Divulgação"A decisão parece uma questão de corporativismo do Judiciário"

Em defesa dos próprios interesses

O uruguaio Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão na Corte Interamericana de Direitos Humanos, diz que o Judiciário costuma ser corporativista e que funcionários públicos devem saber responder a críticas
19.04.19

Em 1979, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) começou a monitorar como os diversos países que pertencem à Organização dos Estados Americanos (OEA) e assinaram a Convenção Americana dos Direitos Humanos tratavam o direito à liberdade de pensamento e de expressão. O interesse em ver de perto a situação de cada uma das nações signatárias guardava relação direta com os compromissos estabelecidos por elas no documento: no seu artigo 13, a convenção estabelece que toda pessoa tem direito ao livre pensar e à livre manifestação. “Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”, diz o texto. “O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia.”

Mais tarde, já em 1997, para garantir o cumprimento desse artigo nos estados membros da OEA, a corte criou uma relatoria especial, que produz informes periódicos. Há cinco anos, a relatoria está sob o comando do advogado uruguaio Edison Lanza. Segundo ele, a censura imposta a Crusoé e ao Antagonista pelo ministro █████████ ██ ██████, do Supremo Tribunal Federal, atropelou a convenção que o Brasil se comprometeu a respeitar. “Do meu ponto de vista, parece muito claro que ela desrespeitava o que diz o artigo 13 da Convenção, que estabelece a proibição absoluta de censura”, disse Lanza na entrevista que se segue.

Como está a liberdade de imprensa na América Latina?
Vivemos uma situação heterogênea na região. Como é notório, temos tido problemas em países autoritários. Na Venezuela, na Nicarágua e em Cuba, pode-se constatar um ataque articulado do estado contra os jornalistas. Muitos estão sendo presos por fazerem seu trabalho. Também temos visto censura seletiva, contra os que criticam os regimes, expulsão de correspondentes estrangeiros e interferência na internet. Além disso, temos registrado episódios de violência contra profissionais da imprensa em democracias como México e Colômbia. Nos países democráticos, sempre há avanços e retrocessos. Às vezes, os governos tomam decisões que aumentam o acesso à informação e deixam a internet mais livre. Em outros momentos, fazem coisas que violam os padrões internacionais e interamericanos.

O sr. tem visto mais avanços ou mais retrocessos?
Por um lado, tem sido muito saudável constatar que o jornalismo investigativo ganhou um papel muito importante na América Latina nos últimos quatro ou cinco anos. Vários casos de corrupção foram revelados pela imprensa. Em paralelo, voltamos a ver muitos casos de demandas penais contra jornalistas investigativos, o que tem gerado custos elevados para eles e algumas condenações, como no Peru, na Colômbia e no Brasil.

Como o sr. viu a censura contra Crusoé e O Antagonista?
Do meu ponto de vista, parece muito claro que se desrespeitou o artigo 13 da Convenção Americana, que estabelece a proibição absoluta de censura. A informação de interesse público deve circular e toda pessoa tem o direito de buscar e difundir as notícias.

Em seu despacho, o ministro █████████ ██ ██████ afirmava que a medida era necessária pela existência de notícias fraudulentas e fala em agressões à honorabilidade de membros do STF. Isso faz sentido?
Fake news é um termo vago, ambíguo, que não tem qualquer rigor jurídico. Seu uso tem sido um desafio para os que defendem a liberdade de imprensa. Isso porque essa expressão tem sido empregada por autoridades no mundo todo justamente para desqualificar e desacreditar a imprensa.

Reprodução/Eric BridiersReprodução/Eric Bridiers“O que ocorreu no Brasil realmente foi um caso muito particular, muito excepcional”
E quanto à honorabilidade dos membros do STF?
Funcionários do governo, figuras públicas e candidatos políticos têm direito a honra, reputação e privacidade. Nas democracias, contudo, eles precisam estar sujeitos a uma vigilância maior. Precisam prestar contas à sociedade. Então, quando há uma denúncia, o correto é que se tome uma saída que não afete a liberdade de expressão. Se uma publicação menciona algum funcionário público, então é preciso seguir os passos adequados. Em primeiro lugar, aquele que é mencionado deve explicar o que aconteceu publicamente, dar a sua versão. Para isso, eles têm diversos meios à disposição. Em seguida, ele pode exigir direito de resposta no mesmo veículo que o mencionou. Em terceiro lugar, para casos muito pontuais em que poderia haver falsidade clara ou a intenção de prejudicar alguém com informação inverídica, pode-se recorrer ao direito civil. Mesmo assim, isso deve ser feito dentro de uma regulação específica, conhecida como real malicia. A pessoa afetada deve provar, por ser funcionário público, que efetivamente o que se divulgou não tem nenhuma veracidade e que foi divulgado com o objetivo de prejudicar a pessoa. É esse o padrão de resposta adotado pelas democracias para proteger o jornalismo e a liberdade de expressão.

Censurar um veículo, ordenando que se retire uma reportagem do ar, estaria portanto fora do padrão.
A questão é que funcionários públicos que estão sendo afetados por matérias investigativas estão usando a censura e os processos penais para desestimular os jornalistas. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já disse que o uso do direito penal para casos de liberdade de expressão e de reputação de funcionários de interesse público não é aceitável.

Em outros países da América Latina, é comum que o mesmo tribunal que julga uma ação inicie uma investigação, como nesse caso que assistimos agora no Brasil?
Nós já tivemos casos pontuais em que constatamos má atuação do Poder Judiciário em países da região. Na Venezuela, quando uma matéria menciona um alto funcionário público, eles ordenam a retirada da notícia do ar. Mas não se pode dizer, obviamente, que esse país seja uma democracia. Mesmo em Caracas, contudo, esse acúmulo de funções não acontece. O que ocorreu no Brasil realmente foi um caso muito particular, muito excepcional. Só consigo me lembrar de um caso de 2001, ano em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos recebeu a petição de um jornalista da Costa Rica, Mauricio Herrera Ulloa. Ele havia publicado matérias denunciando um funcionário público, que entrou com uma ação e ganhou. A Corte deu o parecer final favorável a Herrera porque, entre outras coisas, entendeu que não se seguiu o devido processo legal (a Corte concluiu que Herrera teve negado seu direito de recorrer e que o tribunal da Costa Rica foi parcial. O governo do país foi obrigado a recompensar o jornalista).

ReproduçãoReprodução“É certo que eles (os juízes) nutrem um espírito de corporativismo”
Qual foi a sua reação ao ser informado sobre a censura a Crusoé?
Quando tomei conhecimento da ordem de censura, isso me chamou a atenção. Sei que o Poder Judiciário brasileiro é independente e isso tem sido fundamental nesses últimos trinta anos. Não estamos falando da Venezuela, do Irã ou de outras ditaduras, em que os promotores e juízes basicamente cumprem as ordens do Executivo. No caso do Brasil, a decisão parece muito mais uma questão de corporativismo do Judiciário. Eles não querem prestar contas para a população e pretendem proteger os integrantes da corporação.

O Judiciário é o mais corporativista entre os poderes?
Difícil saber. Mas é certo que eles nutrem um espírito de corporativismo. Muitos judiciários nacionais têm incorporado os padrões interamericanos de boa vontade. Contudo, o ambiente fica mais turvo quando precisam tomar decisões que atingem eles próprios. O Legislativo, por ser formado por partidos com distintas visões, nem sempre reage como um corpo único quando é atacado.

O STF também mandou policiais fazerem busca e apreensão na casa de cidadãos porque eles tinham falado mal da Corte na internet. Disseram que havia o risco de uma alteração da ordem política e social. O sr. já viu isso em outros países?
Esse tipo de justificativa eu tenho escutado ultimamente na Nicarágua, que é governada por Daniel Ortega e tem sofrido uma repressão enorme. Lá, a alteração da ordem política e social tem sido usada como justificativa para a realização de prisões arbitrárias, de operações de busca e apreensão e de fechamento de veículos de imprensa. A Corte Interamericana já disse que o conceito de “ordem pública” numa democracia é muito manipulado. Ele só deveria ser invocado em situações de extrema gravidade, como quando um país está próximo da anarquia. Não acho que esse seja o caso do Brasil.

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