Roberto Stuckert Filho/Presidência da RepúblicaA ex-presidente Dilma Rousseff e o ditador cubano Raúl Castro durante inauguração do Porto de Mariel, em 2014

O fim de uma ilusão

Os cubanos sonharam alto com o dinheiro brasileiro destinado à ilha na era PT, mas a esperança virou pó. Era mais ideologia do que pragmatismo
15.02.19

Um enorme guindaste carregando um contêiner encheu as telas das televisões de milhões de cubanos em janeiro de 2014, durante a inauguração da primeira parte da Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel, a oeste de Havana. Na foto oficial, a presidente brasileira Dilma Rousseff sorriu ao lado de Raúl Castro. Cinco anos depois, o porto não tirou a ilha da crise econômica e a ex-presidente brasileira é um cadáver político.

Mariel, a zona costeira por onde, em 1980, dezenas de milhares de cubanos, cansados do modelo comunista, partiram para a Flórida, se tornou o elefante branco do castrismo na última década. Todas as esperanças do país foram colocadas naquela faixa do litoral onde o apoio do Partido dos Trabalhadores (PT) ajudou a financiar a última obra faraônica de uma revolução decadente.

A construção de um “empório comercial” chegou pelas mãos da Odebrecht, o conglomerado brasileiro que, logo após essa inauguração, estaria no centro de um enorme escândalo que respingou em vários governos da América Latina, em numerosos partidos políticos e em centenas de autoridades.

No entanto, o maior obstáculo para o desenvolvimento de Mariel não foi a origem obscura de suas finanças ou a saída do Palácio do Planalto de seus principais benfeitores, mas o fato de ter sido concebido para brincar com o capitalismo em um país excessivamente estatizado e governado por um grupo de octogenários que desconfia do mercado.

Quando Rousseff e Castro cortaram a fita para deixar aberta a primeira parte do terminal de contêineres de Mariel, eles também estavam enviando uma mensagem. Aqueles eram os tempos em que, na foto de família dos mandatários americanos, prevaleciam os rostos dos representantes do socialismo do século XXI. Uma irmandade de camaradas que se ajudavam nos fóruns internacionais e escondiam –de maneira recíproca– seus excessos autoritários.

Assim, o porto cubano, financiado com um empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), não apenas foi parte de uma estratégia de solidariedade com a Praça da Revolução, em Havana, para aliviar sua crônica incapacidade de produzir riquezas, mas também tinha uma intenção ideológica de viabilizar um modelo que, em meio século, já tinha dado provas suficientes de seu fracasso.

Assim como o subsídio da União Soviética uma vez apoiou os delírios de Fidel Castro e, mais tarde, o patrocínio de Hugo Chávez permitiu que Fidel passasse o poder para seu irmão mais novo, Raúl, Brasília também quis apoiar seu parceiro político e manter viva a “chama” da revolução cubana. Era uma tarefa quase arqueológica, um esforço para fazer parecer que um regime incapaz de sobreviver sem recursos externos ainda estava respirando com a ajuda de seus próprios pulmões.

Em janeiro de 2014, ainda faltavam vários meses para que se anunciasse o degelo diplomático entre Cuba e os Estados Unidos. Mas, sem dúvida, todo o porto de Mariel foi projetado para acomodar navios que, fazendo escala na ilha, terminariam em portos dos Estados Unidos e vice-versa. Após cinco anos, o degelo voltou a esfriar pela incapacidade de Havana em dar passos para a abertura na velocidade das medidas de Barack Obama e pela chegada de Donald Trump à presidência.

Tampouco o PT continua no poder no Brasil e pouco resta daquele retrato de família da região onde se podiam ver rostos como os de Rafael Correa (ex-presidente do Equador), da própria Dilma Rousseff ou de Michelle Bachelet (ex-presidente chilena). Daqueles “tempos dourados”, Cuba ficou com uma dívida que mal consegue pagar ao seu ex-sócio sul-americano e um porto que está se convertendo em um parque temático do passado, que não consegue atrair navios carregados de mercadorias ou investidores dispostos a se instalar em sua zona comercial.

Mas a retirada brasileira da ilha não ficou só nisso. No final de 2018, uma disputa diplomática enfurecida entre o regime de Miguel Díaz-Canel e o presidente eleito brasileiro Jair Bolsonaro terminou com a saída prematura de milhares de profissionais de saúde cubanos do programa Mais Médicos.

Bolsonaro acusou Havana de praticar escravidão moderna com seus médicos no exterior e exigiu que eles recebessem o valor integral de seu salário, porque o governo cubano ficava com 75% dos 3.300 dólares (cerca de 11 mil reais) que o Brasil dava para cada um. Ele também exigiu que os médicos passassem por provas para revalidar seus títulos e para demonstrar seus conhecimentos. O Ministério da Saúde Pública da ilha não aceitou e bateu a porta.

Por trás das manchetes e do confronto entre as duas administrações, ficaram no esquecimento as pequenas histórias de milhares de cubanos que, agora, tentam reconstruir suas esperanças de melhorar suas vidas e as de seus familiares. Muitos deles tinham chegado ao Brasil não apenas movidos pelo sentido humanitário, inerente a todo o pessoal de saúde, mas também impulsionados por suas necessidades econômicas.

Em Cuba, os doutores são os profissionais mais bem remunerados. No entanto, o salário mensal deles não excede o equivalente a 60 dólares. Não é incomum ver um médico com sapatos destruídos, que não conseguiu tomar o café da manhã porque não tem recursos para fazê-lo ou que precisa esperar um ônibus público por duas horas antes de chegar a uma sala cirúrgica para realizar uma cirurgia cerebral complicada.

As missões oficiais no exterior sempre foram uma oportunidade para esses médicos conseguirem mais recursos financeiros, apesar da altíssima porcentagem de seus salários que fica com as autoridades. Mas, sobretudo, essas viagens constituem um momento propício para estabelecer relações humanas que permitam a eles se casar, forjar amizades ou contatos que possam significar ficar em outro país ou voltar mais tarde de forma privada, com dinheiro próprio.

Com a saída vertiginosa de Cuba do Mais Médicos, os sonhos desses médicos foram feitos em pedaços. O mesmo aconteceu com o porto de Mariel, que tinha enchido de ilusões muitos habitantes desse pequeno povoado na zona do litoral oeste de Havana. Também foram destruídos os sonhos de muitos cubanos que, por décadas, esperam que a economia da ilha se recupere algum dia para viver mais dignamente e para não ver seus filhos partirem para o exílio.

Por tudo isso, agora mesmo, dizer “Brasil” em Cuba é mencionar um sonho, o reflexo de algo que poderia ter sido e que não foi. Mas também é a evidência do fracasso de uma estratégia e da caída em desgraça de um apoio que teve mais ideologia do que pragmatismo.

A jornalista cubana Yoani Sánchez, que escreveu este texto especialmente para Crusoé, vive em Havana e dirige o site 14ymedio.

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