ReproduçãoO antigo DNPM, agora ANM: viagens liberadas

O fiscal viajou

O chefe do órgão responsável por vistoriar minas e barragens mandou usar dinheiro da fiscalização para pagar viagem de funcionários a evento
01.02.19

Em maio de 2018, um grupo de cerca de 40 servidores da Agência Nacional de Mineração, novo nome do antigo DNPM, foi enviado para Minas Gerais. Não se tratava de uma ação de fiscalização ou força-tarefa, o que agora se revelou mais do que necessário após a gigantesca tragédia em Brumadinho. De domingo a quarta-feira, os funcionários aproveitaram o “convite imperdível ao debate e ao aperfeiçoamento profissional”, na “aconchegante e turística Ouro Preto, com seu ambiente geológico-mineiro”, como dizia a propaganda do Simpósio Brasileiro de Exploração Mineral.

Documentos internos, obtidos por Crusoé, mostram que a própria direção do órgão pôs a viagem dos servidores à frente dos esforços para averiguar a condição de minas e barragens, ao propor que recursos destinados à fiscalização fossem remanejados para garantir a participação no evento – plano que só foi frustrado em razão da demora e da burocracia orçamentária. O diretor-geral da Agência, Victor Hugo Bicca, era da comissão de organização do simpósio, promovido pela Agência para o Desenvolvimento Tecnológico da Indústria Mineral Brasileira, uma espécie de associação das mineradoras. Um dos “patrocinadores diamante” era, ironicamente, a Vale.

Tudo começou em março de 2018, quando a agência disparou e-mails perguntando quem estava interessado em participar. Na ponta do lápis, a viagem teve orçamento total de 200 mil reais, com inscrição, diárias e passagens. Pelo menos 114 mil reais foram efetivamente desembolsados pela agência.

DNPMDNPMO atual diretor-geral da Agência Nacional de Mineração aprovou o remanejamento
Apesar da vontade da direção em enviar tanta gente a Minas Gerais para o seminário, surgiu um problema no meio do caminho: não havia orçamento disponível. Veio então a ideia de tirar dinheiro da fiscalização. Vale ressaltar o óbvio: isso aconteceu quando já ocorrido, quase três anos antes, o rompimento da barragem de Mariana, também em Minas. Agora, com Brumadinho, o episódio revela como tecnocratas de Brasília, na prática, podem privilegiar os interesses corporativos em desfavor da população. Uma das justificativas para o remanejamento da verba da fiscalização para o pagamento da viagem foi insólita: a turma escreveu que a medida tinha por objetivo atender uma sugestão do Tribunal de Contas da União de oito anos antes, para capacitar servidores e melhorar sua eficiência.

O curioso é que a direção da agência primeiro se certificou se haveria interesse dos funcionários no evento para, só depois, ver se tinha dinheiro disponível. Sem orçamento liberado, a solução partiu de Walter Lins, diretor de fiscalização. Em um curto e-mail, ele sugeriu tirar dinheiro da área que controlava, em redação típica da burocracia. “Vimos por meio deste disponibilizar os recursos orçamentários disponíveis no PO – 0002, PTRES nº 137386, da Ação Outorga, Fiscalização e Regulação da Pesquisa e Produção Mineral (215Z) para custeio da participação dos técnicos desta ANM.” Em bom português: tirar dinheiro da fiscalização para garantir a viagem.

DivulgaçãoDivulgaçãoBicca em visita a Brumadinho: atenção depois do desastre
Um novo impasse surgiu quando a área de administração da agência destacou que uma decisão como essa só poderia sair da direção colegiada. “Autorizei viagens até o valor que estava previsto, mas realmente houve gastos além disso e o que propuseram foi usar verbas da fiscalização para pagar a viagem”, confirmou a Crusoé Wagner Fernandes Pinheiro, então diretor de planejamento da agência, a quem cabia liberar o dinheiro. Ele se negou a assinar a liberação. Alegou que só o conjunto dos diretores poderia autorizar o remanejamento.

Foi então que Victor Hugo Bicca, o diretor-geral, resolveu decidir monocraticamente. De novo, a fiscalização ficou em segundo plano. A viagem, em primeiro. “Autorizo o pedido da Diretoria de Fiscalização da Atividade Minerária do remanejamento de recursos orçamentários da Ação Outorga, Fiscalização e Regulação da Pesquisa e Produção Mineral”, escreveu Bicca. Isso aconteceu em julho de 2018, dois meses após o evento. Os servidores já haviam viajado e a despesa já havia sido feita. Faltava só pagar.

A manobra só não foi para frente porque, entre idas e vindas, a ordem de remanejamento foi dada em setembro. Coube à área técnica da agência frustrar os planos. O motivo era simples: o orçamento do ano havia estourado. Crusoé pediu esclarecimentos à Agência Nacional de Mineração, mas não recebeu resposta. Victor Hugo Bicca, na semana passada, finalmente deu prioridade à fiscalização. Ele foi ver pessoalmente uma barragem da Vale. Infelizmente, era Brumadinho. O trágico rompimento acontecera na véspera.

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