O fiscal viajou
Em maio de 2018, um grupo de cerca de 40 servidores da Agência Nacional de Mineração, novo nome do antigo DNPM, foi enviado para Minas Gerais. Não se tratava de uma ação de fiscalização ou força-tarefa, o que agora se revelou mais do que necessário após a gigantesca tragédia em Brumadinho. De domingo a quarta-feira, os funcionários aproveitaram o “convite imperdível ao debate e ao aperfeiçoamento profissional”, na “aconchegante e turística Ouro Preto, com seu ambiente geológico-mineiro”, como dizia a propaganda do Simpósio Brasileiro de Exploração Mineral.
Documentos internos, obtidos por Crusoé, mostram que a própria direção do órgão pôs a viagem dos servidores à frente dos esforços para averiguar a condição de minas e barragens, ao propor que recursos destinados à fiscalização fossem remanejados para garantir a participação no evento – plano que só foi frustrado em razão da demora e da burocracia orçamentária. O diretor-geral da Agência, Victor Hugo Bicca, era da comissão de organização do simpósio, promovido pela Agência para o Desenvolvimento Tecnológico da Indústria Mineral Brasileira, uma espécie de associação das mineradoras. Um dos “patrocinadores diamante” era, ironicamente, a Vale.
Tudo começou em março de 2018, quando a agência disparou e-mails perguntando quem estava interessado em participar. Na ponta do lápis, a viagem teve orçamento total de 200 mil reais, com inscrição, diárias e passagens. Pelo menos 114 mil reais foram efetivamente desembolsados pela agência.
O curioso é que a direção da agência primeiro se certificou se haveria interesse dos funcionários no evento para, só depois, ver se tinha dinheiro disponível. Sem orçamento liberado, a solução partiu de Walter Lins, diretor de fiscalização. Em um curto e-mail, ele sugeriu tirar dinheiro da área que controlava, em redação típica da burocracia. “Vimos por meio deste disponibilizar os recursos orçamentários disponíveis no PO – 0002, PTRES nº 137386, da Ação Outorga, Fiscalização e Regulação da Pesquisa e Produção Mineral (215Z) para custeio da participação dos técnicos desta ANM.” Em bom português: tirar dinheiro da fiscalização para garantir a viagem.
Foi então que Victor Hugo Bicca, o diretor-geral, resolveu decidir monocraticamente. De novo, a fiscalização ficou em segundo plano. A viagem, em primeiro. “Autorizo o pedido da Diretoria de Fiscalização da Atividade Minerária do remanejamento de recursos orçamentários da Ação Outorga, Fiscalização e Regulação da Pesquisa e Produção Mineral”, escreveu Bicca. Isso aconteceu em julho de 2018, dois meses após o evento. Os servidores já haviam viajado e a despesa já havia sido feita. Faltava só pagar.
A manobra só não foi para frente porque, entre idas e vindas, a ordem de remanejamento foi dada em setembro. Coube à área técnica da agência frustrar os planos. O motivo era simples: o orçamento do ano havia estourado. Crusoé pediu esclarecimentos à Agência Nacional de Mineração, mas não recebeu resposta. Victor Hugo Bicca, na semana passada, finalmente deu prioridade à fiscalização. Ele foi ver pessoalmente uma barragem da Vale. Infelizmente, era Brumadinho. O trágico rompimento acontecera na véspera.
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