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O banco dos doleiros

Crusoé teve acesso aos sistemas que a turma de Dario Messer, o "doleiro dos doleiros", usava para distribuir propinas e fazer remessas ilegais
10.05.19

As múltiplas telas, acessadas por senhas, mimetizam um sistema bancário. Créditos, débitos, compensações e transferências aparecem ao lado de números cuja soma faz parecer troco o prêmio acumulado da Mega-Sena que, nos últimos dias, povoou os sonhos dos brasileiros. Crusoé teve acesso à cópia integral de duas bases de dados em poder da força-tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro onde estão guardados, sob diferentes camadas de criptografia, os segredos de transações financeiras ilegais que, de 2011 a 2017, chegam em valores atualizados a impressionantes 5,5 bilhões de reais.

Os arquivos dos dois sistemas, o ST e o Bankdrop, formam uma espécie de registro geral das operações realizadas durante esse período sob o comando de Dario Messer, foragido da Justiça há um ano e apontado como o “doleiro dos doleiros”. Entregues aos investigadores por delatores da Operação “Câmbio, desligo”, eram operados por dois brasileiros baseados no Uruguai e chefiados por Messer. Por meio deles, o grupo fazia, minuciosamente, a contabilidade da dinheirama que passava por uma rede que contava com outros 45 doleiros especializados em lavagem de dinheiro, sonegação de impostos e evasão de divisas. Entre os registros, como se verá a seguir, há o passo a passo de operações já investigadas pela Lava Jato que beneficiaram, por exemplo, o ex-presidente do Senado Eunício de Oliveira, do MDB, e a campanha do tucano Geraldo Alckmin.

Além de servir como prova contra os operadores do esquema, os sistemas têm potencial para dar origem a dezenas de outras investigações ao revelar os detalhes das transações, cujo objetivo era, quase sempre, providenciar dólar no exterior ou real no Brasil para empresários, políticos, artistas, escolas de samba e esportistas. As transações eram feitas, na maioria das vezes, por intermédio de offshores, como são chamadas as empresas sediadas em paraísos fiscais utilizadas para esconder a identidade de seus sócios. Contas titularizadas por 3 mil dessas empresas chegaram a ser abertas em 52 países. É um número impressionante, comparável aos maiores escândalos financeiros da história nacional.

As movimentações eram coordenadas mais de perto por Vinicius Claret, o Juca Bala, e Cláudio Barboza, o Tony. Messer administrava tudo. Juca Bala e Tony foram alvos da Lava Jato, assinaram um acordo de colaboração premiada já homologado pelo juiz Marcelo Bretas e entregaram os dois sistemas aos procuradores da Lava Jato no Rio. Como contrapartida, além das penas reduzidas, se comprometeram a dar aulas sobre lavagem de dinheiro a investigadores de todo o país. Messer, que também tentou negociar um acordo, foi um dos alvos da operação Câmbio, Desligo, que prendeu a maioria dos doleiros que utilizavam esse sistema financeiro paralelo, mas segue foragido desde a deflagração da operação, em 3 de maio de 2018. “Os colaboradores Juca e Tony funcionavam como verdadeira instituição financeira, fazendo a compensação de transações entre vários doleiros do Brasil”, escreveram os procuradores na acusação formal que apresentaram à Justiça contra o grupo.

Agência BrasilAgência BrasilA sede da Odebrecht: o banco de dados registra parte importante dos repasses de propina da empreiteira
Os sistemas eram meticulosamente organizados. Cada um tinha uma função. O Bankdrop armazena todas as informações sobre transações feitas por intermédio das offshores usadas pelos doleiros para receber valores no exterior. O software registra o doleiro envolvido no pagamento, o número da conta, o banco e ainda organiza um resumo da conversa entre os operadores no dia da transação. Operações financeiras que apareceram ao longo das investigações da Lava Jato estão registradas lá. É possível encontrar, por exemplo, o fluxo de três pagamentos realizados, em outubro de 2014, para a offshore Tuindorp Enterprises CV, sediada na Holanda e com conta no Banque Audi da Suíça. Os repasses tinham como o objetivo viabilizar a entrega de propina paga pelo chamado “Rei do Ônibus”, o empresário carioca Jacob Barata, para os ex-deputados Jorge Picciani e Eduardo Cunha, do MDB.

O ST, por sua vez, era uma grande conta corrente a partir da qual Juca Bala e Tony controlavam todas as movimentações, tanto em reais quanto em dólar, do grupo de doleiros com os quais mantinham negócios. Nele é possível encontrar os registros dos operadores que forneciam dinheiro em espécie no Brasil – e também as anotações do sistema de delivery que eles montaram para entregar dinheiro vivo aos clientes, ou a quem eles mandassem. Esse tipo de operação interessava especialmente as empresas que precisavam disponibilizar valores para pagamento de propina a políticos. Há, por exemplo, inúmeros registros das transações envolvendo a Odebrecht — o maior cliente do grupo de Messer.

No ST está o passo a passo de entregas feitas no dia 22 de agosto de 2014 a um misterioso personagem identificado pelo codinome “Pudim”. Segundo delatores da Odebrecht, os repasses estariam relacionados à campanha de 2014 do ex-governador paulista e ex-presidenciável Geraldo Alckmin. Nos sistemas, essas operações aparecem seguidas do nome de Eduardo Castro, ex-assessor do governo de São Paulo. Além da data e de alguns nomes de destinatários, as anotações informam ainda que a transação foi realizada pelo doleiro Álvaro Novis, identificado no sistema pelo apelido de “Tuta”. A assessoria de Alckmin não respondeu aos contatos de Crusoé.

A senha é “Pudim”: tela do sistema traz nomes de ex-auxilares de Alckmin
Também estão nos sistemas outras centenas de registros de entregas para “clientes” identificados por codinomes pelo departamento de propina da empreiteira. O Bankdrop e o ST armazenam informações sobre cerca de 118 milhões movimentados pela empreiteira baiana com a ajuda de Novis. Desse total, 81 milhões foram entregues no Rio e outros 37 milhões em São Paulo.

Protegidos por um avançado sistema de criptografia, os dois sistemas só podem ser acessados com a ajuda de um programa especial de desencriptação, e a partir de pelo menos duas camadas de senhas — a primeira para ultrapassar a barreira de proteção e a segunda, para acessar os dados. Lá dentro, é possível buscar por extrato de conta de cada doleiro, data da transação, valores e, em alguns casos, “observações complementares”, onde é identificado o beneficiário final do dinheiro, seja pessoa física ou empresa.

Esse é o caso de um integrante do Conselho de Administração do Banco do Brasil, Luiz Serafim Spinola Santos. Engenheiro de formação, Spinola aparece no ST atrelado a ao menos uma transação de 30 mil reais, em 2011. Os dados entregues pelos doleiros mostram ainda que, após essa primeira transação em nome do conselheiro, outras 61 movimentações, entre 2011 e 2015, foram registradas como relacionadas ao seu irmão, Pedro Spinola. Elas chegam a 710 mil reais. Procurados, Luiz e Pedro Spinola não quiseram se manifestar sobre o assunto.

Entre os doleiros que usavam o banco paralelo comandado por Claret e Barboza sob a tutela de Dario Messer estão algumas estrelas do setor, como Marco Antônio Cursini, operador financeiro da Camargo Corrêa descoberto pela Operação Castelo de Areia, e a dupla Richard Van Oterloo e Raul Srour, apontada por um ex-diretor da multinacional Siemens como responsáveis por uma conta ilegal da empresa.

Outro doleiro que aparece operando nos dois sistemas é Paulo Sérgio Vaz de Arruda, o Zippo. Citado nos depoimentos dos delatores da Odebrecht, ele seria responsável por operacionalizar o pagamento, no exterior, de propinas relacionadas à construção do submarino nuclear brasileiro. Também aparece na 45ª fase da Lava Jato, que mirou o pagamento de propina na Petrobras para empresas fornecedoras de asfalto.

Uma transação armazenada na conta corrente de Zippo pode contribuir com as investigações tocadas pela Lava Jato em Curitiba. Em 16 de março de 2011, o ST registra um repasse de 30 mil reais para o advogado Sergio Tourinho, ex-sócio de Tiago Cedraz, filho de Aroldo Cedraz, ministro do Tribunal de Contas da União.

Agência BrasilAgência BrasilEunício, ex-presidente do Senado: sobrinho recebeu repasses e uma das senhas era “biscoito”
Assim como Zippo, o advogado foi alvo da Lava Jato por suspeita de receber propina da empresa Sargeant Marine, fornecedora da Petrobras. O Bankdrop traz mais dados. O sistema registra mais de 200 transações, entre 2008 e 2015, que somam cerca de 20 milhões de dólares e estão relacionadas à offshore Rosy Blue DMCC. A empresa, segundo delação do operador Jorge Luz, era utilizada por Cedraz e Tourinho para receber “comissões” da Sargeant Marine. A defesa de Tourinho diz que a investigação sobre ele já foi arquivada, mas não respondeu às indagações sobre a menção ao nome do advogado no sistema dos doleiros. O advogado de Tiago Cedraz afirmou que os fatos relacionados à Sargeant Marine e às acusações de Jorge Luz foram esclarecidos à Lava Jato e que a Justiça arquivou o caso. Sobre os repasses a seu ex-sócio, registrado nos bancos de dados dos doleiros, ele disse que Cedraz não tem qualquer relação com as transações.

Identificados nos sistemas pelo codinome Gilo, os doleiros Raul e Jorge Davies são citados nos acordos de Juca Bala e Tony como grandes operadores de empreiteiras brasileiras. Os registros corroboram esse título, e os ligam a figuras outrora proeminentes na República. No extrato da conta corrente mantida pela dupla no ST aparecem entregas de valores — ao todo, são 8,5 milhões de reais — para Altair Alves Pinto, apontado como um dos encarregados de recolher as propinas destinadas ao ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha.

Há mais rastros de transações que já vinham sendo investigadas pela força-tarefa da Lava Jato. Entre as centenas de operações feitas por Álvaro Novis, o doleiro da Odebrecht, há ao menos duas que batem com dados de uma investigação, agora em curso na primeira instância da Justiça Federal de Brasília, que mira o ex-presidente do Senado Eunício de Oliveira.

Na delação da Odebrecht, Eunício aparece como beneficiário de 2,1 milhões que teriam sido pagos para ele defender os interesses da companhia na tramitação de uma medida provisória em 2013. Os repasses, segundo os delatores, teriam sido realizados em dois momentos por Novis, com intermediação de
Ricardo Augusto Lopes, sobrinho do ex-senador e responsável por administrar os principais negócios da família.

Os registros da Rosy Blue, empresa que, segundo um dos delatores, serviu para filho de ministro do TCU receber pagamentos de fornecedora da Petrobras
Os sistemas, mais uma vez, reforçam o conteúdo da delação. E, curiosamente, trazem até as senhas que deveriam ser ditas pelos destinatários do dinheiro no momento da entrega. Os delatores haviam contado que o primeiro pagamento a Eunício, de 1 milhão de reais, teria sido feito em 24 de outubro de 2013. Na conta de Novis no ST é possível encontrar um repasse registrado na mesma data em que a Odebrecht diz ter realizado esse pagamento. Lá, no espaço para observações, o valor vem seguido da inscrição “Ricardo Augusto/senha: cenoura”. O segundo repasse, de acordo com a delação, ficou programado para ocorrer no dia 29 de janeiro de 2014, em Brasília. Novamente, o sistema registra esse pagamento. Desta vez, a senha a ser dita no ato do recebimento era outra: “biscoito”. Nem Eunício nem Ricardo Augusto quiseram falar a Crusoé sobre o tema. Procurada para se manifestar sobre o conteúdo dos sistemas, a Odebrecht afirmou que vem colaborando com as autoridades.

O esquema montado pelos doleiros era multissetorial. Atendia a grandes empreiteiras e políticos e outros tipos de clientes. Entre os mais de 4 milhões de dólares operados por Sérgio Mizrahy, o Miz, aparecem operações para fornecer dinheiro em espécie para pessoas ligadas à escola de samba Acadêmicos do Grande Rio. Ao menos três movimentações aparecem relacionadas a Dagoberto Alves Lourenço, apontado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como operador financeiro de Jayder Soares, presidente de honra da Grande Rio e conhecido bicheiro carioca. Os dados de Mizrahy também detalham uma transação envolvendo o jogador de futebol Emerson Sheik. O ex-atacante do Corinthians teria vendido 500 mil dólares para receber o montante equivalente em reais no Brasil. A operação, assim como as demais registradas nos dois sistemas, teriam passado ao largo dos controles. Indagados, os advogados de Mizrahy disseram que só se manifestarão nos autos. A Grande Rio não respondeu aos contatos da reportagem, assim como Emerson Sheik.

O banco paralelo dos doleiros expõe brechas importantes nos sistemas de combate à lavagem de dinheiro transnacional. Ao mesmo tempo que registravam suas transações em um sistema secreto, usando empresas em nome de terceiros para evitar a identificação de seus clientes, o grupo se utilizava de canais oficiais para fazer o dinheiro girar de um país para o outro.

Mais de 40 bancos de 52 países hospedam contas para as quais os doleiros enviaram ou retiraram valores ilegais por meio de transações que burlaram o sistema mundial de combate à lavagem.

Além de algumas das maiores instituições financeiras do mundo, como JP Morgan, Bank of China, Bank of America e HSBC, estão registradas nos sistemas movimentações que passaram por contas abertas em bancos brasileiros como o Itaú e Bradesco. No caso do Itaú, são mais de 3,5 milhões de dólares em transações realizadas em agências do Uruguai e Luxemburgo por doleiros como Claudine Spiero. O Bradesco, por meio de sua agência localizada em Luxemburgo, aparece nos registro de repasses de valores que somam mais de 6 milhões de reais entre 2008 e 2014. O Bradesco afirmou que não comentaria o assunto e o Itaú Unibanco declarou que “cumpre as regras de prevenção à lavagem de dinheiro e que reporta às autoridades eventuais operações suspeitas”.

Os doleiros contavam com offshores e com contas em bancos oficiais
A criação do banco paralelo de Messer e companhia remonta a 2003. Àquela altura, os principais doleiros do Brasil estavam na mira da Polícia Federal após serem flagrados enviando ou trazendo dinheiro do exterior para políticos corruptos, sonegadores e traficantes. Era o caso Banestado, que daria origem a várias outras investigações. Alvo da investigação, Alberto Youssef fez, ainda em 2004, seu primeiro acordo de delação e contou ao então jovem juiz federal Sergio Moro quem eram os cabeças do câmbio ilegal no Brasil. Disse ele na ocasião: “Um era eu (Youssef), a Tupi Câmbios, a Acaray, Câmbio Real, Sílvio Anspach, o Messer do Rio, o Rui Leite e o Armando Santoni”.

Messer, um dos citados, sabia que precisava resolver dois problemas para evitar que o negócio iniciado pelo seu pai, Mordko Messer, precursor de operações com dólar-cabo no Brasil, fosse destruído pela ação dos investigadores. O primeiro era sair do Brasil, onde suas casas de câmbio haviam sido devassadas. O segundo era operar no exterior por meio de contas em nome de terceiros. Foi então que ele pôs em prática a “Operação Uruguai”, criando o banco paralelo que a Lava Jato descobriria muitos anos depois.

O Bankdrop e o ST, os dois sistemas que serviam de sustentáculo para o vaivém de dinheiro, repetiam os modelos tradicionais, só que funcionavam à margem do olhar das autoridades. As transações eram realizadas a partir de um modelo de compensação, justamente para evitar que, quando o dinheiro entrasse no sistema financeiro legal no exterior, as digitais dos operadores aparecessem. Demorou, mas as autoridades conseguiram alcançá-los. E agora os dois sistemas viraram um espetacular manancial para guiar investigações que, por anos, ainda darão muito o que falar.

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