralmente a prorrogação, até 2023, de incentivos fiscais para a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), para a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e para a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco). A medida havia sido aprovada pelo Congresso Nacional no final de 2018. Caberia a Bolsonaro sancioná-la ou, com um veto presidencial, barrá-la.

A conversa foi dura. Guedes argumentou que, se fosse chancelada pelo presidente, a decisão representaria um impacto estimado em 10 bilhões de reais aos cofres públicos. Onyx contestou. Disse que os prejuízos políticos de um veto integral seriam grandes. Afirmou que Bolsonaro poderia ser acusado de trabalhar contra as regiões mais pobres do país e que o veto defendido por Guedes ainda atrapalharia a relação do governo com as bancadas daquelas regiões. Juntas, só Sudam e Sudene englobam 20 das 27 unidades da federação. Após o diálogo nervoso, um ministro não convenceu o outro. Mas Onyx convenceu o presidente. A lei foi publicada na sexta-feira, dia 4. Apenas a Sudeco ficou de fora da prorrogação dos incentivos fiscais.

O “Posto Ipiranga” de Bolsonaro perdia, assim, sua primeira batalha política desde que assumiu o cargo de superministro da Economia. A segunda derrota de Guedes viria poucas horas depois da publicação do veto parcial aos incentivos fiscais no Diário Oficial. Para compensar o prejuízo iminente, o ministro defendeu que Bolsonaro aumentasse o IOF. O presidente topou e anunciou, ele mesmo, a medida. A área política, encabeçada por Onyx, novamente reagiu. O aumento iria contra a promessa repetida por Bolsonaro na campanha de que não haveria aumento de impostos. O que se seguiu foi constrangedor. O secretário especial da Receita, Marcos Cintra, foi obrigado a vir a público desmentir o presidente. Onyx então convocaria uma coletiva no fim da tarde para dizer que, de fato, o IOF não seria reajustado. No Rio, Paulo Guedes cancelaria a única agenda pública que teria naquela tarde. Preferiu submergir para não ampliar ainda mais a confusão. Em menos de uma semana no cargo, ele perdia sua segunda batalha.

Nos últimos dias houve mais entreveros. Desta vez, relacionados à reforma da Previdência. Guedes defende um sistema mais duro (ele é adepto do modelo de capitalização, pelo qual cada contribuinte monta uma espécie de poupança ao longo da vida), com efeitos a longo prazo e que seja encaminhado ao Congresso de uma só vez. Já Onyx avalia que, dessa forma, as chances de a reforma ser aprovada diminuem. Qualquer que seja a versão vitoriosa, perguntas cercam a figura do superministro da Economia. Até quando ele resistirá às quedas de braço? Ou, sob outra ótica, até quando Brasília resistirá a ele?

Acostumado a operar com o mercado financeiro a partir do Leblon, o bairro nobre carioca onde se concentram escritórios de fundos como o Bozano Investimentos, que comandava, a capital federal sempre foi um terreno desconhecido para Paulo Guedes. Um campo no qual ele, assumidamente, tem dificuldades para jogar. O ministro costuma referir-se a Brasília com certo desdém. Está entre os que acreditam que a configuração dominante do poder central nas últimas décadas atravanca o desenvolvimento do Brasil. “A coisa mais fácil do mundo é se livrar de quem não está habituado a Brasília”, disse em seu discurso de posse. “Dão um baile na gente, a gente desanima e vai embora para casa”, completou.

Por ora, a opção de ir embora para casa não está no horizonte do ministro. Pelo contrário. Guedes se mostra disposto a enfrentar as resistências. Quem esteve com ele nos últimos dias relata que, apesar dos entreveros, Guedes está entusiasmado com a possibilidade de implementar seu ideário liberal. O ministro se assustou, sim, com a primeira semana de trabalho, especialmente com os tiros, cotoveladas e caneladas que tomou. Mas, na segunda semana, começou a dar mais fluxo a sua rotina. E a se sentir mais à vontade, em todos os sentidos – inclusive na relação com Brasília, o lugar que até havia pouco detestava. Guedes mora temporariamente em um flat à beira do lago Paranoá, mas está à procura de uma casa no Lago Sul. Ele se mudará de vez para a cidade com a mulher, com quem é casado há mais de 40 anos. Diariamente, tem acordado por volta das 4h30. Lê o noticiário e depois sai para caminhar. Volta, faz ginástica e, logo depois, segue para o ministério. Chega ao gabinete por volta das 9 horas.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBolsonaro após chegar de lancha à posse do novo comandante da Marinha, na quarta: arestas a aparar com o chefe da Economia
Guedes pretende manter, ao menos nos próximos meses, o fluxo de encontros semanais com sua equipe que começou a ser desenhado nestes primeiros dias de governo. Às segundas-feiras, reúne os seis secretários do ministério (Comércio Exterior e Assuntos Internacionais; Competividade e Produtividade; Desestatização e Desmobilização; Fazenda; Planejamento; Previdência e Receita Federal). Nos dias seguintes, faz reuniões em separado com cada um deles, e também com técnicos de todas as áreas, para monitorar planos e aferir resultados. Todas as secretarias preparam medidas para serem anunciadas nas próximas semanas. Os despachos internos são intercalados com uma agenda externa em que se destacam os outros polos de poder do novo governo. Ele também tem sentado com integrantes do Judiciário. A todos, repete um roteiro similar: apresenta o seu diagnóstico do país (com destaque para o problema da expansão do gasto público acima do crescimento do PIB), seu plano de solução (reforma da Previdência, privatizações e reforma do estado) e, em seguida, teoriza sobre a forma como o liberalismo econômico, do qual é adepto, pode salvar a política.

As teses de Paulo Guedes são guiadas por um tripé, cujas ideias centrais são as seguintes: (1) a concentração de recursos em Brasília corrompeu a política e travou o país; (2) é preciso descentralizar as verbas federais e permitir que estados e municípios tenham controle sobre elas; e (3) ao tirar dinheiro da União, a relação entre Executivo e Legislativo se daria em bases mais programáticas e estaria menos suscetível à corrupção. “O capitão pode ser o caminho para a reabilitação da classe política. Temos que descentralizar recursos. O dinheiro tem que ir aonde o povo está, para saúde, segurança e saneamento”, afirma.

Em termos gerais, a recepção ao discurso tem sido positiva. O mercado, em especial, vibra – esta semana, o clima de otimismo fez a bolsa bater recorde histórico. Mas a dificuldade tem sido transpor a retórica. Nesse sentido, vencer as resistências da política, incluindo aquelas que são verbalizadas até pelos próprios colegas de governo, como Onyx Lorenzoni, é um passo importante. Há sérias dúvidas se a classe política, acostumada ao toma lá dá cá, aceitará as bases do novo modelo de relacionamento que o ministro quer implementar. Embora hoje não passe por sua cabeça deixar o cargo, o entorno de Guedes avalia que seu limite seria a constatação de que tudo continuará como antes.

Se o ministro, como ele mesmo disse, tomar um baile de Brasília, desanimar e for embora, as consequências serão dramáticas para o governo, cujo sucesso está vinculado diretamente à retomada da economia (assim como a avanços na segurança pública). Responsável por abrir as portas do mercado para Bolsonaro e afastar o receio natural que havia com as ideias nacionalistas e intervencionistas que o ex-capitão defendeu ao longo dos seus 27 anos de mandatos na Câmara dos Deputados, Guedes é visto como o garantidor dos resultados prometidos. Uma vez eleito, o presidente deu ao economista um poder na estrutura administrativa do governo que só se compara ao que Delfim Netto teve no comando da economia sob o regime militar. Com carta branca, ele remodelou a área econômica e chamou para sua equipe medalhões do mercado.

Após a posse, porém, começaram a aparecer os primeiros sintomas de que o casamento com o próprio Bolsonaro, inclusive, sofre risco de ranhuras. Todas as batalhas que Guedes perdeu nas duas primeiras semanas do governo tiveram a digital do presidente – que, ao menos neste início, estaria se curvando à agenda política em detrimento das necessidades prementes apontadas por Guedes. A negociação que vai definir o formato da reforma da Previdência, agenda prioritária do governo, será o primeiro grande teste da relação. É o que irá, de fato, indicar qual dos lados prevalecerá. Internamente, Bolsonaro, ante a necessidade de se manter popular, tem dado sinais de que defenderá a sugestão da área política, que quer uma reforma mais branda e fatiada. Ele chegou a propor publicamente, dias atrás, uma idade mínima inferior ao projeto que já tramita no Congresso. Guedes não gostou, mas silenciou. Deixou para reagir nesta semana, ao defender uma reforma mais dura. Primeiro, em entrevista, o que fez o dólar cair e a bolsa subir. Depois, em reunião a sós com o presidente na quarta-feira, que terminou sem que os dois batessem o martelo sobre o desenho da reforma.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéGuedes e Onyx: o chefe da Casa Civil é um dos pivôs do mal-estar
Há ainda outros casos em que Bolsonaro se opõe ao ideário liberal de Guedes. A discussão em torno da sanção ou do veto dos incentivos fiscais relatada na abertura desta reportagem é um deles. Outro é a rejeição do presidente à implementação do imposto único defendido por Guedes. Uma terceira situação, que pode gerar novos ruídos em breve, é a contrariedade de Bolsonaro quanto à tributação de movimentações financeiras, medida também encampada pelo ministro da Economia.

Ante os sinais de acirramento dos embates entre a área econômica e o núcleo político do governo – e sob o risco de danos colaterais que podem advir da polarização –, o Planalto se apressou para tentar mostrar que a situação está sob absoluto controle, e que todos vão muito bem, obrigado. A estratégia de comunicação para conter a crise, talvez a maior dentre todas as que surgiram nestes primeiros dias de mandato (leia aqui sobre as demais), incluiu a reafirmação, em público, do casamento do Planalto com Guedes. O ministro foi convidado por Onyx para um almoço no palácio. Posaram juntos para fotos. Ainda no início da semana, na cerimônia de posse dos novos presidentes do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e do BNDES, o ministro disse que Bolsonaro é “democrata”, “patriota” e “um homem sincero”. O presidente se disse agradecido ao ministro por “ter acreditado em mim”. “Nasceu ali uma amizade”, afirmou. Mas Bolsonaro deixou um recado: “Tenho certeza que eu conheço muito mais de política do que Paulo Guedes, e ele conhece muito, mas muito mais de economia do que eu”.

O texto final da reforma da Previdência deve ser definido até o próximo dia 21, quando Bolsonaro embarca com Paulo Guedes para o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. O presidente vai discursar no evento, mas é em torno dos encontros de Guedes com os grandes players da economia mundial que se concentram as principais expectativas do mercado. Em tese, será uma oportunidade ímpar de atrair investimentos. Estarão na viagem também o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, e o ministro da Justiça, Sergio Moro, hoje o principal aliado do ministro da Economia na Esplanada. Moro e Guedes conversam quase todo dia, e já têm uma agenda em comum rascunhada. Para além da concordância em torno da  refundação das bases do relacionamento do governo com a classe política em geral, os dois têm tratado de algumas medidas consideradas essenciais para a implantação de seus planos. Paulo Guedes, por exemplo, busca no colega da Justiça orientações sobre como proceder para que seu programa de concessões e privatizações não corra riscos no Judiciário. A relação de ambos vem desde a eleição. Foi Guedes quem procurou Moro pela primeira vez para sondá-lo para o cargo. A relação com Onyx Lorenzoni, com quem costuma se comunicar por WhatsApp, é bem diferente, embora Guedes se queixe de que a imprensa estaria exagerando ao apontar as turbulências entre os dois.

Ainda é muito cedo para apontar qual dos lados sairá vitorioso da queda de braço, assim como as consequências que isso terá para os resultados do governo. Disputas entre as áreas política e econômica são inevitáveis, mas a história mostra que o alinhamento entre elas aumenta as chances de sucesso.

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