DivulgaçãoRonnie Lessa e Élcio Queiroz: acusados pela morte da vereadora Marielle e de seu motorista

Prisões tardias

Uma disputa entre a Polícia Civil e a Polícia Federal no Rio travou uma investigação de dez anos atrás que envolvia os acusados de matar Marielle Franco. Eles poderiam estar presos faz tempo
15.03.19

A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro deram uma primeira resposta aos assassinatos de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes ao prenderem, na terça-feira, 12, dois suspeitos do crime que completaria um ano dois dias depois. Sargento reformado da PM, Ronnie Lessa, de 48 anos, foi denunciado por disparar quatro tiros na cabeça de Marielle e três nas costas de Anderson. Um compadre de Lessa, o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, de 46 anos, dirigiu o carro usado para seguir as vítimas. As prisões são um grande passo. Mas estão bem longe de encerrar o caso, a julgar pelo histórico dos acusados.

Crusoé obteve documentos de outras investigações, iniciadas há dez anos, que mostram o envolvimento de Lessa e Queiroz com segurança de cassinos clandestinos, milicianos e uma “organização que presta serviços de homicídio”. Os dois poderiam até estar na cadeia muito antes do assassinato da vereadora, se os inquéritos não tivessem parado em algum armário empoeirado. A paralisação se deve, em grande medida, aos atropelos entre a Polícia Federal e a Polícia Civil no Rio, um problema que se repetiu no caso Marielle Franco.

Caso se comprove a participação de Lessa e Queiroz, ficará difícil apostar que os dois tenham agido sozinhos. Um segundo inquérito foi aberto para apurar se há mandantes. Responsável pela delegacia que conduziu os trabalhos até aqui, o delegado Giniton Lages disse que Lessa tinha “perfil de ódio a políticos de esquerda”. Lages não explicou que interesses a vereadora contrariou para ser morta. Filiada ao PSOL, eleita em 2016 com a quinta maior votação, Marielle denunciava crimes contra as mulheres, racismo, violência policial e a discriminação nas favelas cariocas, como o Complexo da Maré, onde ela se criou.

Os investigadores anteciparam as prisões em um dia porque houve vazamento sobre a ação, o que pode ser indício da influência de Lessa dentro da polícia. Geralmente, os policiais cumprem mandados a partir das 6 horas da manhã. Os dois suspeitos foram capturados por volta das 4 horas da madrugada, perto de suas casas, quando já tentavam fugir. Lessa mora numa casa, em um condomínio de frente para o mar na Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste do Rio – o mesmo onde o presidente Jair Bolsonaro tem coincidentemente dois imóveis. Élcio Queiroz foi apanhado na esquina da rua em ele vive há vários anos em Engenho de Dentro, na Zona Norte da cidade.

Frederico PiresFrederico PiresO atentado a bomba contra Rogério Andrade, em 2010: pista escancarada
Em meses de investigação, o nome de Lessa apareceu pela primeira vez em outubro passado. Surgiu numa denúncia de que o Cobalt prata, de placas clonadas, usado para seguir Marielle, circulou numa área na Zona Oeste do Rio onde o sargento reformado, segundo a polícia, teria “negócios”. Os investigadores identificaram o celular usado pelo policial na noite do crime, ao analisarem milhares de ligações registradas pelas antenas de transmissão de sinal dos aparelhos móveis que ficam na área onde Marielle morreu, no Centro da cidade. Seria a prova de que estava na mesma região, no horário da execução. A quebra do sigilo telefônico e de e-mails mostrou que Lessa fez pesquisas sobre o endereço da vítima e sobre a metralhadora HK MP5, possivelmente a arma do crime. Por meio de raios infravermelhos, e de uma comparação de fotos, peritos identificaram que o homem no banco de trás do Cobalt usado pelos assassinos tinha uma tatuagem no braço muito semelhante à de Lessa. Em seguida, a polícia rastreou laços de amizades do suspeito e chegou ao ex-policial Élcio Queiroz. A quebra de dados telefônicos também o colocaria na cena do crime.

Logo após ser preso, Lessa chamou atenção ao chegar à delegacia mancando. Ele perdeu a perna esquerda, acima do joelho, num atentado a bomba na madrugada de 2 de outubro de 2009. O sargento trabalhava na Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos. Após o plantão, ele desceu de um carro da polícia no estacionamento do 9º Batalhão da PM, na Zona Norte, onde deixara a sua camionete Hilux blindada. Entrou no veículo e ainda parou em um trailer para comprar água. Ao virar a esquina, a explosão da bomba colocada no lado de fora, a 30 centímetros do banco do motorista, o fez perder o controle do volante. O veículo ainda andou mais 160 metros até bater em um poste. Lessa conseguiu rastejar para fora. O explosivo atado por ímãs estava junto a um celular que, ao receber uma ligação, passou corrente elétrica para o estopim.

Um relatório da Polícia Federal diz que o policial cuidava da segurança de Rogério de Andrade, acusado de comandar a máfia dos caça-níqueis instalados em cassinos clandestinos. O documento da PF e outro da Polícia Civil, aos quais Crusoé teve acesso, relatam que o atentado decorreu da disputa entre milicianos e bicheiros pelas lucrativas máquinas do jogo, que chegam a movimentar 30 milhões de reais por mês. Quatro meses depois, em abril de 2010, Rogério de Andrade sofreu igualmente um atentado a bomba. O explosivo havia sido instalado no assoalho do Corolla blindado e, como no caso de Lessa, foi detonado por celular. Segundo o Esquadrão Antibombas da Polícia Civil do Rio, era um composto caseiro semelhante ao usado por terroristas no metrô de Londres em 2005. Os criminosos queriam matar Andrade, mas quem morreu foi o filho dele, Diogo, de 17 anos, por uma casualidade: ao sair da academia de ginástica, onde estavam, o pai deixou o rapaz dirigir, mesmo sem habilitação, e o artefato estava embaixo do banco do motorista.

A chefia da Polícia Civil determinou que os dois atentados fossem apurados juntos. Ao estabelecer o vínculo entre os casos, a Coordenadoria de Inteligência Policial traçou um cenário aterrador de crimes. Havia uma guerra pela exploração de pontos de caça-níqueis na Zona Oeste. Formadas por policiais e ex-policiais que dominam bairros da região para cobrar taxas em troca de serviços de TV a cabo, internet, gás e transporte alternativo, as milícias logo perceberam o novo filão de ouro, e exigiram dinheiro dos contraventores para permitir a jogatina em seus territórios. Bicheiros e milicianos se acertaram. Mas, para eliminar desafetos na disputa pelos pontos das máquinas de jogo, surgiu uma “organização criminosa prestadora de serviços de homicídios”, como descreve o documento. Ela já contava pelo menos nove mortes na época do atentado contra Lessa. O PM reformado escapou, mas o homem que seria seu sócio numa revendedora de carros morreu duas semanas depois, em 16 de outubro de 2009. Ele teria delatado quatro policiais, que eram seguranças de contraventores, pelo roubo de um fuzil M-16 de um batalhão da PM.

Trecho de um dos relatórios da polícia: “serviços de homicídio”
Alguns meses depois, em fevereiro de 2011, a Polícia Federal deflagrou a operação Guilhotina, que prendeu milicianos e bicheiros. Élcio Queiroz, o suspeito de dirigir o veículo usado na morte de Marielle, foi um dos presos, acusado de fazer segurança para um cassino clandestino. A Polícia Federal pediu empenho da Polícia Civil para elucidar os atentados a bomba. Mas houve um desentendimento entre as duas corporações no meio do caminho.

O delegado que chefiava a Polícia Civil na época acabou demitido, após ser acusado por investigadores da PF de vazar informações, o que até hoje não se comprovou. A queda da cúpula da Polícia Civil pôs a perder a parceria com os federais. Élcio Queiroz acabou expulso da PM. Os inquéritos sobre os atentados ficaram parados. O último andamento no Ministério Público foi em junho de 2013, segundo consta do sistema de consulta de processos da instituição. Não fosse o bate-cabeça institucional, os dois homens que agora estão presos sob a acusação de matar Marielle Franco e Anderson Gomes poderiam ter sido colhidos pela Justiça muitos anos antes. Se a investigação tivesse avançado a contento, a participação de ambos no esquema de que participavam poderia ter sido punida com o rigor da lei. Não foi. É mais um sinal, entre muitos, da ineficiência estatal que acaba por facilitar – e até incentivar – as ações do crime organizado.

Agora, na elucidação do crime contra a vereadora carioca e seu motorista, as duas polícias voltaram a bater cabeça. A pedido da Procuradoria da República, a PF investiga se policiais civis e agentes federais tentaram forçar um miliciano a confessar o duplo homicídio. Também houve disputa para ver quem ficaria à frente do inquérito. Enquanto as forças de segurança se dividem, os milicianos, contraventores, traficantes e policiais corruptos se associam em um estado paralelo. E isso, como mostra o histórico de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, vem de longe.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO