Adriano Machado/CrusoéJair Bolsonaro: o Planalto cria as próprias crises

Governo contra governo

Como as crises deflagradas pelo próprio Planalto e por seus aliados podem comprometer a presidência de Jair Bolsonaro
29.03.19

Havia mais de duas horas que o ministro da Economia, Paulo Guedes, estava sentado diante dos integrantes da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado tentando convencê-los da importância da aprovação da reforma da Previdência quando, a pouco mais de mil quilômetros de Brasília, nos estúdios da Band em São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro roubou-lhe a cena no noticiário político-econômico. Era a tarde de quarta-feira, 27. Ao vivo, o presidente discorreu sobre temas bem diferentes da pauta que Guedes desfiava no Congresso — e que é apontada como caminho primordial para o governo dar certo. Bolsonaro não só voltou a atacar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, peça-chave nas negociações para aprovar a reforma, como provocou deputados e senadores em geral ao dizer que, em 1964, o Congresso “foi fechado porque não produzia leis”. Era mais um de muitos sinais trocados emitidos nestes três meses desde que o ex-capitão do Exército sentou na cadeira de presidente da República. Os principais atores do governo – incluindo o próprio Bolsonaro – falam e agem como querem e, muitas vezes, entram em rota de colisão. O mesmo tem acontecido dentro do partido do presidente, o PSL. Falta alinhamento. E o que é prioridade, quase sempre, acaba se perdendo em meio a pequenas e grandes confusões que o próprio Palácio do Planalto e o seu entorno deflagram. É o governo jogando contra o governo, como se verá a seguir.

***

Guedes fala sozinho

Paulo Guedes definiu com precisão a situação. “O opositor dele (o governo) é ele mesmo. Então algo está falhando do nosso lado”, disse o ministro aos senadores na tarde de quarta. Na véspera, Guedes precisou cancelar sua ida à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara para defender a reforma porque se tramava uma longa sessão de ataques a ele e à proposta. Não havia nem sequer a garantia de que, lá, deputados fiéis ao governo o defenderiam. Além de ainda não ter montado uma base aliada no Congresso, o próprio presidente não demonstra ser um entusiasta da reforma. O ânimo presidencial acaba contaminando quem deveria estar defendendo a proposta com vigor. Nesta semana, por exemplo, o líder do partido de Bolsonaro criticou o texto. São muitas as manifestações do presidente que se mostraram em desacordo com o discurso de seu ministro da Economia. Jair Bolsonaro já disse, por exemplo, que reforma boa “é a possível”. Depois, com a proposta já na Câmara dos Deputados, defendeu reduzir ainda mais a idade mínima para que mulheres se aposentem — dos 62 anos, conforme consta do texto, para 60 anos. A postura tem levado muita gente no meio político, e também no mercado, a duvidar do real interesse do presidente na aprovação da reforma.

Para piorar, em conversas reservadas, Bolsonaro admite desidratar a proposta que ele mesmo foi levar ao Congresso. Na manhã de quarta-feira, em uma reunião no Palácio do Planalto, o presidente afirmou que Paulo Guedes só colocou no texto a redução do Benefício de Prestação Continuada e as mudanças no sistema de aposentadoria rural para ter o que retirar na negociação com os parlamentares. Era um sinal claro de que o governo já abriu mão de aprovar a íntegra do texto que enviou ao Parlamento. O resultado: fiador do governo com o mercado, Paulo Guedes, está cada vez mais isolado na operação política para aprovar a reforma. E dá sinais de que pode pedir o boné mais adiante. Em um encontro com parlamentares na tarde de terça, o ministro explodiu. “Eu sou do mercado financeiro. Se for preciso, vou embora. Não preciso ficar aqui”, disse, segundo relatos dos presentes. Afirmou também que “apaga incêndio em um dia e aparece outro no dia seguinte”, e que está “levando tudo nas costas”. Foi justamente naquele dia que ele decidiu cancelar a ida à Câmara. No dia seguinte, no Senado, Guedes voltou a tangenciar a possibilidade de deixar o governo. “Não tenho apego ao cargo”, disse. A Bolsa de Valores atingiu seu pior índice desde 1º de outubro e o dólar subiu. Depois, ele tentou se corrigir. Disse que não deixará Brasília na primeira derrota. Mas o clima segue pesado.

Um partido em transe

Na terça-feira à noite, o governo sofreria sua maior derrota no Congresso desde a posse de Jair Bolsonaro. Em uma votação relâmpago, foi aprovada em dois turnos na Câmara uma proposta que altera o texto constitucional e engessa mais ainda o orçamento, uma vez que obriga o governo a pagar as emendas das bancadas dos estados. Na prática, ela aumenta em 3,5 bilhões de reais os gastos do governo com emendas e restringe a 3% do orçamento (algo próximo a 45 bilhões de reais) a margem de manobra para cortes e remanejamento de verbas. A proposta foi idealizada em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, para diminuir o poder da já fragilizada presidente. Acabou aprovada neste início do governo Bolsonaro, depois de ser tirada às pressas da gaveta em meio à troca de farpas entre o presidente da República e o presidente da Câmara dos Deputados. Foram 448 votos a 3 no primeiro turno e, no segundo, 453 a 6. O partido do presidente, que tem 55 deputados (a maior bancada, ao lado do PT), votou a favor da proposta. Para evitar que a derrota parecesse o que era, uma derrota, houve até comemoração entre os correligionários de Bolsonaro. A encenação não durou muito. No dia seguinte, o óbvio ficou evidente: governo nenhum gosta de perder a capacidade de manejar o orçamento. Foi, sim, uma derrota acachapante. Coube ao presidente do diretório paulista do PSL, senador Major Olímpio, traçar o diagnóstico do caos que tomara conta do partido na votação: “Qual foi a estratégia de até mesmo o PSL fazer a indicação e votar com esta PEC? Eu não entendi a lógica ainda. Às vezes eu fico confuso o que é situação, oposição. Não sei mais”.

A votação foi apenas mais um episódio em que o partido de Bolsonaro jogou contra o governo. As condições para que isso se repita estão dadas já há algum tempo. É evidente a falta de sintonia entre os três responsáveis pela articulação política do partido. Joice Hasselmann, líder do governo no Congresso, Major Victor Hugo, líder do governo na Câmara, e Delegado Waldir, líder do partido na Câmara, se odeiam. E já deram mostras públicas de seu descompasso. Waldir, por exemplo, disse haver privilégios na proposta governista para reformar o sistema previdenciário dos militares. Joice o atropelou e anunciou que a bancada votaria em peso a favor das mudanças. Victor Hugo fecha acordos sem consultar os dois (e nem o governo). Mas não é só isso. Nas últimas semanas, o PSL reforçou o coro dos partidos do chamado Centrão, aquela velha massa fisiológica capitaneada pelo notório PP, por cargos na administração federal. Dias atrás, Crusoé presenciou uma conversa de pé de ouvido na área em que é servido o café para os deputados: Bia Kicis e Eduardo Girão, ambos do PSL, cobravam Hasselmann por cargos. A bagunça inspira os outros partidos na estratégia de fustigar o Planalto. Afinal, se o partido do presidente joga contra, por que os outros devem jogar a favor?

A guerra santa de Olavo contra os militares

Foi o escritor Olavo de Carvalho quem começou. Depois de influir na escolha de ministros como Ricardo Vélez Rodríguez, da Educação, e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e de inspirar outros tantos bolsonaristas no governo e nas redes sociais, ele percebeu que os militares trabalhavam para limitar o raio de atuação dos seus pupilos. A começar pelo próprio Ernesto Araújo. Quando o chanceler, impulsionado por Olavo, ensaiou defender uma ação mais ostensiva para derrubar o ditador venezuelano Nicolás Maduro, coube aos militares, avessos à ideia de um conflito que sobraria para eles, contê-lo. Ante essa e outras atitudes da turma da farda que ocupa postos importantes no atual governo, Olavo estrilou. E passou a atacar os militares nas redes. O primeiro alvo foi o vice-presidente, general Hamilton Mourão. “Por que, durante a campanha, o general Mourão jamais mostrou sua verdadeira face de desarmamentista, de adepto do abortismo, de protetor de comunistas, de inimigo visceral do bolsonarismo, de amante da mídia inimiga? Ele fingiu-se de companheiro fiel até chegar ao cargo”, disparou. Dias depois, aumentou a carga: “Mourão é um idiota”. No início, o vice ignorou. Ante o recrudescimento dos ataques, começou a reagir.

Nos dias que antecederam a viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos, Olavo ampliou o alcance de seus petardos. O alvo passou a ser a caserna, em geral. Ele disse que os militares do governo têm “mentalidade golpista”, “são um bando de cagões” e que, se nada mudar, o governo acaba em seis meses. General da reserva, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, respondeu. Chamou Olavo de Carvalho de “desequilibrado”. Do estado americano da Virgínia, onde vive, o escritor partiu para a tréplica: “Meus dois livros (um com 23 aninhos de idade) continuam na lista de best-sellers da [editora] Record. Ficarão lá até o Santos Cruz desaparecer da memória nacional”. Nos bastidores, os militares continuaram a trabalhar contra chamados “olavetes”. Nesta semana, Ricardo Vélez, o ministro da Educação, voltou a balançar no cargo. Sua queda, ao que tudo indica, é questão de dias. Em meio à disputa entre Olavo, tido como guru do bolsonarismo, e os militares que auxiliam o governo, chama atenção a postura do próprio presidente. Em Washington, quando o professor já estava na posição de franco-atirador contra os generais do governo, Bolsonaro posou para fotos ao lado dele. “Se eu sou presidente e alguém ataca o meu vice, eu não deveria nem me encontrar com essa pessoa”, diz um observador privilegiado da cena. Não foi o que o presidente fez. Mais um sinal que mais confunde do que esclarece.

O levante do assessor

O quadro é estranho a ponto de um assessor presidencial, em uma manifestação pública, admitir que o governo está cindido em alas. Foi o que fez o jovem Filipe Martins, auxiliar do presidente para assuntos internacionais e um dos mais destacados discípulos de Olavo de Carvalho com assento no Planalto. Queixando-se do que enxergava ser uma ofensiva da velha política contra o governo, Filipe foi ao Twitter e, em uma sequência de nove mensagens, registrou a existência de uma “ala anti-establishment” no governo. O que pareceu uma contradição em termos, porque governos naturalmente são parte importante do establishment, independentemente de quem os integra, acabou se transformando numa admissão da existência de alas dentro do time do presidente que nem sempre jogam alinhadas entre si.

“Há uma flagrante tentativa de isolar a ala anti-establishment do governo Bolsonaro, lançando sobre ela uma série de adjetivações maliciosas e acusações infundadas que não cumprem outra função senão a de torná-la tóxica e mal-vista (sic) pelas outras alas que compõem o governo”, escreveu o assessor do presidente. Na sequência de tuítes, ele deixava claro que, entre as “outras alas”, supostamente expostas à influência da velha política, estariam a equipe econômica e o ministério da Justiça de Sergio Moro. E, em uma iniciativa ousada ante a sensível relação entre o Planalto e o Congresso, conclamava “as diferentes alas do governo” a sair a campo em busca de apoio popular para aprovar à força as propostas que os parlamentares, aparentemente, não estariam dispostos a aprovar de bom grado. Em suma, era um manifesto em favor de um levante. Algo inédito na história recente. Não se sabe, até hoje, se a posição do assessor foi previamente avalizada pelo gabinete presidencial. Certo é que houve, dentro do governo, quem se assustasse com a iniciativa – e com o tom.

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Até agora o presidente não pareceu se importar com as consequências das crises originadas em seu próprio governo. Ainda há dúvidas, até mesmo entre seus apoiadores, se as seguidas confusões são uma tática minimamente planejada ou se são, simplesmente, produto da desorganização. As cabeçadas com o Congresso são exemplo de um vaivém que torna imprevisíveis os próximos lances. Há um mês, quando as insatisfações começaram a tomar corpo entre os parlamentares, Bolsonaro se reuniu com lideranças da Câmara e prometeu diálogo. Não cumpriu. Nos últimos dias, a situação degringolou, com as trocas de farpas entre ele e Rodrigo Maia – algo que desagradou enormemente Paulo Guedes, que vê no presidente da Câmara um aliado imprescindível para aprovar suas propostas para a economia (leia a entrevista). A semana terminou com acenos de parte a parte. Ao que tudo indica, foi selado um armistício. Mas os protagonistas da guerra do governo contra o governo seguem firmes em suas trincheiras. E, por tudo o que se viu de janeiro até agora, nada garante que o quadro não possa mudar de novo, e repentinamente.

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