Um escândalo histórico
“Senhor presidente, foram constatadas duas cédulas sem envelope”, disse o senador Nelsinho Trad, anunciando o vexame. Eram 16h32 de sábado, o segundo dia da circense eleição para a presidência do Senado. Depois de todo o espetáculo da véspera, com roubo de pasta, xingamentos e empurrões, a sessão corria relativamente pacífica quando o absurdo foi constatado. A votação teve de ser anulada porque um dos senadores pegou duas cédulas, não as incluiu no envelope como os demais e as depositou na urna de madeira. São 81 senadores, mas havia 82 votos. Fraude explícita. Tudo isso ao vivo, em rede nacional. O país acompanhava a disputa que, horas depois, acabaria na histórica derrota de Renan Calheiros.
O que se sabe até agora é que os principais envolvidos no episódio eram todos eleitores e aliados de Renan Calheiros. Para começar, os dois votos adulterados eram para Renan. A sessão era conduzida por dois eleitores (e também correligionários) de Renan, os também senadores José Maranhão e Fernando Bezerra Coelho. As oitenta cédulas que estavam acondicionadas em envelopes, como manda a regra, tinham a assinatura de Maranhão e de Bezerra – respectivamente o presidente e o secretário da sessão. As duas cédulas avulsas, não. Crusoé descobriu que os dois votos fraudados só tinham uma assinatura, a de Bezerra. Ele confirmou a informação. “Os votos adulterados só tinham a minha assinatura. Não tinham a de Maranhão”, admitiu. “Alguém provavelmente pegou essas duas cédulas que estavam agarradas antes de o Maranhão assinar e colocou na urna”, completou o pernambucano do MDB.
Pela dinâmica da votação, o pernambucano Bezerra assinava primeiro e passava a cédula para Maranhão assinar. O senador paraibano, então, devolvia o pedaço de papel a Bezerra, que deveria colocá-lo junto do envelope. Em seguida, cédula e envelope tinham de ser entregues aos votantes. A certa altura, o rito foi desrespeitado. E quem pegou as duas cédulas, de caso pensado, apôs em ambas a opção por Renan. Ou seja: votou em dobro. Como personagem relevante da cena, e incomodado com as insinuações de colegas que o apontavam como suspeito, o próprio Fernando Bezerra correu para apresentar um pedido de investigação. No ofício, anexou uma imagem do momento em que se dirige à urna, com apenas um envelope na mão.
Poucos foram os que insistiram na necessidade de investigação. Muitos repetiam, sob reserva, que é melhor deixar a fraude no passado para evitar que o ambiente conflagrado da disputa se perpetue. “A vida segue”, disse um deles. “Não se pode fazer caça às bruxas”, afirmou outro. “É preciso erguer uma bandeira branca”, declarou um terceiro. As opiniões similares vinham, curiosamente, tanto de aliados de Alcolumbre quanto de apoiadores de Renan. Quem esteve com o novo presidente tratando do assunto relatou que ele, também nos bastidores, mostrou-se mais sensível à ideia de virar a página, com receio de Renan retaliar sua gestão na presidência.
No meio da semana, Alcolumbre acabou cedendo à pressão da minoria descontente e pediu ao corregedor Roberto que abrisse um processo. Imagens da TV Senado e do circuito interno de câmeras de segurança foram requisitadas. Como há a possibilidade de as câmeras não terem captado o momento exato da fraude, a ideia é contar também com o testemunho de quem estava por perto na hora da votação – em torno da mesa, e da urna, havia pelo menos 15 pessoas, entre servidores e senadores. “Vamos até o fim”, prometeu o senador Rocha. Alguns dos protagonistas da cena dizem, reservadamente, estar convencidos de que o autor da fraude é um senador. E que, se houver disposição para identificá-lo, é um caso clássico para cassação.
Se a ideia do time renanzista era essa, não deu certo. Houve grita por parte dos apoiadores de Alcolumbre. Mas o espetáculo continuou. E só piorava. Outro senador do PT, Jean Paul Prates, sugeriu ao pé do ouvido de José Maranhão que rasgasse os dois votos a mais. “Destrói as cédulas rápido para ninguém ver o voto”, propôs o petista. O áudio foi captado pelos microfones da transmissão da sessão pela TV. Maranhão obedeceu. Mais do que depressa, rasgou as duas cédulas avulsas. Alguns disseram que ele colocou os pedaços picotados no bolso – ele nega. As demais cédulas foram destruídas com a ajuda de uma máquina picotadora, levada às pressas para o plenário.
Àquela altura, a apuração dos votos válidos de uma urna fraudada, como defendia Bezerra, era o termômetro que Renan precisava para mensurar o apoio que tivera. Qualquer que fosse o resultado, ele tinha uma saída: se tivesse recebido mais votos, poderia tentar forçar a validação da votação suspeita; caso o resultado já fosse a derrota, poderia defender uma nova eleição. E sempre haveria a esperança de levar o pleito para o painel eletrônico.
Seria o crime perfeito. A destruição das cédulas impediria que uma apuração mais detalhada, com a prova do crime, fosse feita. Mas, em algum momento, os mentores da fraude perderam o controle da situação. Ante a decisão de repetir a votação — e de fazê-la de novo por meio de cédulas e não do voto eletrônico –, Alcolumbre se fortaleceu. O clima de suspeita que tomou conta do plenário deixou Renan no prejuízo. Alguns senadores que na primeira eleição não tinham aberto seus votos decidiram abrir – foi o caso de Mara Gabrilli e Flávio Bolsonaro. O movimento levou Renan a desistir da candidatura. Alcolumbre venceu. Mas o Senado, até agora, está perdendo. Nestes tempos em que os brasileiros exigem mudanças no comportamento dos políticos, deixar o escândalo passar em branco é dar de ombros para a vontade popular – e só mostra que a derrota do velho Renan terá sido apenas um ponto fora da curva.
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