Adriano Machado/CrusoéO plenário

A suprema censura

A decisão rocambolesca de um ministro do STF mandando Crusoé retirar do ar reportagem sobre o presidente da corte reaviva tempos tenebrosos e faz o Brasil reafirmar o direito à liberdade de imprensa
19.04.19

Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil foi escrito no Brasil e publicado em 1663 em Portugal para contar a atuação da Companhia de Jesus, responsável pela colonização brasileira nas primeiras décadas após o descobrimento. O pecado do primeiro escrito brasileiro alvo de censura foi idealizar um paraíso no coração do país. A avaliação dos censores foi a de que, ao fazer esse relato, estaria implícita uma contestação da intervenção da Igreja e do reino português na vida da colônia. Havia, contudo, uma motivação a mais no ato. O visitador do Santo Ofício no Brasil à época, Jacinto de Magistris, uma espécie de fiscal da Igreja, era adversário político e ideológico do autor da obra, Simão de Vasconcelos. A ação foi tão eficiente que não restou nenhum exemplar original sem os cortes.

O Brasil deixaria de ser colônia 150 anos depois. Passaria por uma experiência mais curta com dois imperadores até entrar na atual fase, republicana, ao longo da qual sobreviveu a duas ditaduras. Em todos esses períodos, a censura sempre foi, em maior ou menor grau, utilizada como instrumento estatal para ameaçar a liberdade de expressão. E assim funcionou por séculos, sem grandes obstáculos, até que esse direito fosse finalmente consagrado como fundamental, de maneira inconteste, pela Constituição de 1988. Consolidou-se no país, então, o sentimento de que se trata de um pilar importante da democracia. De lá para cá, esse pilar sofreu fissuras, de todos os tamanhos, por diversas vezes. Mas talvez nenhuma dessas fissuras tenha se aproximado, em gravidade, de uma notícia curiosa e necessária das cousas do Brasil que Crusoé teve de dar a seus leitores na última segunda-feira, 15.

Uma decisão expedida sob o timbre da corte judicial que mais deveria proteger o direito à liberdade de expressão, o Supremo Tribunal Federal, acabou por lançá-lo perigosamente na escuridão. Na última segunda-feira, uma oficial de Justiça enviada pelo tribunal bateu à porta da redação para entregar uma ordem do ministro █████████ ██ ██████ para que fosse retirada do ar, imediatamente, a reportagem de capa da última edição da revista, intitulada “O amigo do amigo do meu pai”. Era, portanto, uma decisão de um ministro da Suprema Corte censurando uma reportagem sobre o presidente da Suprema Corte. Estavam patentes, ali, o caráter inédito e a gravidade do caso.

A reportagem revelava um documento juntado em um dos inquéritos da Lava Jato no qual o maior empreiteiro do país, Marcelo Odebrecht, também delator da operação, esclarecia aos investigadores que o amigo do amigo de seu pai era o presidente do STF, ████ ██████. Além de ordenar a retirada da reportagem do ar, █████████ ██ ██████ também determinava que a Polícia Federal intimasse os responsáveis pela publicação para prestar depoimentos em 72 horas – o publisher de Crusoé, Mario Sabino, teve de comparecer à Polícia Federal em São Paulo, em até 24 horas. A censura se estendia a O Antagonista.

A ordem foi cumprida imediatamente. Mas isso não foi suficiente para evitar que, horas depois, outro oficial retornasse à redação de Crusoé para, surpreendentemente, multar a revista em 100 mil reais sob a acusação de descumprimento do despacho de █████████ ██ ██████. A decisão foi expedida como parte do controverso inquérito aberto por ████ ███████ em março para, supostamente, apurar fake news e ataques a membros do Supremo. Na terça-feira, no âmbito desse mesmo inquérito e também por ordem de ██████, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão nos endereços de alguns dos tais críticos virulentos à corte, incluindo um general da reserva.

No mesmo dia, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, apontou a inconstitucionalidade do inquérito e determinou o seu arquivamento. A procuradora listava diversas ilegalidades na investigação, a começar pelo fato de ███████ ter aberto o inquérito e escolhido, ele mesmo, o ministro que deveria conduzi-lo, quando o normal seria submeter o procedimento à distribuição eletrônica. Além disso, também chamava atenção para o fato de que, estranhamente, o Ministério Público não havia sido chamado a atuar na investigação, como manda a lei. A despeito do rol de argumentos da chefe da Procuradoria, ██████ ignorou o despacho e manteve o inquérito. Logo em seguida, ███████ ainda prorrogou o procedimento por mais 90 dias.

Àquela altura, a censura a Crusoé e a queda de braço em torno do misterioso inquérito já haviam tomado o noticiário e as redes sociais. Entidades protestaram, bem como integrantes do Congresso, do próprio Judiciário e do Poder Executivo. Até mesmo o presidente Jair Bolsonaro, que costuma fazer ataques rotineiros à imprensa, saiu em defesa da liberdade de expressão. Em sua conta pessoal no Twitter, ele afirmou tratar-se de um direito “legítimo e inviolável”. A repercussão tinha razão de ser. Afinal, a censura partira do órgão que, desde a redemocratização, tem sido o guardião da liberdade de imprensa. Sempre que pôde, a ampla maioria dos ministros reafirmou o entendimento de que o direito à livre circulação de informações e à expressão é um dos sustentáculos da democracia.

Decisões nesse sentido foram proferidas em inúmeros julgamentos, alguns bem recentes. Em 2009, por exemplo, o Supremo extinguiu a Lei de Imprensa, que dava margem à ação de censores. Em 2015, a corte derrubou a necessidade de autorização prévia para a produção de biografias. “Cala a boca já morreu”, disse na ocasião a ministra Cármen Lúcia, em voto histórico. Em 2018, também coube ao Supremo permitir que humoristas fizessem esquetes de candidatos durante a campanha eleitoral. Foi justamente por representar um ponto fora da curva que a atuação da dupla ██████-███████ fez acender o sinal de alerta: estaríamos diante de um horizonte nebuloso?

O temor fazia sentido porque, desta vez, a ordem de censura partia do tribunal que, em outras situações, era o responsável por reverter o ânimo censor de instâncias inferiores, onde a visibilidade é menor e o direito fundamental é alvo de ataques com maior frequência. Um levantamento feito pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a pedido de Crusoé, mostra que, nos últimos dez anos, houve nada menos que 378 casos em que foi pedida a exclusão de conteúdo de reportagens jornalísticas no país. Em 161 casos (42,5%) houve decisão favorável por parte da Justiça. Em outros 175 casos (46,2%) juízes rejeitaram os pedidos, em 33 (8,7%) os processos terminaram sem decisão e em 9 (2,3%) ainda não houve julgamento. Um dos casos mais conhecidos de censura é o que, em 2009, proibiu o jornal O Estado de S. Paulo de publicar informações da Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, envolvendo o empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney. A censura durou impressionantes dez anos.

No caso da reportagem publicada por Crusoé, a ordem do ministro █████████ ██ ██████ para retirá-la do ar foi surpreendente em vários aspectos. Jornalisticamente, não havia dúvidas razoáveis sobre sua importância e seu interesse público. O texto era baseado em um documento juntado aos autos da Lava Jato, entregue pelo maior empreiteiro do país, que também é um dos mais destacados delatores da operação. A menção que Odebrecht fazia ao atual presidente da Suprema Corte – figura pública que, como as demais, deve estar permanentemente submetida ao escrutínio — tornava obrigatória a publicação, com a devida contextualização, como mandam as boas normas jornalísticas.

████ ███████ foi procurado, antes de a reportagem ir ao ar. Preferiu não responder. A resposta veio na forma da decisão de ██████, depois de ser provocado pelo próprio ███████, que lhe enviou, do exterior, uma mensagem pedindo providências. “A decisão é a típica excepcionalidade. Afronta um entendimento pacífico na jurisprudência do STF. Ignora o contexto de combate à corrupção presente no país. Se refere a um chefe de poder. E, do ponto de vista formal, é toda errada. Ela não poderia sequer ter existido”, afirma Michael Mohallem, professor de Direito da FGV-Rio. “Ou a liberdade de imprensa é completa, cheia, íntegra, ou é um arremedo de liberdade de imprensa”, criticou Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo.

O protagonismo judicial em casos de censura é algo relativamente novo. Por muitos anos, o Brasil conviveu mais de perto com um padrão de censura, na imprensa e nas artes, em que a decisão de proibir cabia ao Poder Executivo. No Brasil Colonial, Portugal utilizava a Inquisição para impedir a circulação de impressos e fechar gráficas. No Império, a polícia de dom Pedro I e, especialmente, a de dom Pedro II, ocupava-se de censurar textos que transmitissem o ideário federativo, republicano e abolicionista. A primeira Lei da Imprensa da República, promulgada via decreto pelo presidente Arthur Bernardes, em 1923, chegou a classificar como crime a publicação de segredos de estado. Anos depois, a ditadura de Getúlio Vargas criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), uma estrutura com plano de carreira e salários para os censores oficiais.

Mesmo durante governos democráticos, como o de Juscelino Kubitscheck, o país assistiu a decisões atípicas, como a que ficou conhecida como “Portaria Rolha”. Ela determinava que a imprensa excluísse dos seus programas “anedotas maliciosas, gracejos picantes” e “quaisquer manifestações que importem na subversão da ordem pública”. O alvo era o jornalista Carlos Lacerda, ferrenho opositor de Kubitscheck. A ditadura militar restabeleceu a censura oficialmente e elaborou uma nova Lei de Imprensa, em 1967. No mesmo ano, um decreto-lei criminalizaria a divulgação de “notícias falsas, tendenciosas ou deturpadas, de modo a pôr em perigo o bom nome, a autoridade o crédito ou o prestígio do Brasil” – algo bem parecido com o que o tal inquérito instaurado por ███████ promete fazer.

“A censura do STF tenta resgatar a censura tradicional, os mecanismos estatais de censura. É interessante que, por mais que o atual governo seja acusado de ser contrário à imprensa, ele não estabeleceu nenhum órgão de censura. Quem fez isso foi o STF”, aponta Walter de Sousa, do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. O centro de estudos tem se debruçado, nos últimos tempos, a estudar um fenômeno cada vez mais comum, agora replicado por ██████ e ███████: o hábito de as autoridades recorrerem à cantilena de que são fake news reportagens que lhes são incômodas. “Utiliza-se uma preocupação legítima, que é a disseminação de fake news, para reagir a uma denúncia incômoda e desmerecer o trabalho jornalístico. É, na verdade, uma nova estratégia de controle e censura”, diz Ivan Paganotti, que estuda novas abordagens de censura no país.

A decisão de ██████ no inquérito aberto por ████ ███████ fez aumentar as divisões internas no tribunal, onde já era vista com reserva a decisão do presidente da corte de abrir o procedimento a seu modo, sem antes discuti-la com os colegas. Nesta-quinta, 18, o quarto dia da censura a Crusoé, o ministro Marco Aurélio Mello, que já havia falado publicamente contra a censura, voltou a criticar a ordem de ██████. “Mordaça, mordaça. Isso não se coaduna com os ares democráticos da Constituição de 1988. Não temos saudade de um regime pretérito. Não me lembro, nem no regime pretérito, que foi um regime de exceção, de coisas assim, tão violentas como foi essa”, disse o ministro em entrevista à Rádio Gaúcha, de Porto Alegre. Horas depois, o decano do Supremo, ministro Celso de Mello, distribuiu uma nota contundente, também condenando a decisão.

“A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República! O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o livre exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento ou de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público, ainda que do relato jornalístico possa resultar a exposição de altas figuras da República! A prática da censura, inclusive da censura judicial, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito e traduz, na concreção do seu alcance, inquestionável subversão da própria ideia democrática que anima e ilumina as instituições da República!”, afirmou Celso de Mello.

O decano prosseguiu: “No Estado de Direito, construído sob a égide dos princípios que informam e estruturam a democracia constitucional, não há lugar possível para o exercício do poder estatal de veto, de interdição ou de censura ao pensamento, à circulação de ideias, à transmissão de informações e ao livre desempenho da atividade jornalística!!!”. Pouco mais de duas horas após a divulgação da nota do decano, saiu uma nova decisão de █████████ ██ ██████, revogando a censura a Crusoé e a O Antagonista. Se na ordem de censura ele se apegou a uma nota em que a Procuradoria-Geral da República dizia não ter recebido cópia do documento que embasava a reportagem para classificá-la, equivocadamente, como “fake news”, agora ele dizia que resolveu revogar o embargo após tomar conhecimento de que o papel “realmente existe”.

No despacho, ██████ diz que apenas na quinta recebeu cópia dos autos e pôde constatar a existência do documento. “A existência desses fatos supervenientes – envio do documento à PGR e integralidade dos autos ao STF – torna, porém, desnecessária a manutenção da medida determinada cautelarmente, pois inexistente qualquer apontamento no documento sigiloso obtido mediante suposta colaboração premiada, cuja eventual manipulação de conteúdo pudesse gerar irreversível dano a dignidade e honra do envolvido e da própria Corte, pela clareza de seus termos”, escreveu. Até o fim da noite de quinta-feira, 18, a redação de Crusoé aguardava uma nova visita de um oficial de Justiça, desta vez para comunicar formalmente o teor da nova decisão. A intimação foi entregue no início da tarde desta sexta, 19, e a reportagem finalmente voltou ao ar. Joaquim Falcão, professor de Direito da FGV-Rio que é considerado o maior especialista do país em assuntos ligados à Suprema Corte, definiu assim o triste episódio: “██████ e ███████ colocaram Crusoé na história das liberdades no Brasil”.

Que a escuridão de quatro dias sirva para que, daqui por diante, as notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil possam chegar aos leitores sem travas e arbitrariedades.

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