ReproduçãoBloqueio impede a passagem da ajuda humanitária: oferta é teste de fogo para os militares leais a Maduro

Como é a vida na Venecuba

Sem comida e sem remédios, os venezuelanos precisam da ajuda humanitária oferecida pela comunidade internacional. Mas o ditador Nicolás Maduro teme uma intervenção militar externa
08.02.19

Na Venezuela, entre 250 mil e 300 mil pessoas correm risco de morrer por falta de comida ou de remédios. Maduro, contudo, entende que a ajuda humanitária oferecida pelos Estados Unidos e outros países é só um pretexto para os adversários estabelecerem uma maior presença militar em suas fronteiras. Tanto é que, na quarta-feira, 6, militares venezuelanos colocaram dois contêineres azuis e um caminhão-tanque bloqueando a ponte entre a cidade colombiana de Cúcuta e o município venezuelano de Ureña.

O receio de uma escalada militar na região tem certo fundamento. Atualmente, há cerca de 1.000 soldados americanos na Colômbia. Para a abertura de um canal humanitário, um contingente maior seria necessário. Foi por isso que, no final de janeiro, o assessor de segurança nacional americano, John Bolton, apareceu com uma frase manuscrita em uma folha dizendo: “5 mil soldados para a Colômbia”. Bolton, assim como o presidente Donald Trump, frisou que “todas as opções estão sobre a mesa”. Uma intervenção militar não está, portanto, descartada. Por isso, todos os carregamentos de ajuda humanitária que chegaram nos últimos dias a Cúcuta, na fronteira com a Venezuela, foram acompanhados com ansiedade. Walid Phares, analista de segurança e política externa do canal Fox News, chegou a dizer no sábado, 2, que forças navais americanas se deslocaram para a Colômbia em helicópteros.

Ao longo da semana passada, pacotes com centenas de toneladas de remédios, kits de higiene e suplementos alimentares foram enviados para a colombiana Cúcuta e armazenados à espera de uma oportunidade para ingressar na Venezuela. A operação foi conduzida pela Usaid, a agência americana que cuida da ajuda internacional. Para que se complete, contudo, é necessário que as autoridades venezuelanas aceitem a entrada da carga. Ou, então, que haja uma mudança de regime. Nesse sentido, mais do que uma ofensiva bélica, o que se pretende é que a situação extremada leve os graúdos militares venezuelanos a trocar de lado, deixando de apoiar Maduro e passando a sustentar o presidente interino Juan Guaidó. O deputado, cuja autoridade já foi reconhecida por mais de trinta países, deixou claro como a ajuda humanitária deveria ser tratada, em mensagem nas redes sociais no último dia 4: “Eu faço um chamado para as nossas Forças Armadas. Em poucos dias, elas terão a oportunidade de decidir se estão do lado de alguém que está cada vez mais sozinho ou se acompanharão as centenas de milhares de venezuelanos que precisam de comida, suprimentos e remédios”.

Além de um ponto de distribuição em Cúcuta, Guaidó afirmou que haveria outro no Brasil e um terceiro em uma ilha do Caribe. O chanceler Ernesto Araújo afirmou, após uma reunião com o americano Bolton, que o Brasil estuda uma maneira de entregar a ajuda, mas que isso seria feito de maneira autônoma. “Não é necessário ter tropas americanas ou de outro país no Brasil. Nós teríamos condições de proporcionar a logística para isso com nossos próprios meios”, disse Araújo.

Maduro transformou um país de 30 milhões de habitantes e com as maiores reservas de petróleo do mundo em um simulacro de Cuba. Durante uma semana, Crusoé esteve na Venezuela para documentar o dia a dia da população. A conclusão é clara. Seus habitantes estão ainda mais necessitados de ajuda humanitária do os cidadãos da ilha caribenha.

Nos arredores da capital Caracas, não se avista plantação ou criação de qualquer coisa. O que mais predomina na paisagem são os campos queimados. Na capital, os outdoors de propaganda estão sem anúncio. Só permanecem suas armações de metal. O movimento das avenidas faz crer que todo dia é domingo. Não há mais hora do rush e só se avistam carros velhos. Embora não sejam os automóveis da década de 1950 que são a cara de Havana nos cartões-postais, os veículos venezuelanos mais novos têm ao menos cinco anos de uso.

O salário mínimo no país é de 18 mil bolívares soberanos. Dependendo da conversão, esse montante pode valer entre 5 e 11 dólares. Chega muito próximo, portanto, ao salário de um cubano, que no máximo alcança 20 dólares. Os produtos, contudo, têm os preços reajustados toda semana. Só em janeiro, a inflação foi de 276%. Uma refeição pode custar entre 5 mil e 50 mil bolívares. Um sabonete, 10.000 bolívares soberanos. “Perdi cerca de 70% da minha clientela. Quem era pobre ou classe média não compra mais carne de boi. Agora vendo principalmente para as embaixadas”, diz o açougueiro Gabriel Cabral Camaro, da cidade de Chacao, parte da grande Caracas. Na maior parte do tempo, o açougue permanece com portas fechadas. É para evitar tumultos ou extorsões de todo tipo.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraO açougueiro Gabriel Cabral Camaro, em Caracas: queda de 70% nas vendas de carne e portas fechadas na maior parte do tempo
Entre os cubanos, é comum ouvir que, para viver, é preciso ter “fé”. Não é nada religioso. “Fé” a que eles se referem é uma sigla que significa “família no exterior”. Entre os venezuelanos, a situação é a mesma. Até o final do ano, estima-se que 5 milhões de pessoas deixem o país, cerca de 15% da população. Todos aqueles que Crusoé entrevistou em Caracas têm algum parente em outra nação de língua espanhola ou nos Estados Unidos. O vendedor de bananas José Angel Flores, de 30 anos, trabalha no mercado de Chacao e tem quatro irmãos. Todos já saíram do país. Foram para o Chile e para o Panamá. “Não quero ir embora. Só deixaria meu país se não desse mais, se ficasse sem dinheiro para comprar comida”, diz Flores. “Com Juan Guaidó, passei a ter esperança de que a situação vai melhorar.” Ele só vende o quilo da banana — 3.000 bolívares — por meio de cartão. Os preços são atualizados semanalmente.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraO vendedor de bananas José Angel Flores: seus quatro irmãos foram para o Panamá e para o Chile
É muitas vezes com o dinheiro enviado pelos familiares do exterior que grande parte dos venezuelanos sobrevive atualmente. Luis Guillermo Martínez tem 52 anos e três filhos de 8, 18 e 20 anos. Ganha a vida como desenvolvedor de websites e operador de rádio. Seu rendimento, no total, chega aos 18 mil bolívares, o valor do salário mínimo. Metade é pago pelo governo, que também lhe dá um bônus para comprar comida. Esse bônus, contudo, é de 180 bolívares. Não é suficiente para comprar um cafezinho, que custa entre 500 e 1.500 bolívares soberanos. “Tudo o que ganho é para comprar comida. Mas, se eu for tomar um café, vou gastar mais do que ganho durante um dia inteiro”, diz Martínez. Ele e sua família sobrevivem graças a amigos e ao dinheiro enviado por sua irmã, de 17 anos, que deixou o país para viver na Espanha. Ela manda 20 euros para ele por mês. “Para ela, é um valor irrisório, mas aqui isso é bastante”, diz.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraO operador de rádio Luis Guillermo Martínez: ele vive com 20 euros mensais mandados pela irmã de 17 anos, que vive na Espanha
Os venezuelanos estão morrendo não apenas de fome, mas também porque não há remédios. Há alguns anos, ainda era possível obter medicamentos no mercado negro, que eles chamam de bachaqueo. A inflação, contudo, tem desvalorizado a tal ponto o salário que nem isso é mais possível. “Minha mulher tem uma simples infecção urinária, mas não temos como obter o remédio, que em qualquer país do mundo, mesmo nos mais pobres, poderia ser obtido facilmente”, diz o pintor Rafael Araújo, conhecido como “o homem do papagaio”. Sempre que há uma manifestação, ele faz uma pipa com frases contra o regime e a exibe. A última trazia um ultimato: “Chega de comunismo”.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraO pintor Rafael Araújo, que ficou conhecido como o “homem do papagaio” e seu protesto na pipa
Crusoé chegou a encontrar a dona de uma farmácia pechinchando restos de cortes de presunto em um açougue no mercado de Chacao. Seu nome é Mary Rodríguez de Sánchez. Ela é formada em Farmácia e trabalhava com quatro fornecedores nacionais de medicamentos. Todos fecharam. Com isso, não há mais o que vender. “Minha sogra e minha cunhada já foram para a Espanha. Elas sempre falam para eu ir também, mas amo meu país”, diz ela, que acabou saindo do mercado sem comprar nada. “Uma vez, fiz croquetes com pedaços de presunto. É assim que a gente vai se virando.”

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraA farmacêutica Mary Rodríguez: sem remédios para vender em sua farmácia, ela pechincha restos de presunto no mercado de Chacao
Na Venezuela, morre-se também por falta de água e de luz. Foi o caso do pai da advogada Argelia Perozo, de 43 anos, funcionária da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas. Ele foi operado do coração e, há seis anos, dependia de diálise. Como também sofria de diabetes e tinha problemas com a pressão, parentes e amigos que vivem na Espanha, em Porto Rico e na Colômbia se mobilizaram para mandar remédios e equipamentos. No bairro de classe média em que vive sua família, o de Montalbán, começou a faltar água entre quarta e domingo. “Primeiro, o governo disse que a culpa era do El Niño. Depois, não falou mais nada”, diz Argelia. “A água então começou a vir de muito má qualidade, suja e com cheiro fétido. Tínhamos de filtrá-la sempre e começamos a ter doenças de pele”. Apagões também se tornaram frequentes. A clínica frequentada pelo seu pai, no mesmo bairro, começou a padecer dos mesmos problemas. Os médicos começaram a pular as sessões de diálise. No dia 22 de abril de 2018, o pai de Argelia não resistiu mais. “No período de um mês, quatro das vinte pessoas que faziam diálise com ele morreram”, diz a filha.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraA advogada Argelia Perozo, cujo pai morreu porque não havia água e eletricidade para as sessões de diálise no bairro de Montalbán, em Caracas
Só com um controle ferrenho se pode evitar que os venezuelanos não se rebelem com muito mais força contra a ditadura. Essa repressão não ocorre apenas nas manifestações, mas permeia o cotidiano de todos. É um controle parecido ao dos Comitês de Defesa da Revolução (CDRs) que estão em todas as quadras de Cuba e regulam a vida pessoal de cada um. Uma demonstração mínima de descontentamento pode marcar alguém por toda a vida. Elen Hernández, de 36 anos, afirma que só não deixou seu país ainda porque não tem dinheiro para comprar uma passagem aérea. Fisioterapeuta especializada em terapias respiratórias, ela se formou em 2004. Desde então, não consegue um emprego duradouro. Isso porque, em 2002, quando ainda era estudante, ela participou de um abaixo-assinado a favor de um referendo para tirar o presidente Hugo Chávez do poder.

“Não estou trabalhando por causa de razões políticas”, diz Elen. “Embora não pertença a nenhum partido e não me identifique com ninguém, estou nas listas.” Vendidas em CDs, essas listas trazem os nomes dos opositores e são consultadas pelos chavistas a todo momento. Em 2007, Elen foi escolhida para uma vaga no programa Barrio Adentro, que tinha como objetivo levar o atendimento de saúde a favelas, com a participação de profissionais cubanos. Foi esse o modelo que depois deu origem ao programa Mais Médicos no Brasil. Mas Elen durou na posição apenas alguns meses. “Os bolivarianos foram investigar meu passado. Eles consultaram as listas e, quando viram que eu estava em uma delas, me mandaram embora. Sou vítima de segregação. Há um apartheid político em meu país”, diz a fisioterapeuta.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraA fisioterapeuta Elen Hernández, que não consegue emprego porque, em 2002, participou de um abaixo-assinado pedindo a retirada de Hugo Chávez
Em apenas dois pontos a vida na Venezuela e em Cuba ainda são muito distintas. O primeiro deles é que, se a ilha comunista é um paraíso barato para turistas (e um parque de diversões para a esquerda), não há quem queira passear na Venezuela. Se alguém na imigração diz que está entrando no país a turismo, pode-se ter a certeza de que se trata de um jornalista indo cobrir os últimos acontecimentos e querendo passar despercebido. Outra diferença é a criminalidade. Quando um celular toca no meio da rua, os venezuelanos simplesmente não o atendem para não serem obrigados a tirar o aparelho do bolso. Além dos criminosos comuns, sofre-se também com o crime organizado, praticado por narcotraficantes e terroristas.

A estudante universitária Ivette Daza León tem 21 anos e é da cidade de San Antonio de Táchira, na fronteira com a Colômbia. Há oito anos, membros de uma das frentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) ligaram para a sua família e pediram dinheiro. Se seus pais não entregassem o valor solicitado, em pesos colombianos, Ivette seria assassinada. “Eles sabiam tudo o que eu fazia durante o dia, tinham todos os meus horários e os meus dados, como meu número de identidade. Tinham acesso à base de dados oficial do governo”, diz ela. Com a extorsão, sua vida mudou por completo. Por três meses, Ivette, que então tinha 13 anos, praticamente não saiu de casa.

“Minha casa virou minha prisão e minha fortaleza ao mesmo tempo”, diz ela. Quando Ivette passou no curso de estudos internacionais na Universidade Central da Venezuela, a mãe decidiu mudar-se com ela para Caracas. O pai permaneceu em San Antonio de Táchira. Atualmente, diversos grupos patrulham as ruas dessa cidade fronteiriça com armas à vista e os rostos cobertos. “O acordo de paz na Colômbia com as Farc não mudou em nada a realidade na minha cidade. Os dissidentes que não aceitaram o acerto com o governo colombiano seguem atuando impunemente e extorquindo a população venezuelana”, afirma.

Crusoé/Duda TeixeiraCrusoé/Duda TeixeiraA estudante universitária Ivette Daza, que é de San Antonio de Táchira: dissidentes das Farc continuam aterrorizando a população na fronteira
San Antonio de Táchira é uma das cidades venezuelanas que fazem fronteira com a colombiana Cúcuta, onde os americanos estão armazenando ajuda humanitária. Quanto mais o tempo passa, mais os venezuelanos precisam desesperadamente de socorro.

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