MarioSabino

Sejamos lúcidos sobre o nazismo

05.04.19

O chanceler Ernesto Araújo insiste em dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda — ou seja, o contrário do que pensam até mesmo os neonazistas. Ele afirmou em Jerusalém, durante a visita presidencial a Israel, que “a associação do nazismo com a direita foi usada para denegrir movimentos que são considerados de direita e que não têm nada a ver com o nazismo. Quero que as pessoas estudem, leiam a história de uma perspectiva mais profunda”. Perguntado sobre a opinião de Ernesto Araújo, Jair Bolsonaro disse concordar com ele: “Não há dúvida, não é? Partido Socialista, como é que é? Da Alemanha. Partido Nacional Socialista da Alemanha”.

Também concordo com Ernesto Araújo: é preciso ler a história de uma perspectiva mais profunda. Na história factual do nazismo, acho que não existe nada de mais profundo do que as 1249 páginas de The Rise and Fall of the Third Reich, do americano William L. Shirer. Já citei o livro aqui, para criticar aquela besteira chamada Quando as Democracias Morrem, dos igualmente americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que foi usada pelo pessoal da esquerda para tentar deslegitimar Jair Bolsonaro durante a campanha. Tenho poucos portos seguros.

Shirer trabalhava como correspondente em Berlim da Universal News Service e da CBS, quando Hitler ascendeu ao poder. E voltou à Alemanha no momento da sua queda. Era jornalista, o que certamente causará muxoxos, e historiador de peso – o que produzirá mais muxoxos, uma vez que o estudo da hiistória é outra área associada a esquerdismo. Sugiro que, antes de sentenciá-lo, o leiam. The Rise and Fall of the Third Reich não é um livro de ocasião, publicado logo depois da guerra. Foi lançado em 1960, porque demandou extensa pesquisa, para além do testemunho ocular do seu autor – um americano, diga-se ainda a favor de Shirer, daqueles de antigamente, muito benquisto no Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Adolf Hitler permanecia militar, em setembro de 1919, quando recebeu a ordem da escritório político do Exército Alemão para espionar um grupelho autointitulado Partido dos Trabalhadores Alemão. Ao participar de uma reunião do grupelho, Hitler conheceu Anton Drexler. Um ano antes, conta Shirer, esse sujeito fundara um “Comitê de Trabalhadores Independentes”, para combater o marxismo dos sindicatos e lutar por uma “paz justa” para a Alemanha – o Tratado de Versalhes havia imposto indenizações pesadas ao país derrotado na Primeira Guerra e imerso numa crise econômica que aumentaria exponencialmente na década seguinte. Esse comitê acabou resultando no tal PT Alemão.

Drexler entregou-lhe um panfleto chamado O Meu Despertar Político, fato relatado por Hitler em Mein Kampf. Conta Shirer que, para surpresa de Hitler, o panfleto continha muitas das ideias que ele próprio cultivava. O principal objetivo de Drexler era construir um partido baseado na massa de trabalhadores, mas que, ao contrário do Partido Social-Democrata, fosse fortemente nacionalista. Hitler acabou convidado a fazer parte do PT Alemão, cujo ideário era um verdadeiro pastiche. Havia quem defendesse, por exemplo, que a Bavária se separasse da Alemanha e se fundisse com a Áustria – o que despertava a indignação de Hitler.

De espião do Exército, ele viria a se tornar dirigente do grupelho e, em abril de 1920, o PT da Alemanha se tornou o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. O seu programa ideológico foi feito sob medida para atrair e cooptar assalariados e desempregados propensos a ouvir o canto da sereia dos comunistas. Shirer escreve que o item 11, por exemplo, propunha a abolição de ganhos que não fossem provenientes de trabalho; o item 12, a nacionalização de companhias monopolistas; o item 13, a divisão de lucros da grande indústria com o Estado; o item 14, a abolição do arrendamento de terras e da especulação com propriedades rurais. Esses pontos foram colocados no programa por insistência de Anton Drexler e Gottfried Feder, um engenheiro diletante em economia que dizia que o capital “especulativo”, em oposição ao capital “criativo” e produtivo, era a causa dos problemas econômicos da Alemanha. Como diz Shirer, ao contrário de Hitler, ambos realmente pareciam acreditar que o “socialismo” do nacional-socialismo era para valer.

O economista e filósofo austríaco Ludwig von Mises, apóstolo do liberalismo econômico, viria a formular a ideia de que, embora o nazismo não tivesse se apropriado dos meios de produção, ele guardava semelhanças com o socialismo, porque era o governo alemão que exercia o poder de proprietário das empresas. Desse ponto de vista, Ernesto Araújo parece ter alguma razão. Mas os fatos descritos por Shirer – e por muitos outros historiadores — durante o período em que Hitler dominou a Alemanha mostram que os donos das empresas do país não perderam as suas posições de comando. Associaram-se ao líder nazista não só para ajudar a catapultá-lo, a fim de deter o avanço do comunismo entre mineiros e operários, como para cobrar a sua fatura anos mais tarde, usufruindo inclusive de mão de obra escrava, depois que Hitler pôs em marcha o seu maior programa: a subjugação e a exterminação dos judeus e demais minorias que maculariam os “arianos”.

Quem fez a ponte entre os grandes industriais e banqueiros e os nazistas, em 1931, dois anos antes de Hitler chegar ao poder, foi Walther Funk, que viria a se tornar ministro da Economia e presidente do Banco do Reich. No julgamento de Nuremberg, Funk declarou:

“Naquela época, a liderança do partido mantinha visões completamente contraditórias e confusas sobre política econômica. Tentei cumprir a minha missão (confiada por grandes industriais e banqueiros) de convencer o Fuehrer e o partido de que a iniciativa privada, a independência do homem de negócios, os poderes criativos da livre iniciativa etc. deveriam ser reconhecidos como a política econômica básica do partido. O Fuehrer pessoalmente ressaltou algumas vezes, durante conversas comigo e líderes industriais que lhe apresentei, que ele era inimigo da economia estatal e da chamada ‘economia planificada’ e que considerava a livre iniciativa e competição absolutamente necessárias para que se pudesse obter a maior produção possível.”

Com esse discurso, ele obteve financiamentos vultosos para o Partido Nacional Socialista, enquanto deixava partidários como Joseph Goebbels, futuro ministro da Propaganda, encantar a massa de manobra com a conversa de que os nazistas eram realmente socialistas. Às vezes, as coisas fugiam de controle. Em 1930, quando o flerte com os grandes capitalistas começava, Hitler ficou horrorizado, escreve Shirer, com um projeto de lei nazista, apresentado ao Parlamento, que instituía o teto de 4% para a taxa de juros e a expropriação da fortuna dos “magnatas da banca e da Bolsa de Valores”. Para ele, tratava-se não apenas de bolchevismo, como de suicídio financeiro do partido. Mandou retirar o projeto. Quando os comunistas reapresentaram a mesmíssima proposta, Hitler mandou que os nazistas votassem contra. No mesmo ano, nazistas que levaram a sério o “socialista” do nome do partido, como Otto Strasser, apoiaram greves comandadas por sindicatos socialistas e defenderam a estatização da indústria – heresias para Hitler, nas palavras de Shirer. O Fuehrer exigiu que parassem com a brincadeira e, ao ouvir a negativa, os expulsou. Hitler nunca duvidou de que o nazismo ocupava um lugar à direita no espectro político.

Com o poder nas mãos, a partir de 1933, ele lançou-se à caça de comunistas internos e externos, como já deixara claro que o faria em “Mein Kampf”. Caçar comunistas era também um dos esportes preferidos de Joseph Stalin, mas de comunistas que não eram comunistas como ele. No livro The Bloodlands – Europe Between Hitler and Stalin, Timothy Snyder, professor em Yale, relata a tragédia que, nos anos que precederam a Segunda Guerra e durante o conflito, abateu-se sobre a área que compreende Polônia, Lituânia, Ucrânia e Belarus, espremida entre os totalitarismos nazista e comunista. Ao longo de 12 anos, sob o jugo de uns e outros, 14 milhões de pessoas morreram executadas ou de fome. Num único dia do outono de 1941, Hitler conseguiu matar mais prisioneiros de guerra soviéticos do que prisioneiros britânicos e americanos durante toda a guerra. Stalin não foi menos medonho. Na Ucrânia, com terras coletivizadas e forçada a enviar a quase totalidade dos grãos colhidos para a Rússia, houve episódios de canibalismo. Dizia-se que “o socialismo é vitorioso e, por isso, há fome”. As “Bloodlands” foram marcadas na carne pela ferradura cujos extremos eram nazismo e comunismo.

Voltando a Ernesto Araújo, eu diria que o nazismo foi um totalitarismo à direita, assim como o fascismo italiano, porque nele os capitalistas serviam-se do estado e o estado servia-se deles. Essa relação propiciou o reerguimento econômico da Alemanha de cima para baixo e serviu para forjar e manter em funcionamento uma espantosa e lucrativa máquina de destruição. Já o comunismo difere do nazismo porque elimina completamente as relações capitalistas, pelo menos as formais, e transforma o estado em único patrão. E quanto à China atual?, poderia perguntar alguém. Na minha opinião, o “modelo chinês” é um totalitarismo que combina comunismo e fascismo: o patrão é o estado e a iniciava privada é uma espécie de franquia a apaniguados que se servem do estado e servem ao estado. É um modelo que só funciona para chineses.

O dado que realmente importa é que o autoritarismo e o seu corolário, o totalitarismo, são a essência da esquerda e a sua visão de que a classe operária representa o fim da história ou a grande finalidade de toda a trajetória humana. Marx não poderia ter sido mais evidente, ao adotar o termo “ditadura do proletariado”. É por isso que o comunismo soviético, cubano e norte-coreano continuam a arrancar suspiros das tchutchucas do petismo e adjacências, enquanto elas juram amar a democracia. Já a essência da direita — ou do capitalismo — são as liberdades econômica, política e pessoal (nada a ver, portanto, com “regimes democráticos de força”), das quais o fim é somente o início das liberdades do outro, sob o império da meritocracia — que é, em si mesma, a finalidade que empurra as sociedades para a frente. O nazismo é uma aberração no capitalismo, porque capturou e deformou a sua essência, ao privilegiar as relações de mutualismo entre poder totalitário e patrões, eleger uma “raça” como protagonista exclusiva do progresso humano e levar a cabo o genocídio de etnias em nome dela. A “solução final” matou também a concorrência. Penso que encarar o nazismo dessa forma só torna mais lúcido quem está do lado certo – como você e eu, presumo.

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