Nelson Jr./STF

Bombas sobre a Lava Jato

A maior operação anticorrupção da história completa cinco anos debaixo de um ataque sem precedentes -- inclusive do próprio Ministério Público
15.03.19

O país passou meses e meses acordando às sextas-feiras surpreendido com mais um figurão pego em situação vexaminosa. Megaempresários, políticos sem foro e burocratas da Petrobras eram presos em série. Compra de carros de luxo, contas na Suíça e entregas de dinheiro vivo eram expostas como prova da corrupção reinante. Um mercado paralelo de advogados e delatores surgiu para tentar conter os estragos, por um lado, e por outro ajudar a trazer mais revelações, por meio de delações premiadas, quando a situação dos réus era irreversível. Era o auge da Operação Lava Jato, quando a parceria entre a Justiça Federal, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal produziu resultados nunca antes vistos no país no combate ao crime do colarinho branco. Era tanta gente presa que até colchões tinham que ser improvisados na carceragem da Polícia Federal em dias de operação. Com o passar do tempo, um ex-presidente da República acabou preso, assim como o ex-todo-poderoso presidente da Câmara dos Deputados, e o líder da oposição só não seguiu o mesmo caminho graças ao foro privilegiado. Neste domingo, 17, a Lava Jato completa 5 anos desde a deflagração de sua primeira fase ostensiva. E, em seu aniversário, não há muito o que ser comemorado. Já sem os holofotes de outrora, a operação está sob o maior bombardeio de sua história – e uma parte das pesadas bombas vem do próprio Ministério Público.

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O ano de 2019 era para representar um novo patamar no combate à corrupção no país. Uma parte significativa das pessoas que fizeram o sucesso da Lava Jato agora tem mais poder e capacidade para realizar ações mais amplas. Muitos foram promovidos. Sergio Moro, por exemplo, deixou de ser juiz para ser o superministro da Justiça. Os delegados Maurício Valeixo e Igor Romário de Paula saíram do Paraná para comandar a cúpula da Polícia Federal em Brasília. Esses três exemplos servem para ilustrar um movimento maior, de valorização de políticas de combate à corrupção, desencadeadas a partir do momento em que o juiz, estrela da operação, aceitou o convite para integrar o governo de Jair Bolsonaro. Se é verdade que isso ainda pode render resultados, com o reforço das equipes que investigam poderosos de Brasília, por exemplo, também é uma realidade que a corrente contrária à Lava Jato segue organizada e tem colecionado vitórias contra os integrantes da força-tarefa — o procurador Deltan Dallagnol à frente — que se encarregaram da parceria vitoriosa contra os corruptos. O próprio Sergio Moro faz uma reflexão sobre o momento crítico: é preciso consolidar essas conquistas e enfrentar o que ele chama de risco de retrocesso: “A Operação Lava Jato representou a quebra da tradição da impunidade da grande corrupção no Brasil e contribuiu para o fortalecimento, central em uma democracia, do princípio de que ninguém está acima da lei. Mas construir instituições fortes é um objetivo perene e não isento do risco de retrocessos. O desafio atual é consolidar e avançar essas conquistas”, disse Moro a Crusoé.

As evidências do momento crítico são explícitas. Como anunciado pelos próprios procuradores da força-tarefa, o resultado do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de um recurso que leva uma parte importante dos processos para a Justiça Eleitoral representa um duro golpe na operação. A ação, impetrada pelo ex-prefeito carioca Eduardo Paes, fez o Supremo decidir que, quando há crimes comuns conectados a eleitorais sob investigação, a competência deve ser da Justiça Eleitoral. Como se sabe, políticos costumam atribuir o recebimento de dinheiro ilegal a interesses de campanha. O resultado do julgamento foi apertado: 6 a 5. Marco Aurélio, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli formaram a maioria. Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia ficaram derrotados.

Para os procuradores, o resultado do julgamento é o começo do fim da Lava Jato tal como a conhecemos. Antes mesmo do encerramento do julgamento, Carlos Fernando dos Santos Lima, que fez parte da força-tarefa no seu auge, já tinha ido mais longe. Ele levantou a possibilidade de serem anuladas até as condenações já obtidas pela força-tarefa na Justiça Federal — o que foi confirmado pelo ministro Marco Aurélio Mello depois da sessão, em entrevista a jornalistas. O procurador Roberson Pozzobon classificou a decisão do Supremo como “o sonho de todos corruptores e corrompidos”.

Há alguns elementos práticos que explicam o temor da Lava Jato ante a possibilidade de ver os processos remetidos para a Justiça Eleitoral. Lá, o trâmite é mais lento e a estrutura para tocar as ações é menor. Isso porque, para além dos processos e investigações, as cortes eleitorais também são encarregadas de organizar eleições, conferir a regularidade de candidaturas e as prestações de contas das campanhas. O ministro Luís Roberto Barroso, também integrante da atual composição do Tribunal Superior Eleitoral, deu um exemplo concreto. Em seu gabinete no Supremo, ele tem dois juízes auxiliares na área criminal. No TSE, nenhum. Coube a Barroso, aliás, destacar o óbvio: o que importa não é se o dinheiro foi para campanha ou para o bolso do político, mas sim a origem do dinheiro. “Não será bom, após anos de combate à corrupção, mexer em uma estrutura que está dando certo, funcionando, e passar para uma estrutura que absolutamente não está preparada para isso”, disse o ministro durante o julgamento no Supremo, nesta quinta-feira, 14.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressO procurador Dallagnol: ainda há o que fazer, mas sob ataque fica mais difícil
Não é preciso ir longe para encontrar casos de impunidade na Justiça Eleitoral. Em julgamento de 2017, as provas indicavam caixa dois à exaustão na chapa de Dilma Rousseff e Michel Temer em 2014, com direito à confissão do marqueteiro João Santana e extratos de pagamento na Suíça. Com Dilma fora e Temer iniciando um governo-tampão, o TSE absolveu a dupla. Virou chacota entre procuradores: “Absolvição por excesso de provas”. Em mais uma evidência do momento adverso por que passa a Lava Jato, as duas sessões do Supremo destinadas a decidir a questão do foro dos processos acabou servindo, também, para ataques aos integrantes da operação. Em O Antagonista, o procurador Diogo Castor havia publicado um artigo no qual classificou a discussão como um possível “golpe à Lava Jato” e afirmou que diversas varas federais poderiam acabar fechando as portas. O texto foi citado por advogados e Castor tomou um pito de Dias Toffoli, o presidente da corte, que anunciou uma representação contra o procurador no Conselho Nacional do Ministério Público. “Não é admissível esse tipo de ilação. Críticas ao debate político, ao posicionamento técnico-jurídico, isso faz parte. Agora a calúnia, a difamação, a injúria não serão admitidos”, disse o ministro.

Toffoli ficou especialmente contrariado com a parte do artigo em que Castor lembrou que os tribunais eleitorais têm indicações políticas. Isso foi na quarta-feira. Na quinta, ao abrir a sessão para o reinício do julgamento, o presidente do Supremo anunciou em tom solene a abertura de um inquérito para investigar fake news que “atingem a honorabilidade do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. Mais tarde, ele fez saber que os alvos do inquérito serão Dallagnol e outros procuradores da Lava Jato, bem como auditores da Receita que iniciaram uma investigação sobre as transações financeiras de sua mulher, Roberta Rangel, e do casal Gilmar e Guiomar Mendes, entre outras dezenas de pessoas públicas – Gilmar tem atribuído o trabalho dos fiscais da Receita a um movimento da Lava Jato.

Cumprimentando Toffoli pela iniciativa, o próprio Gilmar Mendes também distribuiu ataques. Houve até xingamentos. “Não quero cometer perjúrio, mas o que se pensou com essa fundação do Deltan Dallagnol? Foi criar um fundo eleitoral? Era para isso? Imagina o poder. Quantos blogues teriam? Quanta coisa teria à disposição?”, disse Gilmar, ao citar a proposta da força-tarefa da Lava Jato de criar uma fundação para gerir parte de uma multa bilionária paga pela Petrobras. “Se eles estudaram em Harvard, não aprenderam nada. São uns cretinos”, completou o ministro, em referência ao currículo de Deltan.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéDodge: ela virou algoz dos procuradores
Enquanto procuradores e ministros trocavam farpas em público, a Lava Jato no Paraná tinha um outro front de batalha, este interno, com a cúpula do Ministério Público Federal. A razão era exatamente o tal fundo mencionado por Gilmar Mendes. A ideia veio a público no começo do mês. Os procuradores da força-tarefa anunciaram um modelo inédito para gerir 2,5 bilhões de reais provenientes de um acordo entre a Petrobras e o governo dos Estados Unidos. Parte da multa que deveria ser paga pela estatal aos americanos, em decorrência de um processo movido no país a partir das revelações do petrolão, foi destinada a ações sociais no Brasil. E a força-tarefa planejou a criação da fundação para gerir os recursos. Houve críticas de todos os lados – o que era normal e esperado. Mas o debate teórico tornou-se um ataque frontal aos procuradores quando a Procuradoria-Geral da República, pelas mãos de Raquel Dodge, acionou o Supremo para inviabilizar a fundação. Diante das críticas, Dallagnol e seus colegas pediram na Justiça a suspensão da criação da entidade. O futuro da bolada bilionária é incerto.

A força-tarefa chegou a marcar uma entrevista coletiva para responder a Dodge. Mas acabou desistindo da ideia, porque era alto o risco de a resposta à chefe do Ministério Público não ser bem recebida. Coube então à Associação Nacional dos Procuradores verbalizar a insatisfação. “Não é normal nem ordinário uma matéria de primeira instância do Ministério Público ser levada ao STF pela procuradora-geral da República. Os procuradores da República repudiam tais precedentes, os quais violam o devido processo legal e atravessam a independência de cada instância”, afirmou a entidade, em nota. Além do embate jurídico, Raquel Dodge havia ficado especialmente insatisfeita por não ter sido consultada sobre a criação da fundação. Considerou um abuso da força-tarefa.

O bombardeio à Lava Jato havia começado dias antes, com o desenrolar de um pedido formulado pelos procuradores de Curitiba para que Dodge apontasse no Supremo a suspeição do ministro Gilmar Mendes para julgar uma parte candente dos processos que a operação vem tocando atualmente. Em fevereiro, o celular do ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira foi apreendido durante a 60ª fase da operação. Ele já era investigado no Supremo por ter foro e, neste ano, passou a ser alvo na primeira instância. O celular do ex-chanceler revelou uma situação estranha: Aloysio ligando para o gabinete de Gilmar para tratar de um processo de seu interesse. Com base nas mensagens, a Lava Jato instou a procuradora-geral a questionar a imparcialidade de Gilmar. Dodge, que contou com o apoio do ministro do Supremo para chegar ao cargo, disse não. Ao se negar a fazer o que os procuradores de Curitiba queriam, ela afirmou que faltavam provas de “amizade íntima” entre Aloysio, o investigado, e Gilmar, o ministro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMoro: é preciso enfrentar os “riscos de retrocesso”
Ao mesmo tempo em que é alvejada pelas bombas disparadas a partir de Brasília, a Lava Jato vem passando por um esfriamento natural, ao menos em seu epicentro, Curitiba. Lá, o ex-presidente Lula já foi condenado duas vezes e está encarcerado há onze meses. Parte dos empresários já foi solta. Alguns, como Marcelo Odebrecht, graças à delação premiada. Seguem detidos ainda próceres do PT e MDB, como o ex-tesoureiro João Vaccari Neto e o ex-deputado Eduardo Cunha. Com a saída de Sergio Moro e o fim da substituição temporária por Gabriela Hardt, a 13ª Vara Federal passou a ser comandada desde o início do mês pelo juiz Luiz Antonio Bonat. Ele herdou nada menos do que cerca de 1.690 procedimentos, de ações penais a inquéritos ainda em andamento. Nada, porém, que possa fazer mais barulho e causar mais surpresa do que os casos dos tempos áureos da operação.

O frenesi daqueles tempos também está longe de se repetir. As operações ostensivas, aquelas que antes ocorriam todas as sextas, foram se tornando mais esparsas. Os números obtidos pela força-tarefa do Paraná ao longo destes cinco anos restam impressionantes. Ao todo, apenas na primeira instância, 2.476 procedimentos de investigação foram instaurados e, em decorrência deles, houve 155 prisões preventivas, 183 delações e a condenação de 155 pessoas a exatos 2.242 anos de prisão. Hoje, o principal flanco de apurações está na Lava Jato do Rio de Janeiro, que implodiu a quadrilha que saqueou o estado sob o comando de Sérgio Cabral e ainda tem fôlego para novas e importantes fases. No Rio, já foram realizadas cerca de 200 prisões em 30 operações.

Nesta quinta, após os ataques frontais de que foi alvo no Supremo, o procurador Dallagnol protestou nas redes sociais. Pouco depois, falando a Crusoé, ele realçou que, a despeito do horizonte turvo, a operação precisa avançar. “Temos linhas de investigação para seguir por muitos anos e acabamos de receber os casos dos políticos que perderam o foro privilegiado, mas decisões do Supremo podem impactar a moldura legal em que a Lava Jato conseguiu se desenvolver”, disse. Ele lembrou que, no próximo dia 10 de abril, a corte pode impor mais uma derrota à investigação, ao julgar se réus condenados em segunda instância, como Lula, devem começar a cumprir pena imediatamente. “Faremos todo o possível dentro da lei para seguir nosso trabalho, mas receio que a janela de combate à corrupção que se abriu há cinco anos tenha começado a se fechar. Está fora da esfera de atribuição de procuradores de primeira instância mudar isso.”

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