Agência CâmaraEm novo ambiente, com toma-lá-da-cá e tentativas de liquidar a Lava Jato, o sistema político se acomoda e volta ao "velho normal"

Guerra fria entre os poderes

Inquérito de Dias Toffoli, CPI da Lava Toga, insatisfação dos chefes do Congresso com o Planalto, fúria nas redes sociais: o temor de uma onda autoritária leva os poderosos de Brasília a se armar. O risco real até aqui é que tudo acabe servindo para que nada mude
22.03.19

Existem diferentes tipos de táticas para superar o inimigo. As mais óbvias envolvem ataques frontais e o uso da força. Outras medidas são mais sutis e podem transformar a disputa numa espécie de guerra fria. Em Brasília, por vezes o confronto é explícito. Mas quando as partes envolvidas são poderes da República que, em conflito, têm o condão de provocar um desarranjo capaz de interditar o país, o jogo é muito mais delicado. Nas últimas semanas, vieram à luz lances da cena política nacional que, somados à atmosfera reinante nos bastidores da capital, indicam estar em curso um conflito velado entre Executivo, Legislativo e Judiciário. O pano de fundo é o temor de que o estilo agressivo da ala mais radical do governo, aliado à fúria de militantes na internet e à ação de parlamentares da chamada nova política, possam resultar em um inédito enfrentamento. As partes que se veem como possíveis alvos se armam.

Do Congresso Nacional emergem duas forças importantes nesse tabuleiro. Uma delas está nos deputados e senadores recém-chegados a Brasília e eleitos com o discurso da mudança. É desse grupo, por exemplo, que surgem iniciativas como a abertura de uma CPI para investigar eventuais desvios de ministros de tribunais superiores, incluídos aí os do Supremo Tribunal Federal. A chamada CPI da Lava Toga, iniciativa do novato senador Alessandro Vieira, já tem o número de assinaturas necessárias para ser instalada, mas em meio ao clima de acirramento vem sendo mantida em banho-maria pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre.

A cautela de Alcolumbre, porém, não tem sido suficiente para serenar os ânimos. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Supremo, uma parte dos onze ministros da corte têm observado o movimento como uma agressão. Alguns enxergam até um apoio implícito do Planalto à ideia de abrir a investigação parlamentar. Contribuem para o clima pesado outras iniciativas dos novos parlamentares, como uma proposta de emenda constitucional apresentada ao Senado nesta semana pelo também novato Plínio Valério, que prevê mandato fixo de oito anos para ministros do Supremo.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO ministro Gilmar: ele acredita haver uma conspiração contra o Judiciário
Ainda no Congresso, há uma leva de parlamentares que, assim como a parcela de ministros do Supremo que se vê agredida, se coloca do lado oposto da trincheira dos colegas que querem fazer uma devassa no Judiciário. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é o personagem mais destacado entre os que veem excessos e enxergam, tanto nos parlamentares iniciantes quanto na ala mais ideológica do governo de Jair Bolsonaro, movimentos capazes de deflagrar uma crise institucional. Nesta quinta-feira, 21, Maia almoçou com o ministro Gilmar Mendes. Os dois têm conversado regularmente e trocado impressões sobre o contexto. Outro interlocutor frequente do presidente da Câmara é o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo. A avaliação, comum nessas conversas, é que tanto os políticos tradicionais do Congresso quanto uma parte do Judiciário estariam sob ataque da chamada “nova política” e de seus defensores – e que por trás desses ataques haveria o dedo do Palácio do Planalto.

A situação de Rodrigo Maia é especialmente curiosa. Ao mesmo tempo em que é tratado como o fiador no Congresso da proposta de reforma da Previdência, a pedra de toque capaz de definir o sucesso ou o fracasso do governo, ele se vê sob fogo cerrado. A interlocutores, Maia tem dito que há sinais explícitos de que setores do Planalto o atacam. Nesta semana, como mostrou o Diário de Crusoé, ele se queixou ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, de ataques que sofrera nas redes sociais no mesmo dia em que Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente, montou acampamento no palácio. A Onyx, Maia atribuiu as ofensas a Carlos, que ele vê como líder de um exército de militantes bolsonaristas que usam o front das redes sociais para agredir adversários. O presidente da Câmara também tem recorrido com frequência ao ministro da Economia, Paulo Guedes, de quem é muito próximo, para reclamar do que considera serem agressões patrocinadas pelo governo contra ele próprio e o Congresso. Por mais de uma vez, alertou que, se os aliados de Jair Bolsonaro seguirem na toada de “criminalizar a política” e os parlamentares que não são oficialmente aliados ao governo, será muito difícil aprovar a reforma.

Rodrigo Maia foi mais além. Em conversa recente, fez a seguinte avaliação: se hoje — quando o governo ainda está dependente da aprovação da reforma — os bolsonaristas atacam, imagine amanhã, se a proposta for aprovada, a economia decolar e o Planalto passar a nadar em dinheiro: aí, sim, é que a ofensiva à política tradicional será ainda mais intensa, com risco até para a democracia. Em suma, há um medo difuso no ar. Não foi por outra razão que Maia montou uma espécie de gabinete de crise extraoficial com Dias Toffoli e Gilmar, dois dos ministros do Supremo que também se sentem alvos dessa mesma guerra — e que, a seu modo, têm igualmente estocado os seus mísseis.

É justamente esse contexto que explica a iniciativa de Toffoli, anunciada no último dia 14, de abrir um inquérito sigiloso no próprio STF para investigar ameaças a integrantes da corte e a seus familiares. A abertura da investigação, a partir de uma brecha no regimento interno da corte, sofreu críticas por algumas razões. A primeira é que o Judiciário não poderia ser, ao mesmo tempo, investigador e julgador — o comum é juízes requisitarem a abertura de investigação à polícia ou ao Ministério Público. No caso concreto, conforme anunciou Toffoli, a investigação será feita pelo próprio tribunal. O ministro designou o colega Alexandre de Moraes para tocar o procedimento – o que também foi criticado, inclusive por outros ministros, já que a distribuição não passou pelo sistema de sorteio do tribunal. O Ministério Público não foi acionado para acompanhar a apuração. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, questionou a iniciativa formalmente.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRaquel Dodge questionou a iniciativa de Toffoli
O caráter inédito do inquérito aberto por Toffoli tem relação direta com o ambiente tóxico que domina Brasília. É a guerra fria, de novo, dando sinais. Se ao instaurar a investigação o ministro não explicitou quais seriam os alvos, logo depois se descobriu que o primeiro lance seria avançar sobre autores de ameaças de morte e de ataques à reputação de integrantes da corte por meio das redes sociais. Na quinta-feira, 21, por ordem do Supremo, a polícia cumpriu as primeiras medidas da investigação, com buscas e apreensões em São Paulo e em Alagoas. Na capital alagoana, Maceió, o alvo foi um advogado que teria ameaçado dar um tiro nas costas de Dias Toffoli. Dois dias antes, Alexandre de Moraes, o relator do caso, fez saber que o inquérito pretende mapear “essa rede de robôs, WhatsApp e Twitter, essa rede que alguém paga, alguém financia, por algum motivo”. A declaração de Moraes dá uma pista do objetivo da investigação. No Supremo, especialmente entre os ministros que se veem como alvos, a impressão que se tem é que há uma mão a incentivar os ataques à corte. Há quem enxergue evidências de que as redes que agitam a internet contra a turma da toga seriam ligadas a personagens do círculo de Jair Bolsonaro e do governo. No fundo, a suspeita é similar à de Rodrigo Maia. Identificar quem paga e financia, como disse Alexandre Moraes, seria uma forma de contra-atacar no momento oportuno, caso a investigação vá adiante.

Há, em meio à guerra fria, um elemento adicional. Tanto a turma do Congresso que se julga na mira quanto os ministros alvos dos ataques veem um motor na operação Lava Jato. Para os que enxergam uma grande conspiração em curso, a operação estaria alinhada aos mesmos objetivos das tais redes de detratores, interessada em fazer uma limpa na política e nos tribunais. Gilmar Mendes, por exemplo, acredita que veio da Lava Jato a ordem para que auditores da Receita Federal passassem a investigar as movimentações financeiras dele próprio e de seus familiares. A mulher de Dias Toffoli, a advogada Roberta Rangel, também foi incluída entre os alvos dos auditores. Não por coincidência, a iniciativa da Receita que mira os dois ministros estará entre os alvos do tal inquérito. Rodrigo Maia faz mais uma conexão: a interlocutores, disse nos últimos dias que, com o pacote anticrime, o ministro Sergio Moro está interessado na tal “criminalização da política”, em conluio com a Lava Jato, da qual foi protagonista como juiz.

Como a história ensina, guerra fria é um tipo de embate que tem por objetivo simplesmente fazer o oponente recuar. Excessos de parte a parte, evidentemente, são condenáveis. Ameaças físicas, então, devem ser reprimidas exemplarmente. De tudo o que se observa até aqui, porém, o risco real que o país corre é o de que esses movimentos, no fim, acabem servindo para manter tudo como sempre esteve. Se a cúpula do Judiciário reage no momento em que se vê sob cobrança, e se essa reação surte efeito, a ideia de investigar eventuais desvios da toga cai por terra e nada muda. Quando os políticos tradicionais se queixam de ataques e condicionam seu empenho na aprovação das reformas, por exemplo, ao estabelecimento da pax plena, corre-se o risco de voltar ao toma lá dá cá. Isso, claro, não tira a responsabilidade de quem está do outro lado, atirando: se os autores dos ataques desferem ataques à base de verborragia e ódio, ignorando os marcos da lei, dão azo a um rebuliço institucional desnecessário e, no limite, perigoso.

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