Divulgação"É particularmente preocupante que os tribunais atuem de forma imparcial e fora de suas atribuições, perseguindo seus críticos"

Permissão para se expressar

Jodie Ginsberg, diretora da Index of Censorship, que monitora casos de censura pelo mundo, teme que estejamos caminhando para uma situação em que artistas e jornalistas terão de pedir autorização para trabalhar
26.04.19

Em uma troca de correspondência com jornalistas e pensadores ingleses, dois dissidentes soviéticos sugeriram em plena Guerra Fria a criação de uma publicação para relatar os abusos perpetrados por Moscou contra a liberdade de expressão. Foi assim que nasceu, em 1972, a revista Index, cujo nome fazia referência às listas de livros proibidos pela própria União Soviética e também pelo Vaticano. Em sua primeira edição, a Index trouxe um poema inédito escrito pelo dissidente Alexander Soljenítsin em um campo de trabalhos forçados. Mais de quatro décadas depois, a publicação trimestral segue de pé, com o título Index on Censorship (Índice da Censura), mantendo o objetivo de publicar textos censurados em diversos países do mundo.

Além disso, a Index on Censorship também atua como ONG, com sede em Londres. Seus integrantes monitoram ofensas à liberdade de expressão em todo o planeta e anualmente premiam artistas, jornalistas, sites e organizações que lutam contra a repressão das ideias. Quem comanda a equipe há cinco anos é a jornalista inglesa Jodie Ginsberg, que tem acompanhado as notícias do Brasil – incluindo a recente ordem de um ministro do Supremo Tribunal Federal que censurou Crusoé. “É particularmente preocupante que os tribunais atuem de forma imparcial e fora de suas atribuições, perseguindo seus críticos. Isso ameaça a ideia de independência judicial e de liberdade de imprensa, que são dois pilares de uma democracia saudável”, diz Jodie. Segue a entrevista.

Como está o Brasil em relação à censura?
O país é amplamente considerado “livre”. Os índices que descrevem a qualidade da democracia e da imprensa parecem relativamente saudáveis. No entanto, estamos preocupados porque os políticos e os empresários poderosos continuam a usar leis, como a de crime de difamação, para evitar reportagens críticas. Além disso, assim como em outros países, os repórteres investigativos têm enfrentado ameaças e líderes políticos têm tentado manchar a reputação da mídia independente usando o termo “fake news”.

Por que muitos países estão registrando um recrudescimento da censura?
Isso está acontecendo por vários motivos. Um deles é o surgimento de novas leis de segurança nacional, destinadas a punir terroristas. O problema, nesses casos, é que muitas vezes essas leis acabam tendo como alvo qualquer crítico ao governo, como acontece claramente na Turquia. A ascensão das mídias sociais também permitiu que os indivíduos tenham novas formas para se expressar. Ao mesmo tempo, isso criou maneiras de os governos praticarem a censura. Quando um governo derruba intencionalmente a internet, o que está fazendo é censura.

O desejo de censurar sempre esteve presente com essa intensidade ou tem aumentado recentemente?
O impulso para controlar a informação sempre existiu. Não é nada novo. A diferença é que ele tem encontrado formas diferentes para se manifestar.

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal do Brasil censurou uma reportagem publicada por Crusoé. Em outros países, é comum que o Judiciário censure veículos de imprensa?
Não é comum em democracias que um Judiciário independente censure a imprensa. Onde a censura geralmente toma forma é nos poderes Executivos e Legislativo. São eles que, em geral, criam leis para controlar a sociedade.

DivulgaçãoDivulgação“É assustador que alguém seja alvo da polícia por se envolver em um discurso perfeitamente legal na internet”
Neste momento, alguns deputados brasileiros estão avaliando a criação de uma comissão de inquérito para apurar fake news, com apoio de integrantes do Judiciário.
É raro mesmo que o Judiciário faça esse tipo de coisa. Como disse, o comum é que o Executivo e o Legislativo tomem a iniciativa. É o que ocorreu nas Filipinas, por exemplo. Lá, o governo de Rodrigo Duterte tem perseguido o canal de notícias Rappler. No início de fevereiro, a diretora do site, Maria Ressa, foi presa e acusada por uma lei de difamação na internet, implementada em 2012. Na Polônia, o presidente Andrzej Duda assinou leis em 2016, permitindo que o Executivo possa nomear os chefes e diretores da televisão e da rádio públicas, coisas que até então eram feitas por um comitê supervisor. Na Turquia, uma lei estabelece que qualquer um pode ficar preso sem acusação por até cinco anos. Centenas de jornalistas já foram detidos.

A censura contra Crusoé e O Antagonista ocorreu dentro de um inquérito no qual brasileiros que fizeram críticas nas redes sociais ao Judiciário receberam visitas de policiais em suas casas. Como a sra. vê isso?
É assustador que alguém seja alvo da polícia por se envolver em um discurso perfeitamente legal na internet. Essa é uma maneira muito usada por regimes autocráticos para conter a liberdade de expressão. Eles obrigam as pessoas a ficar em silêncio, usando para isso a ameaça de uma ação legal. É particularmente preocupante que os tribunais atuem de forma imparcial e fora de suas atribuições, perseguindo seus críticos. Isso ameaça a ideia de independência judicial e de liberdade de imprensa, que são dois pilares de uma democracia saudável.

O Judiciário deve monitorar os indivíduos e a imprensa para controlar o que é publicado?
Entendo que as leis de difamação, no direito civil, podem desempenhar o seu papel em garantir que pessoas que sofreram com inverdades publicadas tenham a oportunidade de pedir uma reparação. Também acho que é importante que a imprensa siga códigos de conduta para lidar com eventuais erros. No entanto, acho prejudicial ter leis contra fake news. Quem decide o que é verdade? O limite entre uma lei sobre informações incorretas e a censura pura e simples é muito tênue.

Quais países conseguiram combater as chamadas fake news com sucesso sem afetar a democracia?
Não acho que algum país do mundo tenha feito isso brilhantemente. Os que se deram melhor são aqueles onde os políticos não interferem no funcionamento dos veículos independentes, há uma forte pluralidade na imprensa e existe uma tradição arraigada nos jornais de corrigir os próprios erros de maneira rápida e aberta. É isso que faz dos escandinavos os países com os melhores índices de liberdade de imprensa do mundo.

Quais setores da sociedade estão sendo mais afetados pela censura? A arte, a imprensa ou as redes sociais?
Estamos especialmente preocupados com os artistas. Isso porque eles costumam ter menos proteção do que outras profissões. Geralmente, não há sindicatos ou grandes corporações para protegê-los, o que significa que eles podem ser mais facilmente atingidos. Também estamos profundamente preocupados com a liberdade de imprensa. Em países da Europa, como Eslovênia e Malta, temos visto um número crescente de jornalistas assassinados. Há ainda uma profunda desconfiança em relação ao trabalho dos jornalistas. Em parte, essa desconfiança é alimentada pela contínua narrativa de alguns políticos de que todos os jornalistas estão envolvidos em fake news.

Os jornalistas também são culpados por essa falta de confiança?
Sim, acho que parte da culpa por esse sentimento de suspeita deve ser colocada na conta de alguns jornalistas e das poucas maçãs podres que não trabalham com os mais altos padrões éticos de reportagem. Mas a vasta maioria dos jornalistas que conheço é movida por um profundo desejo de chegar à verdade e retratá-la com precisão. É vital que não caiamos na armadilha de dizer que toda imprensa é ruim.

DivulgaçãoDivulgação“Estamos caminhando para um mundo em que jornalistas, artistas e comediantes terão que pedir permissão às autoridades para poder trabalhar”
A proliferação de novas formas de censura está enfraquecendo a sociedade civil?
Minha preocupação é a de que estamos caminhando para um mundo em que jornalistas, artistas e comediantes terão que pedir permissão às autoridades para poder trabalhar. O espaço cívico está diminuindo. Veja o que está acontecendo em Cuba e Uganda, onde os artistas estão protestando contra decretos que querem obrigá-los a registrar-se. Na Indonésia, o projeto de uma Lei de Música busca proibir conteúdo considerado blasfemo ou pornográfico, assim como impedir que os letristas incluam qualquer conteúdo influenciado por influências estrangeiras que seriam negativas.

Humoristas brasileiros também têm enfrentado tempos difíceis, com a imposição de multas e até mesmo ordem de prisão. Isso ocorre em outros países?
Sim, outros países têm como alvo os comediantes. Na Escócia, um youtuber foi multado. Na Espanha, um ator foi preso e detido por criticar e ridicularizar Nossa Senhora e Deus.

Por que também é importante garantir a liberdade de expressão dos comediantes?
A liberdade de expressão inclui o direito de dizer coisas que os outros podem achar chocantes, ofensivas e até mesmo insultantes. Precisamos defender o direito de fazer piadas, até porque essa é uma das formas mais eficazes de se falar a verdade ao poder.

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