MarioSabino

Uma gororoba em cima de tudo

23.05.19

A empregada lá de casa pediu, com ar compungido, para conversar comigo sobre “um assunto”. O assunto era um pedido: queria ser demitida. Perguntei o motivo, visto que não parecia haver problema entre nós. Ela respondeu que realmente não tinha nada a reclamar de mim, muito pelo contrário. Mas que precisava do dinheiro da indenização e do fundo de garantia para saldar uma dívida. Deu-se, então, o seguinte diálogo:

— Você se incomodaria em dizer de quanto é essa dívida?

— Da última vez que puxei numa lan house era de 9 mil num cartão e de 6 mil noutro cartão.

— Você tem dois cartões de crédito?

— Na verdade, eu tinha oito.

— Oito?

— De banco e de loja, que também é crédito, né?

— Mas como você conseguiu tanto crédito?

— Eles davam, seu Mario… Eu já negociei com o Banco do Brasil e o Bradesco. Agora só falta o Santander, para limpar o nome.

— Mas se eu a demitir, você poderá ficar sem emprego, a menos que já tenha arrumado outro.

— Não, o senhor me demite, mas eu continuo trabalhando para o senhor.

— Sem registro?

— Sem registro.

— Mas isso é fraude, é ilegal.

— É?

— É.

— …

— Você ficaria trabalhando sem que eu pagasse INSS, FGTS, esses encargos todos.

— Sem nada na carteira, né?

— Nada.

— Para o senhor é melhor.

— Não é assim que funciona.

— O FGTS não é meu?

— É.

— E se eu pegasse só o FGTS para pagar o banco, sem que o senhor me demitisse?

— Não pode.

— Não?

— Não.

— Nem se o senhor autorizasse? O senhor é que paga.

— Pago para o estado manter uma poupança para você. Poupança que rende pouco e que você pode retirar apenas no caso de demissão e aposentadoria, basicamente. Parece que agora também dá por meio de distrato, mas você não poderia continuar trabalhando aqui e acho que perderia dinheiro. Por mim, eu pagaria a você, sem estado no meio, mas não deixam.

— Ah.

— Estou curioso: quando você conseguiu tantos cartões?

— Já faz tempo.

— Quem era o presidente?

— Acho que a Dilma.

— E como você conseguiu acumular uma dívida tão grande?

— Eu também emprestava o cartão para os meus parentes e eles não me pagavam.

— Você emprestava o cartão?

— Pois é, seu Mario, não dá para confiar nas pessoas.

— Você já foi ao Santander, para negociar?

— Não.

— Quando foi a última vez que você verificou o valor da sua dívida?

— Eu puxei em outubro, guardei o papel.

— Faz sete meses, essa dívida deve estar muito maior.

— Os juros, né?

— Façamos o seguinte: você puxa a dívida de novo e vai até o Santander. Negocie e me diga para quanto baixaram. Vamos ver se conseguimos dar um jeito, sem que eu a demita, está bem?

Sei que é um diálogo banal, mas é justamente essa banalidade que causa desalento. Porque nela estão embutidos, em corte longitudinal, a fragilidade social brasileira (num país moderno, eu não teria condição de ter empregada) e o absurdo de uma legislação que onera o empregador e impede o trabalhador de fazer ele próprio a sua poupança e de usá-la com liberdade. Porque nessa banalidade estão embutidos, em corte transversal, o estelionato de um partido que endividou gente pobre e ignorante, para simular crescimento econômico através unicamente do consumo, e a cumplicidade de um sistema bancário que já sabia que isso não poderia dar certo, mas ainda assim precificou o estelionato político da expansão irresponsável do crédito por meio de juros extorsivos.

Depois da conversa reproduzida acima, fui almoçar e deparei com uma maionese recoberta com batata palha que ela preparou para mim:

— De onde você tirou esse prato?

— Da internet.

— Ah.

O Brasil é uma gororoba em cima de tudo.

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