Adriano Machado/CrusoéMilitares orientarão próximo governador do Rio

Os militares no poder

Em meio à crise, uma parcela dos brasileiros pede que os generais assumam o país. Eles rejeitam a ideia, mas desde a redemocratização nunca tiveram tanto protagonismo na cena política
01.06.18

Adriano Machado/CrusoéSoldados do Exército guardam a frente do Planalto: também há fardados dentro do palácio (Adriano Machado/Crusoé)
“Já estou cheio desta vida de guerra. Não temos um só instante de descanso. A vida de buraco e sob bombas inimigas já atingiu o clímax. Há momentos em que perco a paciência e fico com receio de não ter forças suficientes para resistir até o fim desta interminável guerra.” O desabafo, por escrito, pode ser lido no Planalto. Não é da lavra do presidente Michel Temer, cada vez mais fraco e enredado em agruras de toda sorte, e sim parte de uma carta enviada por um pracinha brasileiro a familiares durante a Segunda Guerra Mundial, pinçada para integrar uma exposição em cartaz no saguão do palácio presidencial, em Brasília. Para além do local da mostra, a data em que ela foi inaugurada também é sugestiva: 17 de maio. Nesse mesmo dia, no ano passado, Temer e seu governo foram fuzilados pela delação da JBS. De lá para cá, o tiroteio não parou. Mudam os atiradores, mas a artilharia não cessa. Nas duas últimas semanas, os disparos contra Temer partiram dos caminhoneiros, que em um movimento arrebatador fizeram o país flertar com o caos. Na esteira do levante, uma parte dos manifestantes aproveitou para pedir a volta dos militares ao poder.

Seria uma forma de restabelecer a ordem e dar fim à desesperança com a política tradicional, mergulhada nos sucessivos escândalos de corrupção. Uma ilusão que, segundo pesquisa encomendada pelo próprio Planalto e cujo resultado foi revelado por Crusoé em seu Diário, avança sobre uma parcela relevante da população: 36% dos brasileiros se dizem simpáticos à ideia, rechaçada pelos próprios militares. O número pôs o governo em alerta. Sem saber o que fazer, o presidente foi buscar ajuda justamente onde essa parcela da população vê solução: as Forças Armadas.

Trata-se de uma solução cada vez mais usada pelos governantes de plantão quando se veem diante de crises difíceis de resolver. Michel Temer, em especial, tem usado e abusado dela. Se o presidente tanto busca um legado a ser defendido nas eleições deste ano, bem poderia incluir em sua lista de feitos a volta do protagonismo dos militares na cena política nacional. Desde que tomou posse, em 12 de maio de 2016, eles estão em todas. Encontraram no cenário de terra arrasada da política – provocado pelas descobertas da Lava Jato – e em um presidente impopular e investigado por corrupção a estrada perfeita para, aos poucos, recuperarem parte do espaço perdido nos anos que se seguiram ao fim do regime militar, em 1985.

Na prática, sob Temer o país já vive uma espécie de intervenção militar branca, em que oficiais de alta patente das três forças têm sido onipresentes – seja ocupando postos-chave ou participando ativamente das decisões do governo. Pela primeira vez desde a promulgação da Constituição de 1988, foi decretada intervenção federal na área de segurança em um estado da federação. Os militares foram chamados a patrulhar as ruas da cidade e um general foi nomeado pelo presidente para comandar a Secretaria de Segurança Pública do estado. Pela primeira vez desde a redemocratização, tropas foram convocadas para conter protestos na Esplanada. Um dos homens-fortes do presidente hoje é um general, Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, recriado por Temer após ser extinto por Dilma Rousseff. Tamanha proeminência era impensável há poucos anos. Na passagem de Dilma pelo poder, enquanto existiu, o GSI também foi comandado por um general, mas era sempre relegado ao desprezo. A ponto de a petista, certa feita, ter determinado que o então ministro, general Elito Siqueira, não mais entrasse com ela no elevador. O constrangimento foi geral.

Quem é quem nas Forças Armadas

 

A reverência de Temer aos militares começou antes mesmo de ele assumir. Quando o impeachment de Dilma ainda era um plano, ele silenciosamente pediu a Etchegoyen, com quem já tinha grande intimidade, que marcasse um encontro com o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Queria consultá-lo sobre o que os quartéis achariam se ele, Temer, tivesse de assumir o poder caso o Congresso derrubasse Dilma. Villas Bôas sinalizou que, se tudo ocorresse dentro dos marcos legais, não haveria problemas. Temer e seus aliados, então, se viram livres para seguir adiante. Com o processo já em marcha no Congresso, os militares foram procurados também pelo outro lado. Dessa vez, o PT queria aval para decretar estado de defesa no país no auge dos protestos a favor do impeachment. Era uma tentativa de blindar Dilma Rousseff da força das manifestações. A resposta foi negativa. Mais uma vez, o argumento foi o da legalidade. Colocar tropas na rua para conter protestos pacíficos seria um golpe. O caminho, assim, estava ainda mais aberto para Temer, que tratou de retribuir ambos os gestos – e de, em seguida, explorar da melhor maneira possível a boa relação.

Já no poder, Temer começou justamente pela recriação do GSI. Ele também devolveu ao guarda-chuva dos militares o controle da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência. Os meses que se sucederam não apaziguaram a crise político-policial e o emedebista precisou ampliar a presença militar na estrutura administrativa para tentar obter alguma estabilidade. O Ministério da Defesa passou às mãos de um general e, aos poucos, ele foi distribuindo oficiais até pelos escalões inferiores. O chefe de gabinete da Casa Civil, por exemplo, é um militar.

Conforme aumentava sua impopularidade, Temer se escudava cada vez mais na turma da farda. A opção obedece também a um cálculo político. Pesquisas apontam que as Forças Armadas são bem vistas por mais de 80% da população – Temer, no sentido contrário, conseguiu o feito de chegar a 3% de aprovação, o menor índice de todos os presidentes desde a redemocratização. O presidente passou, então, a aproveitar toda e qualquer oportunidade para mostrar ao público que os quartéis eram um pilar de sustentação de seu governo. Discursos com afagos aos militares viraram praxe, bem como sua presença em solenidades na caserna. Temer costuma se referir ao general Villas Bôas, comandante do Exército, como o “garantidor da estabilidade democrática” – um título que, na verdade, deveria ser dele próprio, um civil eleito vice-presidente pelo voto popular nas eleições de 2014.

O processo de ampliação da presença dos militares no núcleo do poder central fez com que um antigo guru das relações entre quartéis e governos voltasse às mesas dos gabinetes das Forças Armadas. Trata-se do americano Samuel Huntington, autor de “O Soldado e o Estado”. No livro, escrito em 1957, ele prega que a principal missão dos militares é a defesa da pátria e o controle civil é uma forma de profissionalizar ao máximo a caserna. A cúpula das Forças Armadas, porém, defende uma atualização dessa teoria: tanto quanto a defesa da pátria, militares devem participar de outras atividades. Com base nessa leitura, os oficiais generais argumentam ser natural o papel obtido no atual governo. Dizem que os cargos que ocupam são diretamente ligados a setores com os quais têm intimidade. “Hoje os grandes países entendem que as Forças Armadas devem atuar não só na defesa da pátria, mas também da construção de uma sociedade mais madura”, diz um general.

Temer é observado pelo general Villas Bôas, comandante do Exército, e pelo almirante Leal Ferreira, comandante da Marinha (Adriano Machado/Crusoé)
Sob Temer, os militares se viram livres para participar de debates públicos relevantes, algo inimaginável nos governos petistas, por exemplo. Foi assim na noite do dia 3 de abril. Enquanto o presidente discutia um já fracassado processo de privatização da Eletrobras com um ministro à época demissionário, em seu gabinete no Palácio do Planalto, ele foi avisado por assessores do conteúdo de dois tuítes que haviam sido postados pelo comandante do Exército. Em 74 palavras, Villas Boas dizia compartilhar do “anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade” e que o Exército estava “atento às suas missões institucionais”. Era a véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal. As mensagens foram vistas como uma tentativa do general de interferir na decisão da corte – e até forçá-la a manter Lula preso. Por avalizar a posição, e para não criar nenhum tipo de rusga com os militares, Temer nunca comentou a iniciativa do general.

No final do ano passado, quando o então general da ativa Hamilton Mourão defendeu em uma palestra a ideia de uma intervenção militar no país, o presidente também se calou. Não houve punição imediata a Mourão, que meses depois acabou indo para a reserva. Mais recentemente, quando vieram a público documentos da CIA segundo os quais o presidente Ernesto Geisel (1974-1979) sabia e autorizou a execução de opositores ao regime militar, Temer, sentindo a necessidade de fazer um gesto de solidariedade à caserna, tratou de lançar suspeição sobre os documentos. Comparou-os às delações premiadas da Lava Jato, disse ter achado a história “estranha” e insinuou que a CIA poderia estar mentindo.

O episódio da mensagem do general Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula é revelador da forma como os quartéis têm se movimentado em relação aos grandes temas do país. Muitos oficiais-generais da ativa não diziam publicamente, mas consideravam que seria um acinte se o Supremo flexibilizasse seu entendimento sobre a execução de penas em segunda instância e, circunstancialmente, concedesse um habeas corpus para tirar Lula da prisão. Acreditavam que esse seria um péssimo sinal para o país. Fiadores da Operação Lava Jato (o juiz Sergio Moro chegou a receber a comenda máxima do Exército, no auge das investigações), eles faziam a mensagem chegar sutilmente a ministros de tribunais superiores. Como, mesmo assim, ainda acreditavam que havia a possibilidade de Lula ser solto, optou-se por uma ação mais direta. A mensagem de Villas Bôas não foi, como poderia parecer, uma iniciativa solitária. O texto dos dois tuítes foi cuidadosamente discutido por ele com outros oficiais do alto comando do Exército e, só depois, disparado.

Em meio à crise política decorrente da Lava Jato, os militares têm estreitado laços com o mundo da política e, especialmente, com o Judiciário. O entendimento deles é que, em momentos críticos, as instituições precisam se aproximar pelo bem do país. Em outras palavras, se os políticos são passageiros e dão as costas para os bons costumes, além de tentarem se unir para estancar as investigações, os pilares seculares da República precisam resistir com firmeza. E não é apenas o Exército que faz questão de se posicionar bem nesse front. Recentemente, em um evento no Supremo Tribunal Federal, a presidente da corte, Cármen Lúcia, dirigiu-se efusivamente a um militar que ocupava a primeira fila na plateia. “Este é o meu anjo da guarda”, disse a ministra, apresentando o oficial às pessoas que a acompanhavam. O “anjo da guarda” é Maurício Medeiros, brigadeiro e chefe da Assessoria Parlamentar da Aeronáutica. É um dos homens de confiança do comandante, Nivaldo Rossato, com quem se reúne todos os dias. A proximidade com a ministra é facilitada pelo fato de os dois serem da mesma região de Minas Gerais. Mas, também por isso, o brigadeiro é um dos canais diletos de comunicação entre a presidente do Supremo e o comando da força. Para tratar de todos os assuntos – inclusive os mais delicados. Outros ministros da corte também conversam diuturnamente com oficiais de alta patente das Forças Armadas.

A intervenção permanente

Desde 2016, em pelo menos cinco oportunidades os militares foram protagonistas, voluntariamente ou a pedido do Planalto, de capítulos importantes da interminável crise política brasileira

 

Ante o furdúncio das duas últimas semanas, foi intenso o movimento de consultas de políticos a militares, de militares a políticos e entre militares e juízes de tribunais. Na última quarta-feira pela manhã, por exemplo, o ministro da Defesa, Joaquim Luna e Silva, se reuniu com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o primeiro na linha sucessória, para trocarem informações. Trataram do cenário político. Luna disse a ele que a propalada ideia de intervenção no Planalto não interessava às Forças Armadas. O general também conversaria em seguida com ministros do Supremo Tribunal Federal para fazer o mesmo relato. Foi, curiosamente, depois desse giro do ministro, que Cármen Lúcia se pronunciou pela primeira vez sobre a crise. “A democracia é o único caminho legítimo”, disse ela, na abertura de uma sessão do tribunal. Em outra frente, o comandante da Aeronáutica e o da Marinha, almirante de esquadra Leal Ferreira, procuraram o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, para também trocar informações.

A garantia do general Luna, com a prerrogativa de falar em nome dos três comandantes militares, não é vazia. Todos os militares da ativa com os quais Crusoé conversou nos últimos dias rechaçam com veemência qualquer possibilidade de que ocorra novamente um golpe como o de 1964. Embora enalteçam o movimento que derrubou o então presidente João Goulart do poder e os 21 anos do regime militar, avaliam ter pago um preço caro nas décadas que se seguiram ao seu término. Sentiram-se obrigados a se afastar completamente de qualquer movimentação política pelo que um general da reserva chama de “inoculação, na sociedade, de um vírus anti-Forças Armadas promovida pela esquerda”. A leitura que esses oficiais fazem, aliás, é de que foi justamente o fracasso da esquerda no poder que abriu novamente as portas para os militares. Nem por isso, eles estão dispostos a voltar ao poder. Ao menos pelos tanques. Pela via democrática, vários deles pretendem se lançar na política este ano. Há, entre os candidatos que disputarão as eleições, pelo menos 71 militares da ativa e da reserva, em 26 estados.

Mesmo bem acomodados em posições estratégicas na atual configuração do poder, os militares não se sentem tão confortáveis. Eles têm consciência de que as Forças Armadas vêm sendo usadas como muleta pelo governo, referindo-se às várias oportunidades em que foram convocados para ajudar a resolver crises como a do Rio e, agora, a provocada pela greve dos caminhoneiros. Até brincam com isso, dizendo que viraram o “posto Ipiranga do governo”, uma alusão ao famoso comercial da televisão. Paralelamente a essa queixa, os militares reclamam que, a despeito do papel mais relevante que exercem, os quartéis seguem precisando de dinheiro – e os salários continuam defasados. Com sérios problemas de caixa, o governo dificilmente conseguirá atender a essas reivindicações. Mas, pelo protagonismo que deu aos militares, Temer já terá deixado uma herança para a caserna. Eles voltaram à cena.

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