A unidade da FAB no Rio que comprou o programa: investigação chegou ao MP

Fraude na caserna

A história do ex-major que tentou ganhar dinheiro com um software criado dentro do quartel e acabou pilhado na esperteza
08.03.19

De fevereiro de 1994 a março de 2015, o carioca Sérgio Reinert serviu no Exército brasileiro, onde alcançou o posto de major antes de entrar para a reserva. Antenado às tecnologias e aos impactos da informatização na gestão pública, ele se dedica, pelo menos desde 2008, a estudar e aprimorar um software de gestão de projetos até hoje utilizado nas Forças Armadas. Por trás do militar dedicado, porém, também havia um servidor que, a exemplo do que ocorre em outros órgãos, estava interessado em encher o bolso à custa dos cofres governamentais.

Utilizando as instalações do Exército para desenvolver uma versão “profissional” do programa conhecido como GPWeb, o major da reserva conseguiu amealhar por meio de sua empresa de tecnologia da informação, entre 2013 e 2018, ao menos 3 milhões de reais em contratos com órgãos do governo. Fechou um deles até com o Comando da Aeronáutica. A esperteza de vender para órgãos públicos um programa desenvolvido no serviço público acabou descoberta.

O “pulo do gato” do major se deu em duas etapas. Primeiro, ele registrou o software como um programa livre. A partir desse registro, os aplicativos para ganhar dinheiro ficaram disponíveis gratuitamente no Portal do Software Público Brasileiro. Até aí nenhum problema, uma vez que o objetivo do portal é justamente funcionar como uma comunidade para discutir e melhorar os softwares livres, que como o próprio nome sugere são gratuitos e podem ser modificados por qualquer usuário.

Atuante no portal, Reinert compartilhou experiências, testou algumas funcionalidades e recebeu sugestões de melhorias de usuários. Tudo isso enquanto ele ainda estava na ativa e utilizava a estrutura do 3º Batalhão de Comunicações do Exército em Porto Alegre (RS), onde estava lotado em 2011, para aprimorar o programa. O militar chegou a utilizar o programa nos servidores do batalhão e a oferecer treinamentos sobre o software nas instalações do Exército. Até deu o telefone da unidade do Exército onde trabalhava para quem quisesse tirar dúvidas.

ReproduçãoReproduçãoO major Reinert, que foi para a reserva em 2015: ele nega irregularidades
“Não pretendo ganhar um Oscar de inovação, mas sim verificar as melhores ideias disponíveis em softwares públicos e tentar agregar funcionalidades para atender um público maior”, escreveu o então major em uma postagem em um fórum da internet. Ele podia até não pretender ganhar um Oscar de inovação, mas planejava ganhar dinheiro. E o plano deu certo. A partir das melhorias obtidos no processo de desenvolvimento do software público, o major desenvolveu uma versão comercial do programa.

Rebatizado de “GPWeb Profissional”, o aplicativo foi oferecido como sendo de propriedade do major e logo passou a ser contratado pelas próprias Forças Armadas, entre outros órgãos públicos. Para fazer o negócio, o militar criou uma empresa, registrada em nome da mulher e da sogra dele. Logo vieram os contratos. Com o Comando do Exército, o contrato foi assinado em março de 2015, pouco antes de Reinert entrar para a reserva. O acerto previa que não haveria custo para corporação: o Exército teria o direito de usar o aplicativo ad eternum para projetos militares.

Em paralelo, porém, a empresa foi firmando outros contratos, esses remunerados, que renderam ao todo 3 milhões de reais. Um deles, no valor de 648 mil reais, foi assinado com o Centro de Computação da Aeronáutica no Rio de Janeiro. Garantia uma “licença perpétua” do software, além da prestação de serviços de assistência técnica por um ano.

Os contratos chamaram a atenção de auditores do Tribunal de Contas da União durante uma fiscalização de rotina. Ao se darem conta das semelhanças entre o GPWeb Profissional e a versão pública, eles decidiram abrir uma investigação e se debruçaram sobre o desenvolvimento do programa e as estratégias do major para faturar. Concluíram que houve fraude e sugeriram a abertura de um novo procedimento, desta vez para recuperar o dano ao erário e para verificar a eventual participação de outros funcionários públicos, inclusive militares, nos processos de contratação das empresas do major.

Divulgação/ExércitoDivulgação/ExércitoO QG do Exército: a corporação se exime de responsabilidade no caso
No contrato firmado com a Aeronáutica, os auditores elencaram indícios de direcionamento da contratação, feita sem licitação, e manifestaram estranhamento com o valor pago à empresa do major, muito superior ao praticado em contratos similares – em um dos casos usados na auditoria para efeito de comparação, o montante pago ao militar pela chegou a ser 30 vezes superior ao de outro contrato. Os fiscais constataram ainda que, no processo de contratação, as funcionalidades do software que a Aeronáutica buscava eram, literalmente, as mesmas apresentadas na descrição do programa de Reinert, publicadas no site de sua empresa. Era, portanto, uma fraude com direito a “Ctrl+C, Ctrl+V”.

Na defesa que apresentou ao tribunal, a empresa do militar informou que o sistema foi desenvolvido “fora do expediente no batalhão”. Reinert também alegou que o programa é de sua propriedade e não é derivado do software público que ele desenvolveu quando estava no Exército. Em dezembro do ano passado, porém, a corte entendeu que houve fraude e proibiu a empresa de contratar com o poder público por cinco anos.

A Crusoé, por e-mail, o major da reserva se disse vítima de perseguição. “Não tenho como sozinho provar, mas quando eu ainda estava na ativa ouvia de colegas no Quartel General do Exército sobre a existência de indivíduos trabalhando para riscar meu software do mapa, pois assim poderia ser oferecido ao Exército algum software de prateleira de gerenciamento de projetos”, disse.

Em nota, o Comando do Exército informou que o programa que o major ajudou a desenvolver trouxe uma economia de centenas de milhares de reais e é distinto daquele que ele passou a vender na praça. Esse, diz o texto, “jamais foi utilizado pelo Exército Brasileiro”. Já o Comando da Aeronáutica informou que vem atendendo às recomendações feitas pelo do TCU no despacho que apontou fraude no contrato. No mês passado, o caso chegou ao Ministério Público Federal em Brasília, que já acionou a Polícia Federal para investigar se, para além das irregularidades administrativas apontadas pelos auditores, o ex-militar cometeu algum tipo de crime.

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