Guerra fria entre os poderes
Existem diferentes tipos de táticas para superar o inimigo. As mais óbvias envolvem ataques frontais e o uso da força. Outras medidas são mais sutis e podem transformar a disputa numa espécie de guerra fria. Em Brasília, por vezes o confronto é explícito. Mas quando as partes envolvidas são poderes da República que, em conflito, têm o condão de provocar um desarranjo capaz de interditar o país, o jogo é muito mais delicado. Nas últimas semanas, vieram à luz lances da cena política nacional que, somados à atmosfera reinante nos bastidores da capital, indicam estar em curso um conflito velado entre Executivo, Legislativo e Judiciário. O pano de fundo é o temor de que o estilo agressivo da ala mais radical do governo, aliado à fúria de militantes na internet e à ação de parlamentares da chamada nova política, possam resultar em um inédito enfrentamento. As partes que se veem como possíveis alvos se armam.
Do Congresso Nacional emergem duas forças importantes nesse tabuleiro. Uma delas está nos deputados e senadores recém-chegados a Brasília e eleitos com o discurso da mudança. É desse grupo, por exemplo, que surgem iniciativas como a abertura de uma CPI para investigar eventuais desvios de ministros de tribunais superiores, incluídos aí os do Supremo Tribunal Federal. A chamada CPI da Lava Toga, iniciativa do novato senador Alessandro Vieira, já tem o número de assinaturas necessárias para ser instalada, mas em meio ao clima de acirramento vem sendo mantida em banho-maria pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre.
A cautela de Alcolumbre, porém, não tem sido suficiente para serenar os ânimos. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Supremo, uma parte dos onze ministros da corte têm observado o movimento como uma agressão. Alguns enxergam até um apoio implícito do Planalto à ideia de abrir a investigação parlamentar. Contribuem para o clima pesado outras iniciativas dos novos parlamentares, como uma proposta de emenda constitucional apresentada ao Senado nesta semana pelo também novato Plínio Valério, que prevê mandato fixo de oito anos para ministros do Supremo.
A situação de Rodrigo Maia é especialmente curiosa. Ao mesmo tempo em que é tratado como o fiador no Congresso da proposta de reforma da Previdência, a pedra de toque capaz de definir o sucesso ou o fracasso do governo, ele se vê sob fogo cerrado. A interlocutores, Maia tem dito que há sinais explícitos de que setores do Planalto o atacam. Nesta semana, como mostrou o Diário de Crusoé, ele se queixou ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, de ataques que sofrera nas redes sociais no mesmo dia em que Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente, montou acampamento no palácio. A Onyx, Maia atribuiu as ofensas a Carlos, que ele vê como líder de um exército de militantes bolsonaristas que usam o front das redes sociais para agredir adversários. O presidente da Câmara também tem recorrido com frequência ao ministro da Economia, Paulo Guedes, de quem é muito próximo, para reclamar do que considera serem agressões patrocinadas pelo governo contra ele próprio e o Congresso. Por mais de uma vez, alertou que, se os aliados de Jair Bolsonaro seguirem na toada de “criminalizar a política” e os parlamentares que não são oficialmente aliados ao governo, será muito difícil aprovar a reforma.
Rodrigo Maia foi mais além. Em conversa recente, fez a seguinte avaliação: se hoje — quando o governo ainda está dependente da aprovação da reforma — os bolsonaristas atacam, imagine amanhã, se a proposta for aprovada, a economia decolar e o Planalto passar a nadar em dinheiro: aí, sim, é que a ofensiva à política tradicional será ainda mais intensa, com risco até para a democracia. Em suma, há um medo difuso no ar. Não foi por outra razão que Maia montou uma espécie de gabinete de crise extraoficial com Dias Toffoli e Gilmar, dois dos ministros do Supremo que também se sentem alvos dessa mesma guerra — e que, a seu modo, têm igualmente estocado os seus mísseis.
É justamente esse contexto que explica a iniciativa de Toffoli, anunciada no último dia 14, de abrir um inquérito sigiloso no próprio STF para investigar ameaças a integrantes da corte e a seus familiares. A abertura da investigação, a partir de uma brecha no regimento interno da corte, sofreu críticas por algumas razões. A primeira é que o Judiciário não poderia ser, ao mesmo tempo, investigador e julgador — o comum é juízes requisitarem a abertura de investigação à polícia ou ao Ministério Público. No caso concreto, conforme anunciou Toffoli, a investigação será feita pelo próprio tribunal. O ministro designou o colega Alexandre de Moraes para tocar o procedimento – o que também foi criticado, inclusive por outros ministros, já que a distribuição não passou pelo sistema de sorteio do tribunal. O Ministério Público não foi acionado para acompanhar a apuração. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, questionou a iniciativa formalmente.
Há, em meio à guerra fria, um elemento adicional. Tanto a turma do Congresso que se julga na mira quanto os ministros alvos dos ataques veem um motor na operação Lava Jato. Para os que enxergam uma grande conspiração em curso, a operação estaria alinhada aos mesmos objetivos das tais redes de detratores, interessada em fazer uma limpa na política e nos tribunais. Gilmar Mendes, por exemplo, acredita que veio da Lava Jato a ordem para que auditores da Receita Federal passassem a investigar as movimentações financeiras dele próprio e de seus familiares. A mulher de Dias Toffoli, a advogada Roberta Rangel, também foi incluída entre os alvos dos auditores. Não por coincidência, a iniciativa da Receita que mira os dois ministros estará entre os alvos do tal inquérito. Rodrigo Maia faz mais uma conexão: a interlocutores, disse nos últimos dias que, com o pacote anticrime, o ministro Sergio Moro está interessado na tal “criminalização da política”, em conluio com a Lava Jato, da qual foi protagonista como juiz.
Como a história ensina, guerra fria é um tipo de embate que tem por objetivo simplesmente fazer o oponente recuar. Excessos de parte a parte, evidentemente, são condenáveis. Ameaças físicas, então, devem ser reprimidas exemplarmente. De tudo o que se observa até aqui, porém, o risco real que o país corre é o de que esses movimentos, no fim, acabem servindo para manter tudo como sempre esteve. Se a cúpula do Judiciário reage no momento em que se vê sob cobrança, e se essa reação surte efeito, a ideia de investigar eventuais desvios da toga cai por terra e nada muda. Quando os políticos tradicionais se queixam de ataques e condicionam seu empenho na aprovação das reformas, por exemplo, ao estabelecimento da pax plena, corre-se o risco de voltar ao toma lá dá cá. Isso, claro, não tira a responsabilidade de quem está do outro lado, atirando: se os autores dos ataques desferem ataques à base de verborragia e ódio, ignorando os marcos da lei, dão azo a um rebuliço institucional desnecessário e, no limite, perigoso.
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