O modelo chileno

Ao abrir a economia e adotar um sistema de aposentadorias em que cada um poupa para si próprio, o Chile apontou a direção para o resto do mundo, ainda que pequenos ajustes sejam necessários
22.03.19

Escolhido para ser o segundo destino internacional do presidente Jair Bolsonaro, o Chile é a grande inspiração do atual governo na América Latina. O PIB do país cresceu 4% no ano passado, quatro vezes mais do que o do Brasil. A renda per capita é 77% maior que a brasileira. Na região, é um dos países que mais reduziram a pobreza nos últimos anos. O índice está em 10%, metade do brasileiro. Mas uma das características que mais tem atraído a atenção do  governo Bolsonaro é o sistema previdenciário do país. No final do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro, em visita a Santiago, elogiou o modelo. “Aqui no Chile vocês hoje assistem aos frutos de sua reforma das aposentadorias. A economia tem muito a ver com o que aconteceu nos anos 1980”, disse ele ao jornal chileno La Tercera.

O atual sistema chileno de aposentadorias foi criado durante a ditadura do general Augusto Pinochet, em 1981. Nessa época, o ministro da Economia Paulo Guedes dava aulas na Universidade do Chile e acompanhou tudo de perto. O conceito introduzido foi o de capitalização, em que cada pessoa poupa para si própria, em contas individuais. Foi o primeiro país no mundo a fazer isso. É um conceito distinto do sistema de repartição, que impera no Brasil, em que os cidadãos fazem aportes para um fundo público e o dinheiro é usado para custear as aposentadorias correntes.

Marcos Correa/ReutersMarcos Correa/ReutersBolsonaro recebe o presidente do Chile, Sebastian Piñera, em sua posse em Brasília, no dia 1 de janeiro
No Chile, a mudança para a capitalização não foi obrigatória, mas ganhou rapidamente a simpatia da população. Isso porque a fatia que era recolhida pelas empresas para o pagamento da previdência deixou de ser arrecadada. Com isso, cada chileno passou a ser responsável por decidir quanto de seu salário seria destinado para a sua aposentadoria. No mínimo, todos tiveram de destinar 10% do salário mensal para a sua própria previdência e as empresas deixaram de contribuir. Liberalismo puro. Em paralelo, o país abriu a economia. O governo liberalizou os preços, privatizou estatais e assinou tratados de livre comércio. O país foi um caso raro de ditadura militar em que o tamanho do estado, em vez de aumentar, diminuiu.

De início, o modelo de capitalização foi um sucesso. As empresas autorizadas a gerir as aposentadorias, as Administradoras de Fundos Previdenciários (AFPs), buscaram as melhores opções para investir o dinheiro de seus clientes. “Como o mercado de ações era restrito, deu-se uma valorização dos ativos. A alta rentabilidade dos papeis causou uma impressão muito boa nos primeiros anos e inflou a alma nacional”, diz Kaizô Iwakami Beltrão, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. O dinheiro dos poupadores, assim, foi usado para turbinar a economia nacional e o país passou a ter mais recursos para investimentos.

O sistema de capitalização ainda trouxe outro benefício evidente. No Chile, não existe o risco de a Previdência desequilibrar as contas públicas. Esse mal é restrito aos países cujos sistemas são baseados na repartição. Com a população idosa vivendo mais anos e a quantidade de jovens diminuindo, muitas nações hoje estão tendo problemas em administrar rombos na previdência. Há poucos jovens trabalhando para pagar muitas e gordas aposentadorias e a conta, no final, não fecha.

O obstáculo que o Chile enfrenta é outro. Lá, são comuns as críticas de que os valores pagos aos idosos são baixos. Hoje, quase 80% dos aposentados recebe menos do que um salário mínimo, o equivalente a 1.700 reais (no Brasil, vale lembrar, o salário mínimo é de 998 reais). Uma pesquisa de opinião divulgada em março pelo instituto Ipsos mostrou que a principal preocupação dos chilenos em relação à velhice é com o valor das pensões.

Essa insatisfação acontece porque, nas últimas quatro décadas, diversos fatores acabaram minando as boas intenções do plano inicial. A competição entre as AFPs diminuiu com o tempo por causa de fusões e falências. Hoje, restam apenas seis. A falta de concorrência permitiu que passassem a ser cobradas taxas elevadas de administração. Além disso, as aplicações que elas fizeram com o dinheiro de seus clientes muitas vezes renderam pouco ou, até mesmo, registraram taxas negativas. Outro fator é que muitas pessoas não contribuíram para seus planos por longos períodos, o que está relacionado com a dificuldade de encontrar trabalhos formais. “Quem poupou todos os meses durante vinte anos termina recebendo valores mensais razoáveis, mas eles são uma pequena parte da população”, diz o economista Ricardo González, do Centro de Estudos Públicos do Chile, em Santiago.

Em diversos momentos, os chilenos já foram para as ruas protestar contra o sistema. As últimas manifestações massivas ocorreram em outubro do ano passado. Michelle Bachelet, que governou o país até março de 2018, criou um sistema de aposentadorias solidárias, com verbas estatais para atender a população mais carente. Seu sucessor, o presidente Sebastián Piñera, propôs uma reforma em que a porcentagem obrigatória para poupar subiria de 10% para 14% ou 18%. O valor extra não seria depositado pelo trabalhador, mas pelo seu empregador. A proposta deve passar o ano sendo discutida no Congresso.

UN Photo / Jean-Marc FerrUN Photo / Jean-Marc FerrEm 2016, a então presidente do Chile, Michelle Bachelet, criou um sistema de aposentadorias para os mais carentes, com recursos do estado
Ainda que ajustes sejam necessários, ninguém no Chile fala em mudar o atual sistema de capitalização para o de repartição. “Mesmo os mais céticos em relação à capitalização sabem que o modelo antigo, em que os contribuintes arcam com as aposentadorias correntes, não se sustenta com o envelhecimento da população”, diz o economista Alexandre Chaia, professor de finanças do Insper, em São Paulo. “Cedo ou tarde, os países precisarão migrar para a capitalização.”

A tentativa da maioria dos países tem sido a de criar sistemas híbridos, até porque a mudança total seria muito custosa. A proposta de capitalização de Paulo Guedes ainda é vaga. “Uma transição total no Brasil é 100% inviável. Não existe possibilidade alguma de isso acontecer porque não há a menor condição fiscal”, diz o economista Fabio Giambiagi, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Se os brasileiros que ainda vão entrar no mercado de trabalho deixarem de contribuir para pagar as aposentadorias dos demais, mais velhos, o governo teria de cobrir a diferença. A despesa aumentaria ainda mais o déficit nominal, a diferença entre o que o governo gasta e arrecada, que hoje está em torno de 7% do PIB.

Para Giambiagi, o modelo de capitalização deveria valer apenas para aqueles brasileiros que querem contribuir para receber acima do teto do INSS, que está para ser redefinido. “Isso já existe. Todo mundo pode fazer uma aposentadoria complementar”, diz ele. Desde 2013, funcionários públicos já podem optar por aportar uma quantia a mais para uma conta individual, a fim de receber acima do teto no futuro. Essa quantia, evidentemente, não entra no regime de repartição.

Dizer que o modelo chileno deu certo ou deu errado é simplista. O que não resta dúvida é de que os sistemas puramente baseados na repartição não são mais sustentáveis. A solução certamente não será a implementação da capitalização pura, mas provavelmente passa por ela.

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