MarioSabino

O dia em que elogiei Dilma Rousseff

08.03.19

Há um mês, lembraram-me de que fui escritor. Recebi um e-mail da minha agente literária (havia esquecido que tinha uma), informando que uma editora da Turquia se interessara em publicar o meu primeiro romance, O Dia em que Matei Meu Pai. Ela disse que se tratava de uma ótima editora, mas que, como o país atravessava uma crise econômica, não poderiam pagar um bom adiantamento de direitos autorais. Respondi que a editora só perderia dinheiro ao lançar o meu romance, assim como ocorrera com as editoras dos outros dez países que haviam cometido essa imprudência. Acho que, com exceção de Paulo Coelho, todos os escritores brasileiros da atualidade dão prejuízo aos seus editores estrangeiros ou, no máximo, empatam o parco investimento. Mas topei a proposta turca, dizendo que seria uma honra ser editado no país de Orhan Pamuk, o que é verdade.

A minha agente literária, cujo escritório fica baseado em Londres, não desiste de mim, apesar de ela contar com um monte de autores realmente interessados na própria carreira literária e exímios na arte de escrever e vender livros. A sua perseverança em relação a mim é diretamente proporcional à distância que nos separa. Entre outros feitos, a minha agente literária conseguiu que uma editora holandesa comprasse o meu segundo romance, O Vício do Amor, e que uma revista libanesa muito elegante, editada em árabe e inglês, me encomendasse um conto, tarefa que cumpri com diligência. No início, você fica orgulhoso de ser um escritor publicado em outras línguas. Não vou negar que seja bacana. Hoje, no entanto, não sinto mais o mesmo orgulho. Quando lembro que fui escritor, fico realmente preocupado com o fato de essas editoras perderem dinheiro comigo.

A literatura trouxe mais chateações do que alegrias para mim, apesar de não ter sido um fracasso comercial no Brasil. Explico: abri mais um flanco para ser atacado como jornalista, deixei a minha vida pessoal ser contaminada e, como se não bastasse, a literatura propiciou que elogiasse Dilma Rousseff no programa de entrevistas de Jô Soares. Ao receber o e-mail da minha agente, revivi o episódio.

Desde o lançamento do meu primeiro romance, que coincidiu mais ou menos com a eclosão do escândalo do mensalão, Jô Soares vinha me convidando para participar do programa dele — e eu sistematicamente recusava, porque não gosto de aparecer na televisão e sabia que a literatura seria apenas a porta de entrada para falarmos de política. Como redator-chefe da Veja, o segundo na hierarquia da revista, eu não me sentia confortável para abordar pessoalmente o assunto, visto que o meu papel era falar por meio da Veja, em consonância com a linha editorial acertada com o publisher, Roberto Civita, e o diretor de redação.

Quando lancei O Vício do Amor, no final de 2011, Jô Soares renovou o seu convite pela terceira vez. Como o mensalão já estava para ser julgado e Lula era ex-presidente havia quase um ano, achei que era o caso de ser educado e aceitar o convite. A frente política parecia mais calma e a entrevista no programa ajudaria na divulgação do romance. Além disso, eu já contava com quatro livros publicados, um deles bastante traduzido, e havia sido premiado pela Biblioteca Nacional. Ou seja, poderia ser considerado um autor de verdade.

A entrevista está no Youtube. Foi tudo muito simpático. A maior parte do tempo foi dedicada mesmo aos meus livros e às traduções do meu primeiro romance. Não tentei ser minimamente profundo, fiz piadas e fui caricato nas minhas falas sobre o amor, assunto do meu romance então recém-lançado, porque entendi que devia ser ligeiro, por não ser um programa literário. Até que, como não poderia deixar de ser, Jô Soares enveredou pelo caminho da política. Perguntou por que eu não havia aceitado os primeiros convites para participar do seu talk show. Respondi que não me sentia confortável por causa do papel da Veja na cobertura do mensalão. E lá pelas tantas afirmei que, até aquele momento, Dilma Rousseff havia me surpreendido positivamente, porque demitira os ministros suspeitos de falcatruas e, ao contrário de Lula, não havia tentado amordaçar a imprensa.

Não disse nenhuma mentira, mas fui um personagem sem convicção no meu elogio a Dilma Rousseff. A realidade é que o fiz para agradar a Roberto Civita, embora ele nada me tivesse pedido. O dono da Abril devia a Dilma Rousseff a aprovação na Anatel da venda de uma frequência de ondas à Telefônica – frequência que havia sido um presente de José Sarney. A venda permitiria à operadora entrar no mercado de TV a cabo e  salvaria financeiramente a editora. A petista e Roberto Civita se aproximaram quando ela era ministra-chefe da Casa Civil. “Se a Dilma está brava comigo, me chama de Civita; se está satisfeita, me chama de Roberto”, dizia ele. O problema é que, na Presidência da República, Dilma Rousseff o estava chamando de Civita durante a maior parte do tempo – efeito Veja –, e isso o preocupava. Achei que o elogio do redator-chefe da revista aliviaria um pouco a barra dele com a inquilina do Palácio do Planalto.

Havia ainda um segundo motivo para o meu elogio: dentro da Abril, como já contei aqui, eu era apontado pelos executivos da editora como o único responsável pelo tom belicoso das reportagens da revista que denunciavam o PT – o que prejudicava os negócios da Abril. Os blogs sujos petistas consolidavam essa visão. Eu havia me tornado um bode expiatório para todo mundo. Ao elogiar Dilma Rousseff no programa de Jô Soares, achei que a atitude confundiria os adversários e ajudaria a desfazer a trama que se tecera contra mim dentro e fora da editora. Eu não estava fugindo das minhas responsabilidades. Assumir responsabilidades não significa ter de assumir as responsabilidades dos outros. Principalmente se isso inviabiliza a sua vida profissional.

O meu estratagema não funcionou, como pude constatar ao sair do cargo de redator-chefe da Veja. A hipocrisia é sempre a pior forma de ficção. Para ser breve, de nada adiantou elogiar Dilma Rousseff. E, cinco anos depois, eu ajudaria a derrubá-la, num veículo de imprensa da qual sou sócio-fundador e que nunca dependerá de governos, seja para receber favores ou publicidade. É ótimo não se sentir obrigado a agradar a patrões ou a ter de se defender de executivos mais patronais do que o próprio patrão. Tudo está bem quando termina bem (assim espero).

Em turco, O Dia em que Matei Meu Pai é Babami öldürdügüm gün. Google Tradutor. Falta um acento invertido no “g” da segunda palavra. Não consigo encontrar no teclado. Só voltarei a lembrar que fui escritor daqui a um ano e meio. Esse é o prazo máximo para lançarem o meu primeiro romance na Turquia e perderem os 400 euros que me pagarão como adiantamento.

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