MarioSabino

Villas Bôas, soldado da democracia

01.03.19

A entrevista mais marcante que fiz como jornalista foi uma que não fiz. Em 1985, eu trabalhava na Folha de S. Paulo como editor das páginas de livros e recebi as provas tipográficas de Agrestes, de João Cabral de Melo Neto, que acabara de ser lançado. Fiquei entusiasmado com a oportunidade de ler antes de todo mundo um livro daquele que eu considerava o maior poeta brasileiro. Na minha opinião, ele já seria o maior poeta brasileiro se houvesse escrito apenas o poema abaixo:

Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome

onde foi palavra

(potros ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio

Por meio da editora, consegui marcar uma entrevista com João Cabral. Peguei o avião para o Rio. Ele morava num daqueles apartamentos antigos no Flamengo, de frente para a enseada da Baía de Guanabara. Fui recebido por um senhor que reputei ser parente do poeta e encaminhado a uma sala mais inundada de luz do que de móveis. De certa forma, o ambiente reproduzia o verso gravado na minha memória — havia ali a severa forma do vazio, em contraste com o pomar carioca lá de fora.

Esperei por cerca de uma hora, imaginando como seria a vida de João Cabral naquele apartamento. As cadeiras antigas da sala pareciam dispostas para uma festa que jamais aconteceria — e eu esperava que a entrevista fosse dada no escritório onde provavelmente ele escrevia as suas obras. Como seria a sua mesa: organizada na simetria austera dos seus poemas? Ele escrevia durante o dia ou preferia a noite? Quem sabe o poeta deixaria eu xeretar a sua biblioteca… A hora se passou em meio a devaneios, até que fui informado de que, infelizmente, o poeta havia tido um problema de saúde e estava no hospital. João Cabral sofria de dores de cabeça alucinantes, a ponto de escrever em “Monumento à Aspirina” que o remédio era “o mais prático dos sóis”. Ninguém me disse o motivo do seu mal-estar, supus que fosse uma dor de cabeça, e comuniquei à sucursal carioca do jornal que o poeta estava com um problema de saúde que o impedira de me dar a entrevista. Seria bom apurar o que havia ocorrido.

Voltei para São Paulo frustrado, é claro. E cheguei a pensar que João Cabral não havia sido internado coisa nenhuma. Mas não fiquei com raiva. Ainda mais porque, passados alguns dias, recebi um exemplar de Agrestes com uma dedicatória sua, falando da entrevista que não houve. Mais de três décadas depois, não sei onde foi parar o livro. Entre as tantas coisas que perdi na vida, esta foi mais uma. Onde foi maçã resta uma fome.

Há poucos dias, tive outro desencontro — ou melhor, um não-encontro marcante. Foi com o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e atual assessor do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Meses atrás, eu iria encontrá-lo em Brasília, mas tive um contratempo e não pude ir. A vontade de nos conhecermos pessoalmente era mútua. Como precisava ir à capital federal, o diretor da Crusoé, Rodrigo Rangel, propôs que se tentasse marcar novo encontro. Desta vez conversaríamos no Palácio do Planalto, não no Comando do Exército. Na hora marcada, Rangel e eu fomos recebidos por dois simpáticos coronéis que, ali mesmo no saguão, informaram que Villas Bôas não passara bem. Eu disse que seria impossível encontrá-lo no dia seguinte, por causa da quantidade de compromissos que me aguardavam em São Paulo. Voltei mais uma vez frustrado para casa, com a lembrança reavivada do meu não encontro com João Cabral de Melo Neto.

Com o poeta que padecia de dores de cabeça, eu teria tido uma conversa literária que, com sorte, tomaria um atalho que me permitiria ouvi-lo sobre aspectos da existência que, para um jovem de 23 anos, estava nos seus começos. De certa forma, eu intuía que ela, a existência, seria para mim um deserto a ser cultivado como um pomar às avessas — o que acabou se confirmando nesta seara do jornalismo político. Com o general que padece de esclerose lateral amiotrófica, eu teria tido uma conversa nada literária sobre o deserto que ele nos ajudou a atravessar como país. Em pelo menos dois momentos da história recente, Eduardo Villas Bôas salvou o jogo. O primeiro foi em 2015, quando se recusou a reprimir as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff. Petistas sondaram os militares sobre a decretação do estado de defesa, outorgando a Dilma poderes especiais para suspender garantias individuais como se houvesse grave crise institucional. O general Villas Bôas deixou claro que não iria jogar o Exército contra o povo que se manifestava democraticamente nas ruas pela deposição de uma presidente que havia sido eleita com dinheiro de propina.

O outro momento foi em 3 de abril de 2018, às vésperas do julgamento do pedido de habeas corpus de Lula no STF, que poderia evitar que o ex-presidente fosse preso quatro dias depois. Villas Bôas sabia que a concessão do habeas corpus poderia mergulhar o país no caos institucional. As pressões dentro das Forças Armadas ficariam perigosas, alimentadas pelo recrudescimento do movimento de cidadãos em prol de uma intervenção militar. Na hora decisiva, Villas Bôas mandou o recado em duas postagens no Twitter:  

“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” 

E ainda:

“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

No julgamento do habeas corpus no STF, um dia depois dos tuítes de Villas Bôas, o ministro Celso de Mello atacou a intromissão dos “pretorianos”, mas a ordem democrática foi mantida graças ao então comandante do Exército. Hoje no Gabinete de Segurança Institucional, embora cada vez mais encarcerado no seu próprio corpo, Villas Bôas permanece uma voz livre e poderosa em meio a tanta cacofonia. Que seja ouvida, se não se juntar ao coro desafinado.

Em Meu Coração Desnudado, Charles Baudelaire escreveu que “não há grandes, entre os homens, a não ser o poeta, o sacerdote e o soldado. O homem que canta, o homem que sacrifica e o homem que se sacrifica”. O poeta João Cabral de Melo Neto e o soldado Eduardo Villas Bôas, guardadas as devidas proporções e diferenças, são dois grandes que não encontrei. O sacerdote que eu jamais poderia encontrar é o Padre Antônio Vieira. 

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