Eleitores em seção de votação: os especialistas acreditam que o Brasil pode registrar seu recorde de "não voto" (Adriano Machado/Crusoé)

O Sr. Ninguém pode vencer a eleição

O alto número de eleitores que não querem votar em nenhum candidato pode levar ao Palácio do Planalto um presidente com pouca força política
08.06.18

Márlon Reis fazia campanha em maio, numa praça na região central de Colinas, no extremo norte do Tocantins, quando se aproximou de uma roda de eleitores para pedir voto. Um deles nem sequer esperou a sua fala e saiu andando. Outro pediu que ele saísse. Um terceiro disse que não queria ouvi-lo. Semanas depois, caminhava pelas ruas do bairro pobre de Taquaralto, no extremo sul da capital Palmas, quando foi abordado por um senhor que lhe disse que não queria conhecê-lo e votaria nulo. Márlon, desta vez, pediu a palavra. Disse que tinha sido o juiz responsável pela Lei da Ficha Limpa e que ela acabou deixando de fora de eleições mais de 1,5 mil condenados em segunda instância. Ele voltava ao discurso sempre que as cenas de rejeição explícita se repetiam. E foram muitas em suas andanças pelo estado que, na semana passada, teve uma eleição extemporânea para eleger um governador-tampão. Não adiantou. O ex-juiz, que se apresentava como o novo, foi atropelado por dois grupos de eleitores. A metade que escolheu alguém para votar e preferiu levar ao segundo turno dois políticos ligados a quem desde sempre controla o Tocantins, e a outra que simplesmente não votou em ninguém. Foram 17,13% de votos nulos, 2% em branco e 30,14% de abstenção, totalizando 49% do chamado “não voto”. O Senhor Ninguém, produto da descrença dos brasileiros na política, foi um sucesso.

Fenômeno semelhante ocorreu em boa parte de 20 cidades de outros estados que também tiveram eleições suplementares no último domingo, assim chamadas porque os titulares vencedores no último pleito perderam seus cargos na Justiça, geralmente por irregularidades no processo eleitoral, como compra de votos. Em Teresópolis (RJ), por exemplo, a taxa de “não voto” foi de 56,6%, a maior do dia. Cansado de ter sete prefeitos nos últimos sete anos, quem foi às urnas escolheu um outsider com discurso de gestor. Para tanto, o eleito, Vinicius Claussen (PPS), derrotou antigos políticos locais fazendo o que Márlon não fez: alertando o eleitor da importância do comparecimento. Em entrevistas, reforçava a necessidade de votar. Em seu site, havia uma mensagem: “Não abra mão do seu voto. Sua participação definirá o destino de nossa cidade. Cada voto conta”. Ganhou por vinte e dois votos, uma diferença de 0,03%.

A quatro meses do primeiro turno das eleições presidenciais, o “não voto” começa a entrar no radar das campanhas e a aumentar o já elevado grau de imprevisibilidade da disputa. Há três grandes dúvidas. A primeira é se o quadro geral das eleições fora de tempo do último domingo se reproduzirá de fato em outubro, quando haverá mais candidatos a vários cargos nas ruas, o que causa mais mobilização. A segunda é se, uma vez reproduzido o quadro, quem seria o grande favorecido pelo fenômeno. E a terceira, se um eventual beneficiário não teria sua legitimidade colocada em xeque, tendo em vista a ausência de grande parte dos eleitores no processo eleitoral.

A considerar a evolução das pesquisas eleitorais, a resposta para a primeira pergunta é que, sim, há uma tendência de se repetir o que ocorreu no domingo em várias cidades brasileiras. Desde 2016, o Datafolha aponta essa evolução. Em julho daquele ano, 14% dos eleitores que foram perguntados em quem votariam responderam que anulariam o voto, votariam em branco ou sequer iriam até suas seções eleitorais. De lá para cá, esse número só cresceu. Em março deste ano, esse percentual foi de 21%. Registre-se o fato de que as respostas não foram estimuladas, quando são apresentadas ao eleitor as opções de voto. Foram respostas espontâneas. “Pelo menos um terço dos eleitores não deve votar em ninguém este ano. As pesquisas que temos feito têm demonstrado isso”, disse a Crusoé o pesquisador Mauricio Moura, da Ideia Big Data. A curva do “não voto”, observa ele, é ascendente nas eleições brasileiras. “Nunca em uma eleição depois da ditadura houve uma taxa de eleitor sem candidato como agora”, emenda Mauro Paulino, diretor do Datafolha.

O NÃO-VOTO NAS ELEIÇÕES

No primeiro turno das eleições presidenciais recentes, o número de eleitores que não votou em ninguém foi maior do que o projetado pelas pesquisas

 

A taxa vem subindo significativamente. Em 2014 foi de 28,9%, a maior desde 1998, a primeira eleição com urna eletrônica, o que causou muitos erros por parte do eleitor. Mas agora é diferente. Quem está nas ruas em campanha tem sentido a reação negativa do eleitor à classe política. Os relatos são variados. Citado na Lava Jato e com o fardo de carregar o impopular governo do presidente Michel Temer nas costas, o deputado Beto Mansur (MDB-SP) conta que conseguiu recentemente liberar 18 milhões de reais para a saúde em sua base eleitoral, no município de Santos. Fez barulho. Foi às redes sociais para divulgar que havia conseguido o dinheiro. Teve de ouvir que não era mais do que a sua obrigação. Benito Gama (PTB-BA) relata cobranças na campanha pelo interior baiano por ter apoiado a reforma da Previdência. Com quem se conversa no Congresso ou nas coordenações das campanhas presidenciais, os relatos são semelhantes. “A classe política está no auge da desmoralização e deve pagar o preço com o afastamento do eleitor da urna. Há uma acentuada desconfiança dos cidadãos em relação às instituições e baixa identificação do eleitor com os partidos”, diz o professor Homero Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), autor de estudos sobre o assunto.

Como as punições ao eleitor que não vota são irrelevantes, deixar de ir às urnas é uma opção bastante considerada no atual cenário de desilusão com a política. Costa observa, porém, que o “não voto” é um fenômeno mundial que mostra que as democracias representativas viveriam uma crise. Há um declínio na participação eleitoral em vários países. Onde o voto não é obrigatório, as taxas são bem altas, como no Uruguai, Peru, Equador, Bolívia e Argentina. Nos Estados Unidos, em torno de 50% dos eleitores não votam. Nas eleições de 2016, o índice foi de exatamente 46,6%. Na França, a abstenção na última eleição superou 50%. Emmanuel Macron se viu confrontado com a questão se era um presidente legítimo, visto que a maioria dos franceses não votou nele. Respondeu que a acachapante vitória parlamentar do seu partido lhe dava legitimidade. No Brasil, a fragmentação partidária não permitirá que o novo presidente tenha esse argumento.

A rampa do Planalto com o Congresso ao fundo: uma das tarefas dos políticos será convencer o eleitor a ir à urna (Adriano Machado/Crusoé)
Se o viés do “não voto” no Brasil também é de alta, o beneficiário desse fenômeno ainda não está claro. Analistas dizem que quem tem mais voto consolidado é beneficiado porque o seu eleitor é fiel e vai à urna de qualquer modo. Hoje, há no cenário dois políticos com esse perfil. Lula (PT), que está preso e impedido de se candidatar, e Jair Bolsonaro (PSL). Ainda assim, dirigentes de grandes partidos com candidaturas confirmadas neste ano apontam que o “não voto” tende a favorecer os seus candidatos. O motivo é que, ao contrário do PSL de Bolsonaro, essas legendas têm uma estrutura partidária forte, além de presença na maior parte dos 5.565 municípios do país, o que poderia ajudar no convencimento dos eleitores para que não deixem de votar.

Os recordes brasileiros

 

Em um país conflagrado como o Brasil, eleger um presidente da República com percentual de apoio pouco representativo pode arranhar a capacidade que ele terá para governar. Um candidato que chega sem votação expressiva dá margem para a oposição questionar sua legitimidade. Também fica enfraquecido nas negociações com o Congresso. Seja como for, vale lembrar a frase de Winston Churchill: a democracia é a pior forma de governo, excetuadas todas as outras já experimentadas. Se o Senhor Ninguém vier a vencer mesmo as próximas eleições, como se projeta, que não se perca isso de vista nas inevitáveis crises que ocorrerão.

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